USP desenvolve método que usa corrente elétrica no lugar agulhas para anestesias odontológicas

O procedimento também aumenta a absorção da substância que tira a sensibilidade da boca e reduz os riscos de infecção

por Roberta Machado 04/02/2016 15:00
Valdo Virgo / EM / D.A Press
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Na cadeira do dentista, o alívio tem um preço alto. Para evitar a agonia da broca e da raspagem, o paciente precisa encarar a agulha e suportar a injeção da anestesia. Um grupo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) desenvolve uma técnica que pode abolir esse ritual de tortura, trocando a temida agulha por uma corrente elétrica. O choque indolor aumentaria a eficácia dos fármacos aplicados sobre a mucosa do paciente, dispensando a necessidade da injeção. Testado em tecidos de animais in vitro, o método obteve resultados promissores.

O estudo que descreve a técnica foi publicado recentemente no jornal especializado Colloids and Surfaces B: Biointerfaces. No artigo, os pesquisadores explicam como criaram uma versão odontológica de um tipo de tratamento conhecido como ionoforese. O método consiste em aplicar uma substância sobre a pele do paciente e usar um eletrodo para injetar uma corrente elétrica na área a ser tratada (veja arte). “Se você tem substâncias que ficam carregadas positivamente na formulação, quando aplicamos a corrente elétrica com o contato do eletrodo positivo, elas são repelidas e entram na pele. Isso aumenta a penetração de substâncias que não atravessam a pele ou mucosa com facilidade”, explica Renata Fonseca Vianna Lopez, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da USP que assina o estudo.

A carga é aplicada de acordo com as propriedades elétricas do produto usado no tratamento, atravessando a pele do paciente e levando consigo o fármaco para dentro do organismo de uma forma direcionada e controlada. Sem injeções, a substância não precisa passar pela corrente sanguínea e fica retida no local de interesse, aumentando a eficiência da fórmula e evitando efeitos colaterais. A técnica é usada para diversos tipos de aplicações, que variam de terapias contra a dor crônica a tratamentos estéticos. Mas, até então, pouco se sabia sobre a eficiência das correntes elétricas na mucosa bucal.

O método foi testado, pela primeira vez, pelos pesquisadores brasileiros em uma bochecha de porco coberta com um gel semelhante ao fármaco usado para preparar o paciente para a anestesia injetável. A mistura de prilocaína e lidocaína foi coberta com um polímero, formando uma cápsula capaz de se manter presa ao interior da mucosa do animal. Depois de aplicar a corrente elétrica, os cientistas mediram a quantidade do medicamento absorvida pelo tecido.

“Avaliamos o quanto (do anestésico) permeou e o quanto ficou retido. O gel que permeia é o que exerce a ação anestésica nos nervos, e o retido funciona como uma reserva. Aos poucos, ele vai permeando e mantém a ação anestésica por mais tempo”, conta Camila Cubayashi, estudante de doutorado em ciências farmacêuticas que pesquisou o método não invasivo durante mestrado na USP.

Preciso e indolor
A intenção dos pesquisadores era verificar se a corrente elétrica seria capaz de aumentar a potência desse anestésico tópico o suficiente para que a fórmula pudesse substituir a injeção. O experimentou mostrou que a mucosa absorve 12 vezes mais prilocaína com a ajuda da ionoforese, e que o tecido retém a substância até 10 vezes mais graças ao estímulo. Já a lidocaína apresentou o dobro de permanência na mucosa.

“O estudo sugere que a gente consegue colocar muito mais anestésico onde precisamos dele e que podemos substituir a injeção”, acredita Renata Fonseca. Agora, o grupo pretende desenvolver um dispositivo que possa ser usado em testes pré-clínicos e, posteriormente, em humanos. Se tiver a eficácia clínica comprovada, o método anestésico pode dar coragem aos pacientes e aumentar as visitas ao dentista. Renata assegura que o choque bucal é quase imperceptível. “Já senti na pele e é como um formigamento, como quando o pé adormece”, descreve a pesquisadora.

A parceria formada na USP explora técnicas alternativas de anestesia há anos e já testou fórmulas combinadas a filmes, cápsulas e pastilhas solúveis. O uso de hidrogéis tópicos demonstrou resultados promissores, mas testes com pessoas também revelaram que os compostos adesivos atrapalham a absorção da fórmula e que os efeitos anestésicos das fórmulas solúveis tendiam a afetar outras áreas da boca, além de não durarem o suficiente para a aplicação em um procedimento mais demorado. A recente pesquisa aponta que a iontoforese possa ser a forma mais eficiente de direcionar a absorção do anestésico, além de aumentar a sua ação.

“A ideia é fazer com que a substância penetre pela gengiva e vá só para a região a ser anestesiada. Não tem como ela dispersar porque tem um eletrodo a atraindo pelo íntimo do dente”, avalia Vinicius Pedrazzi, professor da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto da USP e um dos autores do trabalho. O especialista estima que a anestesia elétrica possa durar entre 30 minutos e duas horas, dependendo dos resultados dos testes clínicos.

Pedrazzi também acredita que a anestesia via ionoforese pode diminuir os custos dos tratamentos dentários, além de reduzir os casos de infecção nas intervenções que exigem anestésicos em até 80%. Caso a iontoforese seja capaz de penetrar dentro da gengiva, dos ligamentos, da dentina e da polpa do dente, todo o tipo de procedimento poderá ser realizado sem a ajuda de agulhas. “Queremos fazer cirurgias de extração usando a iontoforese”, adianta o pesquisador.


Alternativa antiga
Os primeiros relatos de terapias médicas que usam eletricidade remetem até a Grécia antiga. Acredita-se que o médico grego Aetius receitasse aos seus pacientes sessões de choques do peixe-elétrico para tratar gota e hemorroida. Desde então, vários pioneiros testaram os efeitos da corrente elétrica no organismo, mas foi somente no século 18 que o médico e físico italiano Giuseppe Veratti descreveu, pela primeira vez, a aplicação de uma corrente elétrica fraca para transferir substâncias carregadas através de membranas biológicas.

No fim do século seguinte, o neurologista norte-americano William James Morton escreveu um livro onde descreveu uma experiência que procurava demonstrar a migração de íons nos tecidos. Na obra, ele explica como aplicou grafite em pó sobre o próprio braço e como injetou o material na pele em contato com um eletrodo positivo. As manchas escuras causadas pelo experimento persistiram por várias semanas.