Você, o celular e a hora da DR

As maravilhas da tecnologia são tantas que os efeitos colaterais demoram a ser percebidos. Se o uso do aparelho for muito intenso, os olhos, as mãos, a coluna e até a saúde mental vão reclamar

por Renata Rusky 30/11/2015 09:15
Zuleika de Souza/CB/D.A Press
Lucas Costa, 28 anos, professor de muai-thai, precisa carregar o celular várias vezes ao dia para garantir que não vai perder nada (foto: Zuleika de Souza/CB/D.A Press)
Atualmente, estar conectado o tempo todo é uma atividade supervalorizada. Basta meia hora sem o celular para perder um encontro com os amigos, uma ligação, mensagem importante do chefe. “Como não atende o celular nem responde mensagem?”, muitos se indignam. O aparelho virou quase uma extensão do corpo. Essa obsessão, porém, pode não ser saudável — tanto física quanto socialmente.

Já estão mapeados diversos males diretamente relacionados ao uso excessivo do celular. Ele tem sido apontado, por exemplo, como vilão em problemas na coluna, nas mãos, no cérebro e nos olhos. Algumas dessas doenças, inclusive, carregam no nome uma referência ao uso do equipamento. “Pescoço de texto”, por exemplo, descreve a postura da maioria das pessoas quando escreve uma mensagem. “Síndrome do polegar” diz respeito ao costume de digitar mensagens usando apenas esse dedo.

Embora não sejam conclusivos, há estudos que ligam o uso de celular ao desenvolvimento de câncer. Até a Organização Mundial de Saúde chegou a advertir sobre esse risco em 2011, depois que 31 cientistas da Agência Internacional de Pesquisa sobre Câncer fizeram um grande levantamento das pesquisas já realizadas. Quase todas analisavam a incidência da doença em populações com uso variado de celular ou outra exposição a campo eletromagnético.

Noites em branco
L
ucas Costa, 28 anos, professor de muai-thai, passa o dia na correria. Dá aulas em diversas academias a partir das 7h. Ao longo do dia, o celular é usado para comunicação com os alunos e com a mulher. É quase o tempo todo no ouvido ou nas mãos. O aparelho também é usado por Lucas para divulgação do trabalho dele, publicando fotos das aulas em redes sociais. Ele precisa recarregá-lo várias vezes ao dia para garantir que não vai perder nada.

A noite é o momento que ele tem para se comunicar com os amigos e se atualizar. “Durante o dia, eu não consigo ler jornal algum”, lamenta. A tarefa noturna geralmente é feita já deitado na cama, antes de dormir. Considera mais prático fazer isso com o celular e, algumas vezes, leva mais de uma hora. A mulher, Líbian Volsi, costuma dormir mais cedo, mas também se prolonga nas redes sociais ao fim do dia.

A situação é comum hoje em dia e se repete em diversas casas. Se não é com o celular, é com o tablet. Diversos estudos já comprovaram que ambos exercem um efeito negativo sobre o sono. Uma opinião de peso sobre o assunto vem do neurologista Charles Czeisler, diretor da Divisão de Medicina do Sono de Harvard. Segundo ele, é uma injustiça culpar o café e “barriga cheia” por noites mal dormidas. “Desvaloriza-se o efeito do avanço tecnológico sobre o sono. A luz artificial afeta nosso ritmo circadiano e é mais poderosa do que qualquer droga”, alerta.

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A ciência manda o recado que o uso excessivo do celular realmente faz mal. É preciso repensar os hábitos com o aparelho para que ele não roube, aos poucos, a saúde de nossos olhos e mãos, além da qualidade do nosso sono (foto: CB/D.A Press)
Faz sentido. A luz é a principal responsável por regular o ciclo diário do corpo. A ausência dela é que estimula a glândula pineal, localizada no cérebro, a liberar a melatonina, o hormônio do sono. Se o dia for seguido por uma noite iluminada artificialmente, além de neurônios serem ativados, gerando excitação, o lançamento de substâncias necessárias para promover o sono, como a melatonina, é inibido. O ideal é, cerca de uma hora antes de dormir, começar a se preservar da luminosidade ambiente. “A falta de sono é interpretada pelo nosso corpo todo como uma situação de estresse. O hábito de se expor a uma luz artificial até a hora de dormir tem se tornado um problema de saúde”, confirma o psiquiatra e médico do sono Caio Araújo Jr.

A alteração hormonal de alguém que não dorme direito afeta todo o metabolismo. O nível de cortisol, conhecido como o hormônio do estresse, sobe e pode dificultar até no emagrecimento. Além disso, a glicemina e a pressão sanguínea também aumentam. Entre crianças, noites em claro são especialmente nefastas. Isso porque o hormônio do crescimento é liberado na fase 3 do sono não REM.

Vínicius Moreira, 14 anos, foi praticamente o último entre os amigos a ganhar um celular. “Depois que ganhei, ficou difícil largar”, brinca. Mesmo assim, ele se esforça para não se entregar ao vício. Uma das maneiras de fazer isso é ficar sem 3G. Dessa forma, só usa o celular em casa ou em lugares com rede wi-fi. Na escola, por exemplo, onde é preciso estar concentrado, o telefone só fica desligado.

O principal uso que o adolescente faz do aparelho é troca de mensagens e como player de vídeos. O computador foi deixado de lado. E pegar no sono ficou bem mais difícil, só depois da meia-noite. A conta vem pela manhã. “Eu demoro para me levantar. Minha mãe precisa me dar uma chacoalhada”, admite.

Proteja seus olhos
A
lguns estudos relacionam também a exposição em excesso a luz de aparelhos tecnológicos durante a vida — não só de celulares, mas de computadores, tablets e aparelhos de TV — à degeneração macular, uma das principais causas da cegueira, porém ainda não há comprovação. O que é certo, segundo o oftalmologista Richard Yudi, é que a exposição prolongada a aparelhos eletrônicos pode causar sintomas como dores de cabeça, irritação nos olhos e fadiga. “O uso contínuo e exagerado desses aparelhos faz com que o indivíduo tenha sintomas temporários de cansaço visual: dor de cabeça, lacrimejamento, ardência, incômodo à luz, oscilação da visão e sensação de peso nas pálpebras. Porém, acredita-se que esses danos são temporários e melhoram quando se descansa o corpo”, ressalta.

Comum na sociedade moderna, a síndrome da visão cansada é causada pela fixação das vistas na tela dos aparelhos que emitem luz durante muito tempo. O cansaço é uma reação natural à tensão a que os olhos são submetidos, já que é preciso forçá-los para ter foco e enxergar imagens definidas em pontos pequenos. Em geral, não se trata de algo grave, mas é preciso estar atento. “Em crianças e adolescentes, a vista cansada pode estar relacionada a dores de cabeça e dificuldade em se concentrar na sala de aula”, diz o especialista.

O sistema reprodutivo em alerta
Outra questão tão polêmica quanto a responsabilidade do celular sobre o câncer é o efeito dos aparelhos celulares na fertilidade. Embora existam muitos estudos, não há comprovação. Alguns homens, no entanto, preferem se precaver, deixando o aparelho longe do bolso da frente da calça. A embriologista Ligia Previato, chefe de laboratório do Centro de Reprodução Humana de Rio Preto, explica: “Alguns estudos afirmam que a radiação produzida pelo celular causa um estresse oxidativo nas células reprodutivas, aumentando a peroxidação lipídica e diminuindo fatores antioxidantes, como a melatonina, vitamina E e glutationa peroxidase. Inclusive, fatores hormonais, como testosterona e o hormônio luteinizante, são alterados”.

Ainda não existe exame capaz de averiguar que a causa da infertilidade seja o uso de celular. Por meio da consulta, no entanto, conversando com o paciente, é possível avaliar se existe uso excessivo desses aparelhos e, então, descartando todas as outras causas, pode-se suspeitar da radiação produzida pelos telefones celulares. Nos consultórios, não é rara a desconfiança.

Felizmente, no caso dos homens, o tratamento é simples. “Basta limitar a exposição à radiação dos aparelhos e entrar com uma suplementação de vitaminas, minerais antioxidantes. Se, neste mês, os espermatozoides estiverem alterados, no próximo, poderão estar normalizados, pois o homem produz um novo “lote” de células reprodutoras a cada 74 dias”, esclarece Ligia. Nas mulheres, a situação seria mais complexa, pois elas nascem com os óvulos que as acompanham até a menopausa. Uma vez alterados, o dano pode ser irreversível. Contudo, para isso acontecer, a carga de radiação teria de ser muito forte.

O assunto é pouco abordado pela ginecologia. Segundo Ligia, os estudos indicam que não há uma relação direta do uso de celular com os antígenos relacionados ao aborto espontâneo. Contudo, sabe-se que a radiação dos aparelhos pode levar a quadros inflamatórios, endometriose, diminuição dos folículos e alteração no endométrio (tecido que reveste o útero).

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Vânia Estrela percebeu que o ato de teclar reforçava o desgaste que já vinha sofrendo por conta do trabalho artesanal (foto: Zuleika de Souza/CB/D.A Press)


Pobre pescoço contorcido
Da mesma forma que é possível posicionar um livro de maneira prejudicial à coluna, a maioria das pessoas faz isso com o celular. O aparelho fica posicionado tão baixo — na altura do peito — que é necessário curvar demais o pescoço, o que pode causar lesões sérias na coluna. De acordo com estudo publicado no fim do ano passado na revista científica Surgical Technology International, essa inclinação do pescoço promove um impacto de até 30kg na coluna. É como se houvesse esse peso pendurado no pescoço.

Vânia Estrela, 39 anos, une em sua vida dois fatores que favorecem a má postura. O primeiro é o fato de ser artesã e passar muito tempo olhando para baixo, bordando e costurando. O segundo, o fato de passar cerca de três horas por dia olhando para o celular: são as filhas mandando mensagens; vários grupos de WhatsApp; muitos clientes a quem mandar fotos do trabalho, pedidos de orçamento etc.

Ela acredita que deixou a situação chegar ao limite até procurar ajuda de um fisioterapeuta. Estava sentindo formigamento nas mãos; acordava durante a noite com os braços dormentes e não conseguia inclinar a cabeça para trás. Com um mês de tratamento, a melhora foi significativa. O que dificulta um pouco a situação é a necessidade de disciplina. “Eu preciso fazer exercícios por conta própria quatro vezes por dia e nem sempre consigo”, reconhece Vânia.

Vânia está tentando mudar alguns hábitos. Atualmente, ela passa o máximo de tempo possível longe do celular. “Tem dia que só olho à noite, e aí tem mil mensagens no WhatsApp”, conta. “Agora, acesso o aplicativo no computador, aí não preciso curvar o pescoço e dá pra usar os dez dedos em algo que eu costumava usar só o polegar.”

O pescoço faz parte da coluna, que preserva a medula espinhal, de onde saem os nervos para todo o corpo. Para protegê-la, é preciso que o pescoço esteja alinhado à coluna. A postura inadequada força os ligamentos, as articulações, as contraturas musculares,  os discos, e pode comprimir nervos. Segundo o ortopedista Marcelo Ferrer, além de dor (que tende a irradiar para os membros superiores), o desgaste pode fazer até com que o paciente involuntariamente faça movimentos na tentativa de se alongar. Ele explica também que a musculatura das costas protege a coluna; portanto, fazer exercícios que a deixem bem desenvolvida também é uma forma de prevenção.

Ana Rayssa/Esp. CB/D.A Press
"Outro dia, eu estava almoçando com um colega e um aluno estava me mandando mensagem. Eu estava respondendo e, de repente, percebi que podia deixar para depois e almoçar tranquilamente", Alexandre Sampaio, enfermeiro especializado em saúde mental (foto: Ana Rayssa/Esp. CB/D.A Press)
Segundo Ferrer, o pescoço abaixado para olhar o celular pode causar o chamado bico de papagaio (formação de ossos na coluna na tentativa de estabilizar a coluna diante das lesões), hérnia de disco e artrose. Em casos mais sérios, problemas neurológicos podem ocorrer, caso haja compressão de nervos no pescoço. Dores de cabeça fortes são um forte indício de que algo vai mal.

Polegares exigidos além da conta
A
lexandre Sampaio, 41 anos, enfermeiro especializado em saúde mental, relata que o principal uso de seu celular é para mensagens de texto. Por causa de sua formação, está bem informado sobre lesões causadas por esforço repetitivo. Mesmo assim, ele considera difícil se policiar e faz o mesmo que a maioria das pessoas: digita apenas com os polegares. Ele confessa que tenta se policiar, mas acaba sendo antissocial em algumas ocasiões. “Outro dia, eu estava almoçando com um colega e um aluno estava me mandando mensagem. Eu estava respondendo e, de repente, percebi que podia deixar para depois e almoçar tranquilamente”, conta. Muitas vezes, Alexandre se sente refém do smartphone e admite que é difícil dar a atenção devida a um hábito de risco antes que uma dor apareça.

Usar apenas o dedo polegar para digitar mensagens — normalmente, o da mão que segura o celular — é perigoso. A movimentação dele é mais crítica que a de todos os outros dedos por conta da anatomia. Ele tem a oponência, que permite o movimento de pinça. Segundo o presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia da Mão, Luiz Kimura, desde que os programas de mensagens gratuitos se popularizaram, a quantidade de lesões nesse dedo aumentou consideravelmente.

Ele conta que se trata de uma lesão “da moda”. “Na época da linha de montagem, muitos trabalhadores apresentavam lesões por esforço repetitivo. Quando aconteceu a mudança da máquina de escrever para o teclado, aumentou a quantidade de lesões em outra parte das mãos. Depois, veio o videogame e foi a vez de aparecerem crianças com o problema”, relata.

O que acontece é que o dedo vai sofrendo pequenos traumas cumulativos. Com o tempo, vira algo pior. Pode começar apenas com uma dor, que indica inflamação no tendão. O tratamento consiste em medicamentos, repouso e aplicação de gelo no local. Se a dor for negligenciada, pode virar uma lesão crônica. Nesse caso, há risco de uma cirurgia. “As estruturas aumentam tanto de tamanho que é preciso fazer força para movimentar o dedo. A cirurgia liberaria o tendão, mas, se a movimentação repetida e inadequada voltar a ser feita, a inflamação pode se restabelecer”, alerta Kimura.