Informação é o primeiro passo para uma boa experiência no parto

No país campeão mundial de cesarianas, brasileiras ainda precisam lutar para ter sua vontade respeitada. Algumas práticas na assistência obstétrica fazem com que mulheres sejam submetidas a intervenções desnecessárias

por Valéria Mendes 09/11/2015 10:00
Kalum Brum/Olhar Mamífero/Divulgação
(Kalum Brum/Olhar Mamífero/Divulgação) (foto: Kalum Brum/Olhar Mamífero/Divulgação)
 Deborah Secco quer um parto normal. Grávida de Maria Flor, a previsão é que a garotinha venha ao mundo em dezembro. Em entrevista ao programa de Serginho Groisman, a atriz frisou a importância de a mulher estar bem informada para que possa valer a sua vontade. Isso por que no Brasil ainda é preciso lutar para que os bebês não nasçam de uma cirurgia. Ela não é a primeira famosa a se manifestar publicamente sobre a escolha da via de parto e sua declaração evidencia a importância de mulheres apoiarem mulheres quando o assunto é parir. A cesariana está tão intrincada à cultura do nascimento no país que se esquece dos riscos que esse procedimento cirúrgico representa para a mãe e para o bebê. Além de triplicar o risco de morte materna, temos uma taxa de prematuridade de 12,5%, que, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), coloca o Brasil no mesmo patamar dos países de baixa renda.

A cesárea é tão banalizada por aqui que se associa a cirurgia à ideia de parto moderno e controlado. Em contrapartida, o parto normal é visto como uma experiência dolorosa e primitiva. E no país campeão mundial de cesarianas vemos esse contrassenso representado em um produto cultural de grande audiência e penetração nos lares das brasileiras. Pesquisa de autoria de Claire Stanton, uma parceria entre a Universidade de São Paulo (USP) e a Princeton University, nos Estados Unidos, analisou 33 cenas de parto de novelas exibidas no período de 1990 a 2014 e constatou exatamente isso: enquanto as mulheres que dão à luz de parto normal sofrem de dor com a experiência, aquelas que têm sete camadas do abdômen cortadas e o bebê retirado do útero por um médico aparecem em cena tranquilas e sorridentes.

Diante desse cenário, palavras como autonomia e empoderamento nunca fizeram tanto parte do vocabulário feminino quando a pauta é parto no Brasil. Sejam elas usadas por famosas em emissoras de televisão de grande audiência, blogueiras influentes ou anônimas nas redes sociais, a luta é para que cada mulher tenha direito de escolha da via de parto e que essa escolha esteja sustentada por evidências científicas.

A presidente da Associação Artemis, Raquel Marques esteve em Belo Horizonte para o I Seminário Humanização do Nascimento – Diálogos Sobre a Assistência ao Parto, promovido pelo Instituto Pauline Reichstul, afirma que “a ignorância deixa a mulher completamente vulnerável” e que a “a informação é a arma que a mulher pode ter para garantir que sua vontade seja respeitada”. No Brasil, uma em cada quatro brasileiras é vítima de violência obstétrica e 70% das mulheres iniciam a gestação desejando um parto normal, segundo a pesquisa Nascer no Brasil, da Fiocruz. No entanto, ranking da OMS mostra que somos o único país do mundo a ter mais da metade de todos os nascimentos feitos por essa cirurgia. A taxa de 53,7% é três vezes maior do que a recomendado pela entidade: 15%.

(Foto: Além D´Olhar / Reprodução O Renascimento do Parto )
Pesquisa 'Nascer no Brasil' mostra que 70% das mulheres iniciam a gestação desejando um parto normal (Foto: Além D´Olhar / Reprodução O Renascimento do Parto ) (foto: (Foto: Além D´Olhar / Reprodução O Renascimento do Parto ) )


O movimento pela humanização do parto e nascimento não é novo, já são quase 40 anos de engajamento de mulheres e profissionais de saúde, mas o assunto nunca esteve tão em pauta na sociedade brasileira. No entanto, para Raquel Marques, a mensagem ainda circula predominantemente na classe média e as soluções propostas vêm sempre via consumo com mulheres, mesmo com plano de saúde, contratando por fora médico, enfermeira obstetra ou ambos, além de doula, para tentar garantir um parto normal.

A luta para a redução da taxa de cesariana tem o apoio do Ministério da Saúde com o projeto Rede Cegonha e, mais recentemente, com as novas diretrizes da Agência Nacional de Saúde (ANS) como a obrigatoriedade do preenchimento do partograma que mostra a evolução do trabalho de parto e a assinatura da gestante com o consentimento para a cesariana eletiva (sem indicação médica). Mas para melhorar a experiência do parto e nascimento no país é necessário também discutir o excesso de intervenções no parto normal, muitas vezes desnecessárias e sem respaldo científico.

Quais são
Enfermeira obstetra do Hospital Sofia Feldman, do Hospital das Clínicas da UFMG e primeira secretária da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras (ABENFO-Nacional), Kelly Borgonove enumera quais são as intervenções mais comuns e que interferem no processo fisiológico de dar à luz.

Projeto 1:4 - Retratos da Violência Obstétrica; clique e saiba mais sobre a iniciativa
FOTO: Projeto 1:4 - Retratos da Violência Obstétrica; clique e saiba mais sobre a iniciativa (foto: Projeto 1:4 - Retratos da Violência Obstétrica; clique e saiba mais sobre a iniciativa )


Episiotomia
Corte que se faz entre a vagina e o ânus para, em tese, facilitar a saída do bebê durante o parto, a episiotomia não deve ser realizada de forma rotineira. Para se ter ideia de como a prática é comum no Brasil esse corte no períneo da mulher é realizado em 53,5% dos partos normais frente à recomendação de 10% da OMS. “A realização da episiotomia de rotina foi propagada no início do século passado. A ideia, defendida por alguns profissionais mesmo nos dias atuais, é que o procedimento preservaria o assoalho pélvico. Essa alegação, no entanto, não se sustenta visto que a própria episiotomia é uma‘laceração’ de segundo grau. Em um grande número de partos, quando não realizada a episiotomia, o que se constata são pequenas lacerações de melhor prognóstico e até mesmo períneos íntegros”, afirma Borgonove.

A especialista cita uma pesquisa publicada há mais de 30 anos (1983) que já demonstrava as evidências dos riscos associados ao procedimento, como dor perineal, edema, risco maior de infecção, dispareunia (dor na relação sexual) e hematoma. “Disponível na Biblioteca Cochrane, uma revisão sistemática com oito estudos mostra que a episiotomia de rotina não previne a asfixia perinatal e traumas cerebrais da criança; não previne as lacerações de 3º e 4º grau; não previne a incontinência urinária e o prolapso uterino ou vaginal; está associada a mais traumas perineais graves, maiores complicações de cicatrização e maior perda sanguínea”, salienta.

Atualmente, a recomendação da OMS é que a episiotomia deva ser considerada somente em alguns casos, já que todas as evidências disponíveis corroboram para o uso seletivo da técnica já que não há evidências consistentes que sustentem a indicação do procedimento.

Reprodução Internet
A Manobra de Kristeller é proibida em alguns países, mas ainda é pratica no Brasil (foto: Reprodução Internet )


Manobra de Kristeller
Proibida em alguns países, a Manobra de Kristeller ainda continua sendo realizada em muitas maternidades brasileiras. A técnica consiste em utilizar força física para empurrar o bebê para fora do útero da mãe. “Essa manobra pode trazer graves conseqüências tanto para a mãe quanto para o bebê. Para a parturiente, existe o risco de rotura e inversão uterina que podem provocar hemorragias graves, com risco de morte, descolamento prematuro de placenta, aumenta o risco de lacerações perineais graves, contusões e fraturas de costelas. Para o feto, pode haver lesões de órgãos internos, aumento da pressão intracraniana com possibilidade de hemorragias e cefalohematoma, hipóxia, fraturas na clavícula, trauma encefálico ou mesmo paralisia por lesão dos nervos que controlam os movimentos de mãos, braços e ombros. Além de todos esses riscos, não se verifica qualquer benefício materno ou fetal nas evidências científicas”, explica Borgonove. Em Belo Horizonte, foi lançada em outubro deste ano a campanha ‘BH livre de Kristeller’.

Jejum em trabalho de parto
Desde 1996, o Guia Prático de Assistência ao Parto Normal da OMS já recomendava a ingestão de fluidos durante o trabalho de parto. “Não existem evidências científicas que indiquem que a ingestão de alimentos durante o trabalho de parto seja prejudicial. Pelo contrário, a recomendação da OMS é corroborada por evidências atuais que demonstram que pode trazer benefícios. O jejum era empregado e obrigatório com a justificativa de que se a mulher precisasse de uma cirurgia haveria risco maior devido à anestesia, alegação sem embasamento científico”, esclarece a enfermeira obstetra.

Kelly Borgonove diz ainda que, estudo de 1998, já demonstrava que, na Holanda, onde apenas 14% dos obstetras apresentam conduta restritiva quanto à ingestão de fluidos, a mortalidade por Síndrome de Mendelson (pneumonite associada à aspiração de ácido gástrico) não é maior que em outros países. “Além disso, é muito rara a necessidade de anestesia geral durante o parto, principalmente em mulheres de baixo risco”, reforça a especialista.



Ocitocina sintética
A ocitocina sintética – hormônio que acelera as contrações durante o trabalho de parto - é uma medicação que também deve ser prescrita apenas quando há indicação. “Utilizada em algumas condições específicas, é um recurso para mulheres que precisam induzir o trabalho de parto por algum motivo clínico como, por exemplo, corrigir distócias de progressão do trabalho de parto ou ser usada em casos de hemorragia. Essa intervenção, como qualquer outra, deve ser discutida e acordada com a parturiente”, pondera Borgovane.

Usar a ocitocina sintética de forma rotineira aumenta o risco de taquissistolia (excesso de contrações) que pode resultar em dificuldades de oxigenação do feto ou mesmo em rotura uterina. O American Journal of Obstetrics & Gynecology publicou artigo em 2009 que mostra que a ocitocina é a droga mais usualmente relacionada a complicações perinatais preveníveis. “Além disso, as mulheres relatam aumento exagerado da sensação dolorosa da contração e seu uso excessivo durante o trabalho de parto aumenta o risco de hemorragia pós-parto”, observa a enfermeira obstetra.

Touissant Kluitters / AFP
Para prevenir as disfunções do assoalho pélvico uma das recomendações é o parto verticalizado, ou seja, nada de mulher deitada na posição ginecológica em caso de parto normal. Na foto, futuras mamães e papais simulam posição (foto: Touissant Kluitters / AFP )


Posição ginecológica
Para Kelly Borgovane, a liberdade de posição deve ser adotada e estimulada pela equipe que assiste a mulher. “A ciênica aponta que a permissão para a parturiente escolher a posição durante a primeira fase de trabalho de parto – deambulando (caminhado) ou outras posições verticais - não oferece maior risco, promove uma maior satisfação da mulher e está associada a uma menor necessidade de anestesia e menor duração do trabalho de parto”, explica.

Segundo ela, a posição ginecológica é perigosa em razão da compressão de grandes vasos, “restringindo o fluxo de sangue da placenta para o feto”. Além disso, pode ter efeitos desfavoráveis para a evolução do trabalho de parto pela diminuição da contratilidade uterina e dos diâmetros pélvicos, como já demonstrado em múltiplos estudos. “Revisão da Biblioteca Cochrane (2011) com 6135 mulheres mostra que o uso de posição vertical ou lateral comparado com posição supina ou litotomia está associado com segundo estágio do trabalho de parto mais curto, menos partos vaginais assistidos (fórceps ou vácuo extrator), menos episiotomias, menos relato de dor perineal grave e menos padrões anormais de frequências cardíacas fetais”, enumera.

Rompimento da bolsa
Em algumas situações, de acordo com a enfermeira obstetra Kelly Borgonove, como no caso de indução do trabalho de parto, pode-se romper a bolsa para desencadear as contrações. No entanto, ainda segundo a especialista, não existe evidência científica que a amniotomia de rotina e precoce acelere o trabalho de parto. “Em revisão com 4893 mulheres, a ruptura artificial das membranas ovulares foi associada à uma tendência a aumento do risco de uma cesárea. Deve-se também considerar que a amniotomia precoce é causa habitual de prolapso de cordão iatrogênico (condição que pode ocasionar asfixia perinatal grave ou mesmo óbito fetal)”, explica.

Tricotomia
Raspar os pelos pubianos é uma prática obsoleta, mas que ainda é realizada no Brasil. “A OMS considera a tricotomia como prática prejudicial ou ineficaz. O protocolo está muito relacionado com a ritualística que se criou em torno do parto normal no hospital e com a crença de que seu uso rotineiro reduziria o número de infecções no puerpério. Porém, as evidências atuais são insuficientes para apoiar tal crença, já que revisão sistemática recente demonstrou que não houve diferença em morbidade febril ou infecção de ferida perineal”, afirma Kelly Borgovane.

Foto do documentário 'A dor além do parto'
Foto do documentário 'A dor além do parto'. Lei do acompanhante não é respeitada no Brasil (foto: Foto do documentário 'A dor além do parto' )


Violência obstétrica
Ainda rechaçada frequentemente pela comunidade médica, em agosto deste ano, a OMS mapeou tipos de violência obstétrica com o objetivo de identificar e prevenir essas ocorrências nos serviços de saúde. Entre elas estão abuso físico, sexual e verbal, preconceito e discriminação, não cumprimento dos padrões profissionais de cuidado, mau relacionamento entre as mulheres e os prestadores de serviços e condições ruins do próprio sistema de saúde

A presidente da Associação Artemis, Raquel Marques diz que a ideia de violência obstétrica está geralmente atrelada à violência física com procedimentos dolorosos, sejam eles o excesso de exame de toque durante o trabalho de parto ou a anestesia da cesariana que não pegou. “Mas também contempla intervenções desnecessárias que muitas vezes estão tão atreladas às práticas dos profissionais de saúde que o autor ou a autora tem dificuldade em enxergá-las. No entanto, a violência obstétrica é também psicológica quando, por exemplo, mesmo com a lei que garante a presença do acompanhante de livre escolha da mulher, a gestante é deixada sozinha. Ela também pode ser moral quando a vida sexual da mulher é objeto de julgamento e a ideia é bem representada pelo ‘na hora de fazer não gritou’. As cicatrizes não necessariamente são físicas, mas da alma”, resume.

AFP PHOTO / Leon Neal
Kate Middleton deixou o hospital dez horas depois de dar à luz. Continuidade do cuidado para mãe e filha será dado por uma 'midwife' (foto: AFP PHOTO / Leon Neal )


Midwife
O interesse pela vida da realeza britânica, além da cobertura midiática em tempo real dos dois partos de Kate Midleton, trouxe para o Brasil a discussão sobre o papel da enfermeira obstetra no cenário do nascimento. Por lá, o termo usado é midwife (parteira, em tradução livre). O que é importante saber é que a enfermeira obstetra é uma profissional tecnicamente capacitada para prestar um cuidado seguro e de qualidade às gestantes sem complicações. “O parto em gestações de baixo risco, fisiológico, precisa de cuidado, que é a base da nossa profissão”, afirma Kelly Borgonove.

Revisão sistemática da Biblioteca Cochrane, de 2015, com 15 estudos e mais de 17 mil mulheres concluiu que modelos de cuidado guiados pelas midwives deveriam ser oferecidos para a maioria das mulheres, mas recomenda-se cautela para as gestações de alto risco. Borgonove diz que“mulheres que receberam cuidados neste modelo tiveram menos intervenções e foi demonstrado também a redução do uso de analgesias, menor número de partos com episiotomia ou instrumentais. Uma constatação importante é que não houve eventos adversos identificados em comparação com modelos guiado pelos médicos e modelos de cuidado compartilhado (médico + enfermeira obstetra)”.

A enfermeira obstetra tem seu exercício profissional garantido em lei no Brasil.