Pesquisa descobre novo vilão da esclerose múltipla

A produção aumentada de um tipo de célula do sistema imunológico tem importante papel na evolução da doença, que ataca o sistema nervoso. A descoberta deve ajudar no desenvolvimento de tratamentos e formas de diagnóstico

por Roberta Machado 02/11/2015 15:00
Valdo Virgo / CB / D.A Press
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Pessoas diagnosticadas com doenças autoimunes sofrem com a contradição de um organismo que trata a si mesmo como uma ameaça. No caso da esclerose múltipla, por exemplo, o mesmo sistema que deveria defender o corpo passa a destruir a mielina, uma preciosa camada protetora que envolve os nervos do sistema nervoso central e essencial para funções básicas, como a visão, a coordenação motora e o raciocínio. O problema é crônico e tem efeitos diferentes em cada paciente.

Os motivos dessa inversão de valores imunológica ainda são pouco compreendidos pela medicina, mas uma peça desse quebra-cabeça parece ter sido descoberta e é apresentada em artigo publicado  na revista especializada Science Translational Medicine. Pesquisadores descobriram que uma célula que parecia agir como coadjuvante no processo autoimune pode, na verdade, ter um papel crucial nessa condição neurológica.

O linfócito B tem a função de produzir anticorpos que, normalmente, protegem o corpo contra infecções. O problema é que essas moléculas podem agir como heroínas ou vilãs, amenizando ou estimulando o processo inflamatório. No caso das pessoas que sofrem com esclerose múltipla, os pesquisadores notaram que é o tipo nocivo dessas células que ganha destaque. Analisando amostras de sangue de pacientes, os cientistas notaram que uma subpopulação de linfócitos B está presente em maior quantidade e de forma mais ativa do que em pessoas saudáveis. Essa variação chamou a atenção por produzir uma proteína inflamatória chamada GM-CSF, conhecida por agir justamente no cérebro.

“Parte da nossa descoberta é que um tipo de molécula dentro de células conhecidas como moléculas STAT estão envolvidas na regulação do equilíbrio entre as respostas que expressam o pró-inflamatório GM-CSF e o anti-inflamatório IL-10. Essas moléculas parecem agir de forma anormal nos linfócitos B de pacientes com esclerose múltipla”, explica Amit Bar-Or, professor de neuroimunologia na McGill University e principal autor do estudo. “Acreditamos que essa pode ser parte da explicação de por que os linfócitos B de pacientes com esclerose múltipla apresentam a anormalidade GM-CSF, e isso tem importantes implicações terapêuticas para a enfermidade e, talvez, para outras doenças autoimunes”, completa.

Complexidade
As células foram testadas em uma cultura de sangue, na qual os cientistas puderam observar como elas agem no corpo humano. Nos experimentos in vitro, os linfócitos B produtores da citocina GM-CSF estimularam as células mieloides, que fazem parte do sistema imune, a produzir citocinas inflamatórias. Essas, por sua vez, ativaram as células T e desencadearam uma inflamação. “O mais importante nessa história é que a citocina GM-CSF está envolvida na ativação de outras células, como células macrófagas pró-inflamatórias do sistema imune, que podem causar danos diretos às células mielinizantes, além de ativar indiretamente as células-T pró-inflamatórias”, ressalta o autor do trabalho.

Tradicionalmente, acreditava-se que as células T eram as principais responsáveis pela destruição da mielina, causando a esclerose que caracteriza a doença crônica. A descoberta feita agora não descarta a responsabilidade desse tipo de células sobre a condição autoimune, mas revela que as ações das estruturas de defesa rebeldes, na verdade, estão envolvidas num complexo problema com muitos agentes, e que pode ser solucionado por outros ângulos. Ao remover os linfócitos B problemáticos, acreditam os pesquisadores, o efeito dominó seria interrompido, e a doença, amenizada.

Os resultados da pesquisa explicam, inclusive, por que um tipo de tratamento centrado na neutralização dos linfócitos B tem resultados positivos para os pacientes que sofrem de esclerose múltipla. Testes feitos com pessoas que passaram pela terapia comprovaram que o subtipo nocivo de células B era bastante reduzido, indicando que a opção medicinal poderia ajudar a combater um importante agente do processo que leva ao efeito autoimune.

Desafios

“Ainda não está claro se esses linfócitos B constituem uma linhagem distinta. Mais pesquisas devem estudar as condições do seu desenvolvimento, a estabilidade do seu programa transcricional e se elas podem ser visadas de forma mais específica”, aponta, em um comentário publicado na Science Translational Medicine, Ari Waisman, do Instituto de Medicina Molecular do Centro Médico Universitário da Universidade Johannes Gutenberg de Mainz, na Alemanha. “Um grande desafio será identificar os componentes específicos da rede da citocina e do meio que controla a geração e a manutenção dessas células”, ressalta.

Os autores do trabalho acreditam que novos tratamentos focados no subtipo celular identificado nesse estudo poderiam trazer grandes benefícios para quem sofre dessa e de outras doenças autoimunes. A identificação de um dos culpados da condição neurológica também pode auxiliar no diagnóstico do problema crônico, inclusive na classificação de sua gravidade, com base no nível de atividade celular em cada paciente e na avaliação da resposta do organismo aos tratamentos.