Todos os brasis

por Zulmira Furbino 30/09/2015 15:33

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Lelis
 

 

Do quarto de hotel, ouço o burburinho que vem lá de fora. Dou uma chegada na varanda. Por onde se olha, à frente, à direita e à esquerda, a maior avenida da cidade está repleta de barracas de lona plastificada azul.

São os vendedores ambulantes especializados em acompanhar romarias. Dormiram dentro das barraquinhas e agora já acordaram, coaram café, comeram pão com margarina e se preparam para mais um dia de luta. Alguns levam essa vida por necessidade, outros porque são “viciados em liberdade”.

A manhã avança e o sol começa a esquentar pra valer. Por volta das 11h30, surge uma voz no alto-falante. O locutor faz propaganda de carregadores de bateria de celular que custam R$ 20, e de toda espécie de artigos eletrônicos vindos do Paraguai.

Ele tem a voz agradável e convoca as pessoas a entrar na barraquinha. Debaixo de um sol inclemente, a oferta parece tentadora. “Só de entrar você já leva uma sombrinha”, avisa o ambulante marqueteiro.

Pausa na propaganda falada. A voz agora é a do Michel Teló. “Ai se eu te pego” (sinto que vou derreter).

Desço para um rolé e não demoro muito a descobrir que mergulhei no coração de todos os brasis. No momento em que Michel Teló se cala, um sujeito começa a tocar sanfona ao meu lado.

Os donos das barracas vieram para uma quermesse na qual, pelo menos para eles, o nome do santo pouco importa. Romaria também é business e se alguns têm fé, para outros é necessário sobreviver.

Protegido pela sombra de um ipê florido, um chinês chamado Chun, cujo significado em sua língua pátria é primavera, trouxe relógios masculinos e femininos, que expõe sob uma placa de madeira apoiada em duas caixas de papelão. Mais tarde, vejo-o de novo.

Sentado num meio-fio, com uma marmita nas mãos, ele está concentrado no almoço, enquanto um amigo brasileiro toma conta dos produtos que vieram da China. Está visivelmente cansado, mas não me parece infeliz.

Apesar do calor, a rua inundada de barracas azuis está lotada de fregueses. Um senegalês, que vende blusas e camisetas, tenta capturar um cliente, mas sua dificuldade com o português não ajuda muito.

Na barraquinha de roupas indianas vindas do Braz, um casal paraibano que mora em Cambuí comemora cinco anos na estrada da vida de barraqueiros. Marido e mulher estão vindo de um jubileu e já planejam seguir para outras três cidades.

Nessa vida estradeira, os problemas a serem superados são muitos: arranjar banheiro para fazer as necessidades é um dos principais. Raramente as casinhas químicas estão em condição de uso e o jeito é apelar para bares e restaurantes, em geral pagando pelo uso.

Banho também não é uma coisa fácil de arranjar. E nunca dá pra dormir direito no chão da barraca por causa da preocupação com as mercadorias, dos bichos e porque, quando chove, tudo vira um caos.

Um grupo de velhinhos e velhinhas de roupas ultracoloridas, quase todos negros, empunha violinos, tambores, violões e acordeons e começa a tocar música de folia de reis e congado ao lado da igreja.

Do outro lado da praça, três músicos equatorianos, vestidos com penachos e cocares, tocam música instrumental ao som da quena, flauta tubular usada pelo povo inca, cujos primeiros exemplares eram feitos com ossos de condor e lhamas, e que hoje é fabricada com bambu.

Por volta das oito da noite, quem rezou, rezou. Quem não rezou, rezasse. A romaria vira festa pagã.

“Alô mulherada, hoje eu tô facinho”, toca o sertanejo universitário que embala o comércio nas barraquinhas, o churrasquinho, a cerveja e a cachaça nas calçadas.

Próximo dali, um paraibano tenta convencer os passantes a comprar cobertores e colchas, apesar do calor infernal. Há quatro meses ele não pisa em Brejo da Cruz, no interior da Paraíba, onde deixou a mulher e o filho.

O radiofalante começa a tocar Moacyr Franco.

“Ainda ontem, chorei de saudade. Relendo a carta, sentindo o perfume. O que fazer com essa dor que me invade, mato esse amor ou me mata o ciúmeeee”.

É só mais uma noite que começa, um dia que acaba.

Vida que segue.