Infecções bacterianas graves aumentam o risco de perda irreversível da audição

Cientistas dos EUA descobrem que a gravidade da inflamação e uma classe de antibióticos usada para tratá-la afetam células sensoriais, provocando surdez

por Isabela de Oliveira 04/08/2015 15:00
Clique na imagem para ampliá-la e saiba mais

Nas unidades de terapia intensiva (UTIs), não são raros os momentos em que médicos se veem diante de um dilema: prescrever uma droga que certamente salvará o paciente da morte, mas deixará sequelas irreversíveis ou apostar em um tratamento menos agressivo. Resultados de uma pesquisa divulgada  na Science Translational Medicine podem ajudá-los na decisão pelo menos na hora de optar pelos aminoglicosídeos: classe de antibióticos usada contra infecções graves, porém causadores de traumas permanentes, entre eles, a surdez.

Pesquisadores da Universidade de Saúde e Ciência do Oregon, nos Estados Unidos, descobriram que, quanto mais grave for a infecção bacteriana, maior será o risco de perda irreversível da audição. Ou seja, pessoas em estado crítico, as que mais dependem do medicamento, são também as mais suscetíveis aos efeitos colaterais. Na realidade, não é novidade para médicos e cientistas que os aminoglicosídeos são substâncias perigosas para as bactérias e para os pacientes: além da surdez, podem culminar em paralisia neuromuscular e insuficiência renal, especialmente em doses elevadas.

No entanto, ainda que a lista de efeitos adversos seja velha conhecida dos especialistas, ninguém sabe ao certo se a interação entre a infecção e a droga aumenta o risco para sequelas. “Em resumo, nossos dados sugerem que os pacientes que recebem aminoglicósideos para doenças bacterianas fatais têm maior risco de ototoxicidade (lesão no ouvido provocada por substâncias químicas) do que reconhecido anteriormente”, alerta o otorrinolaringologista Peter Steyger, pesquisador-sênior do estudo.

Ele explica que os aminoglicosídeos são indispensáveis para o tratamento de infecções que impõem risco de morte, como meningite, bacteremia (presença de bactérias no sangue) e infecções respiratórias em fibrose cística. Mas, em contrapartida, aniquilam as células sensoriais que detectam som e movimento. Elas estão protegidas no ouvido interno, especificamente na cóclea. Mesmo escondidas, podem ser alcançadas pelas moléculas do medicamento, que ultrapassam a barreira sangue-labirinto, uma camada impermeável de células que protege o fluido do ouvido interno do sangue que corre livremente no corpo.

Casos graves
Nos estudos, Peter Steyger notou que gravidade da doença potencializa esse fenômeno: a inflamação generalizada em ratos com sepse grave — quando a bactéria ou outro micro-organismo entra na corrente sanguínea e afeta o sistema imunitário — dilatou ainda mais os capilares da barreira sangue-labirinto, permitindo que uma quantidade maior da droga alcançasse a cóclea e, consequentemente, matasse mais rapidamente as células indispensáveis para ouvir. Ratinhos saudáveis também foram testados e, ao contrário dos doentes, sofreram com efeitos adversos mínimos. Para o autor, esse é um indicativo de que a inflamação agrava a toxicidade da droga para o ouvido.

Bruno Loredo, otorrinolaringologista do Hospital Santa Luzia, em Brasília, acredita que os resultados têm pouco impacto na vida do paciente comum, visto que essa classe de antibióticos não é prescrita corriqueiramente nos consultórios. “Na realidade, é uma informação importante mesmo para médicos que se veem encurralados no tratamento de pacientes graves sem muitas opções. Com as descobertas, eles terão motivos a mais para avaliar se realmente não existe um segundo caminho a ser seguido”, pontua o especialista brasileiro.

Recém-nascidos

Apesar de restrito, o debate é válido. Afinal, aponta Bruno Loredo, a maior sequela da surdez em um recém-nascido é a dificuldade de desenvolvimento que ele terá anos depois da infância. Steyger acredita que os resultados também poderão romper com a espécie de consenso de que o preço que alguns pacientes têm de pagar para sobreviver deve ser indiscutivelmente alto. “Precisamos trazer para clínicas alternativas, que não sacrifiquem tanto os doentes. Quando as crianças perdem a audição, enfrentam um processo longo e árduo para aprender a ouvir e falar. Isso interfere na trajetória educacional e no desenvolvimento psicossocial, o que pode ter um impacto dramático sobre a empregabilidade, a renda e a qualidade de vida”, confirma o autor.

Dados norte-americanos mostram que 80% dos 600 mil bebês submetidos aos cuidados intensivos a cada ano recebem o medicamento. Desses, de 2% a 4% perdem a capacidade auditiva. Em crianças que não necessitam desse regime de internação, contudo, o índice é de 0,1% a 0,3%. Felizmente, diz Bruno Loredo, os pequenos podem ter a qualidade de vida recuperada com o implante coclear, um equipamento eletrônico que imita a função das células mortas por meio de eletrodos que enviam impulsos elétricos ao cérebro. “Os aminoglicosídeos também afetam irreversivelmente a audição de adultos, e eles podem usar o implante. Porém, costumam encontrar dificuldade para se adaptar, ao contrário das crianças”, completa o brasileiro.

Versão melhorada
Pesquisadores da Universidade de Stanford publicaram na edição de maio da revista Journal of Clinical Investigation uma versão de aminoglicosídeo modificada que penetra nas células ciliadas sem prejudicar o ouvido. No estudo, ratos com infecção urinária tratados com a nova droga foram curados sem apresentar danos ao ouvido nem aos rins, outra complicação comum relacionada ao uso geral de antibióticos de maneira geral. Ao impedir que os compostos invadam as células ciliadas, será possível prevenir o efeito colateral.


Tentativa de reversão
“O uso dessa droga é frequente, mas nem tanto, pois ela é praticamente hospitalar, não há apresentação oral, somente intravenosa. A toxicidade bem conhecida deixa o médico entre a cruz e a espada, mas ele sempre opta por salvar a vida em detrimento da audição. As perdas auditivas por medicamento, e no caso específico dos aminoglicosídeos, só são reversíveis se forem detectadas no início do uso do remédio, que precisa ser suspenso. Mas hoje existem trabalhos que procuram encontrar medicamentos para proteger o ouvido da ototoxicidade. A ideia é que eles sejam administrados concomitantemente ou antes do antibiótico. Ainda estão em testes, não existem na clínica ainda. A Universidade de São Paulo é um expoente nesse tipo de estudo.”
Thomaz José Marra de Aquino, otorrinolaringologista com doutorado pela Universidade de São Paulo