Adoro um poema de Adélia Prado que diz assim: “Uma ocasião/Meu pai pintou a casa toda de alaranjado brilhante./Por muito tempo moramos numa casa,/como ele mesmo dizia, constantemente amanhecendo”.
Se, aos prantos, me recusava a entrar na escola por não conhecer ninguém, ele contornava a situação e me convencia a encarar o desafio, mas esperava lá fora batendo altos papos com o guarda Pelé, até ter certeza de que tudo estava bem.
Não gostava quando eu saía para a faculdade de batom, marcando sua bochecha com um beijo apertado, mas limpava a mancha vermelha com os olhos brilhando de achar graça.
Como era velhinho, magro e pequeno, dava pra carregá-lo com um abraço que o suspendia no ar, a um palmo do chão. Nessas ocasiões, batia os pés e ficava bravo de mansinho, desmanchando dúvidas de espantos.
Tecia ao meu lado manhãs de inverno, costurava lembranças com o azul do céu, desmanchava tristezas com um galho de riscar o chão. E me contava causos, que esqueci, da sua vida de tropeiro.
Uma vez, aos 82 anos, desabafou comigo, chorando de saudade, porque minha mãe viajou e não voltou a tempo de comemorar o aniversário dele. Para depois arrematar: "depois ela reclama se eu olho pras morenas".
Quando me casei, se emocionou tanto que não conseguiu entrar comigo na igreja. Os papéis se inverteram, de modo que fui buscá-lo num banco lá da frente para que ele chegasse comigo ao altar.
No fim do casamento, enquanto a família seguia para um almoço, ele passou mal e foi hospitalizado. Quando abri a porta do quarto, ele me viu, levantou a cabeça, deixou-a cair, fingindo um desmaio, e disse brincando:
– Morri!
Para um homem que nasceu nas portas do sertão, em 1903, cresceu no meio do mato, foi tropeiro e fazendeiro e depois perdeu tudo o que tinha, para nunca mais recuperar, sua doçura com a família era incrível.
Ele só não perdoava Deus. E a si mesmo. Por isso, durante bastante tempo bebeu muito (para minha tristeza completa).
Dentro das suas possibilidades, foi o melhor pai do mundo. Mesmo sem dinheiro, dividia comigo tudo o que tinha. E me dava sábios conselhos, como terminar com um namorado, que, segundo ele, nunca havia sido “homem” para mim.
Meu pai era Yin, minha mãe era Yang.
Ele, princípio, feminino e passivo. Ela, princípio ativo, masculino e cheio de luz.
Nossa comunicação mútua era impressionante e dispensava palavras.
Quando adoeceu e foi internado, sonhei que me pedia para proibir meus irmãos de entrar no quarto em que estava, pois precisava morrer e não conseguia fazer isso perto dos filhos.
No dia seguinte ele foi para a UTI.
Sonhei de novo que me pedia para ajudá-lo a tirar os tubos que o ajudavam a respirar, os cateteres que permitiam que seu corpo fosse hidratado e que os medicamentos que o mantinham vivo escorressem pelas veias.
Meia hora antes de partir, ele pediu ao médico que arrancasse todos aqueles tubos e agulhas que levavam a medicação intravenosa. Sem saber o que estava ocorrendo, mais ou menos naquele momento pedi ao universo que acontecesse o que fosse melhor para ele. Pouco depois, meu pai se ausentou do mundo, vindo morar para sempre presente em mim.
Eu estava grávida e me senti terrivelmente triste, mesmo sabendo que, “se por um lado a vida nos machuca, por outro ela se justifica pela renovação”, como veio escrito num cartão que recebi de amigos.
Naquele tempo, minha casa não era pintada de alaranjado brilhante – como depois esteve por muito tempo –, meu pai não estava mais aqui, e, no entanto, a vida, que de tão bonita chega a ser cruel, me prometia maravilhosas transformações.
Desde então, às vezes anoiteço, mas levo a vida como se estivesse constantemente amanhecendo.