OMS anuncia que deixará de considerar transgeneridade um distúrbio

Ao anunciar que iniciou a transição para o gênero feminino, o ex-atleta Bruce Jenner lançou luz sobre a condição de pessoas que não se identificam com o sexo de nascimento

por Roberta Machado 18/05/2015 13:00

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STAN HONDA
Bruce Jenner (foto: STAN HONDA)
“Sim, para todos os efeitos e propósitos, eu sou uma mulher.” Aos 65 anos, o ex-atleta olímpico Bruce Jenner surpreendeu o mundo ao revelar que, desde a infância, tem uma “alma feminina” e que está passando por um tratamento de mudança de sexo. Jenner hoje é conhecido como o patriarca da família Kardashian, graças a um reality show. Contudo, mais de 40 anos atrás, ele era um herói, vencedor no decatlo nos Jogos Olímpicos de 1970, em Montreal, e símbolo de orgulho dos EUA na Guerra Fria.

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O desabafo feito durante entrevista à tevê no último dia 24 quebrou o estereótipo de virilidade esperado de um atleta e pai de família — Jenner foi casado três vezes, tem seis filhos e afirma que mantém a preferência por mulheres. “É importante aprender com essa experiência, de quando pessoas fazem essa ruptura e confrontam forças que as estavam impedindo de fazê-lo. Porque elas (as forças opostas) normalmente são tanto sociais quanto internas”, avalia Vanessa Fabbre, professora da Universidade de Washington e especialista em transições de gênero na terceira idade.

Jenner revelou a intenção de passar pela transição e disse que chegou a iniciar o tratamento hormonal na década de 1980, abandonado depois. Afirmou ainda que viveu “uma mentira a vida toda”. “A idade em que um indivíduo desenvolve o senso de gênero é, geralmente, muito jovem. Mas estamos sempre desenvolvendo a percepção que temos de nós”, aponta Fabbre.

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Estima-se que uma em cada cem pessoas sejam transgêneras, isto é, não se identificam com o gênero associado ao seu sexo de nascimento (veja quadro), e alguns desses indivíduos optam por passar por um processo de redesignação sexual. A Organização Mundial da Saúde (OMS) costumava tratar a condição como um transtorno de identidade de gênero, uma condição necessária para a recomendação da cirurgia de mudança de sexo. No entanto, a entidade já não classifica o transgeneridade como uma condição patológica e estuda mudar sua qualificação na Classificação Internacional de Doenças (CID, na sigla em inglês).

A condição emocional causada pela insatisfação do indivíduo transgênero é hoje tratada como “disforia de gênero”, uma condição que exige intervenção especializada para adaptar o corpo do paciente à imagem que ele tem dele mesmo. “É crítico ressaltar que os transgêneros passam por aflição emocional resultada não só da pressão externa, da discriminação, mas também da insatisfação causada por estar em um corpo que não corresponde à sua identificação de gênero”, ressalta Rafael Mazin, conselheiro sênior do Escritório da OMS nas Américas.

A mudança de classificação deve ser incluída na próxima edição do CID, na qual uma seção será dedicada exclusivamente a condições que não são mais consideradas distúrbios, mas exigem algum tipo de intervenção médica. Com a ressalva, a OMS espera manter a garantia de que indivíduos transgêneros continuem recebendo tratamento de redes públicas e particulares.

O processo transexualizador deve ser acompanhado por endocrinologistas, psicólogos e psiquiatras. Depois de receber o diagnóstico que aponta a necessidade do tratamento, recomenda-se que o homem ou a mulher passe por ao menos dois anos de terapia psicológica e hormonal antes de se submeter à cirurgia de mudança de sexo. “Temos de ter certeza do diagnóstico da transexualidade. Não podemos indicar uma cirurgia radical desse tipo baseando o laudo em um conhecimento precoce”, alerta Amanda Athayde, diretora do Departamento de Endocrinologia Feminina e Andrologia da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem).

Durante o tratamento hormonal, o indivíduo começa a desenvolver características físicas do sexo oposto. Os homens desenvolvem mamas e sofrem uma redistribuição da gordura corporal, enquanto as mulheres notam aumento dos pelos corporais e da musculatura. Segundo a imprensa americana, Jenner iniciou a transição em 2013 e estaria se preparando para passar pela cirurgia de redesignação sexual.

Estudos do cérebro
As causas da transgeneridade ainda são motivo de amplo debate, mas há especialistas que defendem a hipótese da existência de possíveis origens biológicas para a condição. Um artigo de revisão feito por pesquisadores da Escola de Medicina da Universidade de Boston avaliou 40 estudos sobre o tema e sugere que a identidade de gênero é uma condição biológica que não pode ser suprimida por meio de intervenção psicológica.

A literatura examinada pelos especialistas mostra que há diferentes características biológicas que podem definir a identidade de gênero, como características de determinadas áreas do cérebro e genes relacionados à função hormonal. “Esse trabalho representa a primeira revisão compreensiva da evidência científica de que a identidade de gênero é um fenômeno biológico”, declara, em um comunicado, Joshua Safer, médico endocriologista e principal autor do trabalho.

O estudo analisa uma das hipóteses mais exploradas: a diferenciação sexual do cérebro. A maioria dos artigos incluídos no levantamento menciona características em determinadas partes do órgão que podem ser causa ou indicativo da transgeneridade. O neurocientista holandês Dick Frans Swaab é um dos citados pela análise acadêmica e propõe que a discrepância pode acontecer devido ao fato de a diferenciação sexual do cérebro acontecer somente depois da diferenciação das gônadas em ovários ou testículos. “Durante o período intrauterino, uma onda de testosterona masculiniza o cérebro fetal, enquanto a ausência dessa onda resulta em um cérebro feminino. Como a diferenciação do cérebro ocorre em um estágio muito posterior ao da diferenciação sexual da genitália, esses dois processos podem ser influenciados de forma independente”, escreveu Swaab no estudo.

Já alguns estudos realizados com cadáveres de mulheres transexuais apontaram que elas apresentavam estruturas cerebrais de características femininas, embora tivessem nascido homens. Outro estudo da Universidade de Medicina de Viena, de 2008, apontou como possível causa o gene CYP17, que está relacionado com níveis elevados dos hormônios sexuais estradiol, progesterona e testosterona.