A menina que falou um palavrão

"Não havia maldades plantadas por trás dessa decisão. É que os pais queriam mostrar a ela que não se pode dizer uma coisa dessas"

por Zulmira Furbino 16/03/2015 14:20

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EM/D.A Press
"Quase nunca mais falou palavrão"... (foto: EM/D.A Press)
No quintal da casa na Rua Pomba, no Bairro Carlos Prates, a menina catava poesia nas pedras, que enfileirava em linha reta no chão, como se fossem carros na rua. E acreditava quando o irmão dizia que bastava virar de costas para elas se moverem de verdade.

O quintal era grande e a mãe devia ter pouco mais do que a idade que a menina – que já deixou de ser menina – tem agora, embora aquela criança continue escondida lá dentro, comendo pão com açúcar e batatinha frita com limão no jantar.

Tinha grama e tinha mato nesse quintal. A mãe lavava roupa e punha para quarar ao sol, enquanto lençóis balançavam no varal.

A ponte entre a casa e o quintal era uma escada de concreto com o reboco quebrado, mostrando tijolos como se fossem músculos; cimento como se fossem veias.

Vista do quintal, a casa tinha dois andares, mas aos olhos da menina parecia um castelo desmanchando.

Na parte de baixo, havia um aposento que chamavam de quarto dos meninos. Era um lugar meio proibido, e, por isso mesmo, o preferido da menina, nascida para rebeldias.

A vida era sempre igual, mas às vezes ficava diferente.

Certo dia, a menina xingou um filho da puta e aquela felicidade interiorana bem no meio da capital levou um susto.

Os motivos não vêm ao caso, ou aliás, até vêm, mas a memória da menina não anda prestando pra nada.

Ela só se lembra de que soltou o palavrão do alto da escada e ele foi voando, voando, voando, flanando pelo quintal que nem gaivota no mar em busca de peixe e, pum!, mergulhou feito mágica no ouvido da mãe.

Pra quê!!!

O pai ficou sabendo. As irmãs ficaram sabendo. Houve um concílio familiar.

Providências haviam de ser tomadas para que a menina nunca mais soltasse um palavrão assim!

Tudo tão diferente de hoje, quando, num domingo à noite, a menina que mora dentro da mulher nem precisa abrir a janela para ouvir palavrões muito mais horríveis voando das janelas e das varandas dos prédios vizinhos como se fossem os pássaros do filme do Hitchcock.

E olha que, hoje, ela tem apartamento de papel passado e vive num bairro muito mais nobre do que aquele onde ficava a casa que parecia um castelo desmoronando.

O resultado do concílio foi: devemos castigar a menina!

Não havia maldades plantadas por trás dessa decisão. É que os pais queriam mostrar a ela que não se pode dizer uma coisa dessas.

Então, a menina foi levada para o porão e deixada lá – pensando – por uma (longa) hora. Foi o que bastou para que o quarto dos irmãos, que ela tanto adorava visitar, se transformasse num horrível cadafalso.

Na parede lateral do porão do castelo que desmoronava havia uma janela relativamente grande voltada para a escada que tinha músculos e veias. Presa lá dentro, a menina chorava baldes e toda vez que alguém subia e descia a escada implorava por socorro.

Não se espante. É que essa menina sempre foi meio esquisita. Nasceu para liberdades e não gostava de comer. Mas de café ela gostava demais.

Tanto que a família achou que aquilo estava passando dos limites e, a cada vez que ela pedia café, alguém dizia que ele estava salgado. Claro que ela não acreditou e quis provar. Estalou a língua e sentiu um gostinho de satisfação quando percebeu que o café não tinha sal coisa nenhuma. Aí pediu mais, só que dessa vez haviam posto sal de verdade. A menina entalou, cuspiu e quase vomitou.

Como não comia nada, essa menina parecia uma tripinha. E a coisa que ela mais detestava era ovo. Pois para que se alimentasse (com ovo), inventaram um tal de mexidão mágico, manjar de deuses, reis, princesas, príncipes, rainhas e afins.

Ela caiu nessa e raspou o prato.

– Gostou da comida?

– Hamham.

– Viu só?! Você diz que não gosta de ovo, mas tinha ovo no mexido...

Aí a menina, que também nasceu para sinceridades, não aguentou e, talvez por isso, tenha soltado o nome feio.

Chorou, chorou e chorou e, ao mesmo tempo, foi tirando a roupa, peça por peça, até ficar quase nua, consumando, com uma modernidade precoce, o primeiro grande protesto da sua vida.

Mas quase nunca mais falou palavrão...