Pacientes com Parkinson têm mais criatividade

Constatação é de pesquisadores israelenses após testes de aptidão artística feitos com 54 voluntários. Dopamina, substância usada no tratamento da doença, pode explicar característica

por Bruna Sensêve 14/10/2014 10:21

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Mãos por vezes trêmulas e capazes de esculpir engenhosas obras de arte. Aparentemente improvável, essa é a realidade de Carlos Anibal Pyles Patto, de 67 anos. Ele foi diagnosticado com a doença de Parkinson em 1989, quando era piloto ativo da Aeronáutica. A aposentadoria veio em 2000 e, 10 anos atrás, surgiu a arte. Carlos Anibal acredita que sempre teve inclinação para ela, mas começou a produzir somente quando surgiu mais tempo livre e, simultaneamente, a doença começou a avançar. Hoje, trabalha com madeira, gesso, resina, entre outros materiais. Confessa apenas a dificuldade com detalhes finos, driblada por um potencial criativo sem igual. A história excepcional chama atenção, mas não surpreenderia a pesquisadora israelense Rivka Inzelberg, da Universidade de Tel Aviv. Um estudo liderado por ela e publicado na revista Annals of Neurology documenta a criatividade excepcional de parkinsonianos e demonstra definitivamente que eles são mais criativos que seus pares saudáveis.

Antonio Cunha/CB/D.A Press
Carlos Anibal mostra as peças esculpidas por ele depois que descobriu que tinha a doença de Parkinson: dificuldade apenas nos detalhes (foto: Antonio Cunha/CB/D.A Press)
Esse diferencial em pacientes com Parkinson já era percebido por Inzelberg. Em 2012, ela relatou o particular sucesso criativo em indivíduos diagnosticados com o problema na publicação Behavioral Neuroscience. No artigo, a pesquisadora e a equipe liderada por ela revisaram estudos de caso de todo o mundo e descobriram uma consistência nos resultados. Desde então, começaram testes empíricos para verificar qual seria a ligação entre a doença e a inclinação artística. “Tudo começou com a minha observação de que as pessoas com Parkinson têm um interesse especial na arte e nos passatempos criativos incompatíveis com suas limitações físicas”, detalha. Outro fator observado foi que os pacientes que ingeriam altas doses de medicação eram ainda mais criativos que os menos medicados.

“Em minha pesquisa atual, realizamos o primeiro estudo abrangente para medir esse pensamento criativo. Essa não era uma tarefa simples. Como se faz uma medida ou se quantifica a criatividade? Nós mesmos tivemos de pensar criativamente (para resolver isso)”, diz Inzelberg. Os pesquisadores realizaram uma bateria completa de testes em 27 voluntários com a doença degenerativa e tratados por meio de medicamentos e 27 pessoas saudáveis. Todos os participantes tinham idade e nível educacional semelhantes. Os testes incluíram o exame de fluência verbal, em que uma pessoa é convidada a falar palavras diferentes que começam com uma determinada letra ou de uma determinada categoria (frutas, por exemplo).

Os voluntários foram, então, convidados a se submeter a um teste mais desafiador de associação remota, em que tinham que nomear uma quarta palavra (após três dadas) dentro de um contexto fixo. Se o exercício trazia as palavras maçã, banana e mamão, o participante deveria perceber que elas fazem parte do contexto frutas e nomear uma quarta, pêra, por exemplo. Os grupos também foram testados quanto à interpretação de imagens abstratas. O objetivo desse atividade era avaliar a imaginação inerente a respostas e perguntas como “o que você pode fazer com sandálias?”. Durante todas as provas, os participantes com Parkinson deram respostas mais originais e interpretações mais pensativas do que os voluntários saudáveis.

CARLOS MOURA/CB/D.A PRESS
Coral formado por integrantes de associação: pesquisa indica melhora namovimentação, na voz e fala (foto: CARLOS MOURA/CB/D.A PRESS)
Surpresa musical
O militar aposentado Carlos Anibal pode ser considerado um dos melhores exemplos das conclusões a que os pesquisadores da instituição israelense chegaram. Ele é presidente da Associação de Parkinson de Brasília, cujos integrantes se reúnem todas as tardes de sábado na Escola Classe da 206 Sul e se dedicam a atividades artísticas como principal incentivo à realização de movimentos. O coral de música popular é uma delas.

A música como terapia para parkinsonianos também tem suporte científico. Duas vezes ao mês, um grupo diversificado de pessoas com a doença se reúnem no Northwestern Memorial’s Prentice Women's Hospital, em Illinois, nos Estados Unidos, e comprovam a teoria. “Nosso objetivo é encontrar novas abordagens para ajudar esses pacientes a tratar a doença”, explica Diane Breslow, coordenadora e assistente social do Centro de Terapia pela Arte do hospital. “Muitas vezes, com a doença de Parkinson, há um medo do futuro e do desconhecido. Queremos dar a esses pacientes uma melhor maneira de viver com a doença.”

Além dos benefícios psicológicos, Breslow observa melhoria da coordenação motora e do movimento funcional, consciência postural e enriquecimento da fala e da voz. “Na parte de música, os pacientes estão aprendendo o conceito de ritmo que os ajuda a melhorar a marcha e o movimento.”

Comum na terceira idade
A principal causa da doença de Parkinson é a morte das células do cérebro, principalmente na área chamada de substância negra, que está ligada à produção da dopamina. Segundo o manual , a doença degenerativa e progressiva afeta um em cada 250 indivíduos com mais de 40 anos e um em cada 100 que tenham passado dos 65 anos. Em geral, começa de forma assintomática. Depois, em dois terços dos pacientes surgem os tremores rítmicos da mão, que desaparecem durante o sono. Outros sintomas associados ao início da doença são rigidez muscular, distúrbios da fala, dificuldade para engolir, depressão, distúrbios do sono, respiratórios e urinários. O tratamento pode ser medicamentoso, psicoterápico e até cirúrgico.

Influência de um neurotransmissor

A doença de Parkinson evolui envolvendo preferencialmente o sistema motor. Somente na fase tardia, a cognição passa a ser comprometida, podendo ocorrer, inclusive, a demência associada. Neurologista do Centro de Doença de Alzheimer e Parkinson do Rio de Janeiro (CDAP/RJ), Vanderson Carvalho Neri explica que o estudo israelense que relaciona o problema degenerativo e a criatividade não descreveu o tempo médio de sintomas dos participantes. Ele acredita que certamente foram incluídos pacientes na fase inicial ou intermediária da doença, até mesmo porque a existência de demência foi considerada como critério de exclusão. Portanto, diz o médico, a administração de dopamina nessa fase poderia, sim, ter impacto em várias funções cerebrais, inclusive nas descritas pelos autores, como criatividade verbal e visual.

Um fator que muitas vezes pode mascarar essa informação é a ingestão, durante o tratamento, de outros medicamentos que causem efeitos colaterais e que interfiram nessas funções. “Entretanto, trata-se de um estudo inédito, com importantes informações nos quesitos que se propõe avaliar e que nos desperta para a necessidade de estimular a criatividade desses pacientes também como um aspecto para melhorar a qualidade de vida deles”, avalia.

Neri ressalta que a terapia dopaminérgica, mais prescrita para pacientes com Parkinson, não inclui apenas a administração de levodopa, droga que, no cérebro, se converte em dopamina, mas também dos antagonistas ao neurotransmissor, isto é, as substâncias que favorecem a liberação da dopamina intraneuronal. O médico lembra que, com a evolução inexorável da doença, há uma degeneração neuronal, inclusive do córtex cerebral. Portanto, ele considera que os resultados estão relacionados ao tipo de tratamento utilizado e à fase de evolução da doença em que os pacientes foram estudados.

“A avaliação com testagens específicas para esses achados certamente confirma isso. Na prática clínica, esse fato não é tão fácil de ser observado, uma vez que, em nosso sistema de saúde, muitas vezes não é possível, ou viável, a aplicação de tantos questionários de avaliação cognitiva”, argumenta. Assim, essa diferença não se torna tão evidente, não é percebida ou relatada com frequência pelos cuidadores, mesmo em serviços com grande número de pacientes como o deles. O neurologista acredita que esse é um dado a mais sobre o universo do Parkinson e serve para elucidar outro aspecto da doença: a cognição, o que seria importante para o desenvolvimento de procedimentos de reabilitação, também cognitiva, além das técnicas motoras já existentes para estimular funções cerebrais. (BS)

Efeitos diversos
É um neurotransmissor reduzido no cérebro do parkinsoniano e reconhecidamente envolvido no processo motor. A dopamina participa de uma série de outras vias cerebrais, como as ligadas à memória, ao sistema de recompensa, à atenção, ao sono, ao humor e à aprendizagem. Trata-se, portanto, de um neurotransmissor muito variado, com muitas vias partindo do seu local de origem: a substância negra do cérebro. Se falta dopamina, a motrocidade automática de um indivíduo é interrompida. Essa pessoa, então, passa a ter dificuldade para realizar movimentos simultâneos, como andar e conversar ao mesmo tempo. O cérebro acaba se ocupando em cuidar de tarefas que deveriam ser automáticas e deixando de lado outras funções importantes. A dopamina é prescrita no tratamento de pacientes com Parkinson justamente para estimular o funcionamento de vias que estejam se tornando latentes pela falta dela.