Ciência tenta relacionar mundo onírico com aprendizado, memória e disfunções do cérebro

Leia entrevista com Sidarta Ribeiro, diretor do Instituto do Cérebro

por Flávia Duarte 12/09/2014 15:03

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No começo, a estudante Cibele Pereira, 25 anos, temia os próprios sonhos. Achava que, se ousasse interpretá-los, eles teriam o atrevimento de se tornarem realidade. Quando um conhecido aparecia nos pensamentos noturnos, ela logo achava que tinha alguma mensagem a dar ou a receber daquela pessoa. Aos poucos, porém, descobriu que as figuras do sonho, fossem protagonistas ou figurantes, sempre querem dizer algo de si próprios. “Vejo o sonho como um autoconhecimento, o que vou sonhar são coisas só minhas. Sou eu falando comigo mesma. A gente tenta dar ouvido para si mesma, como se fôssemos duas pessoas”, explica. Agora, quando sonha com alguém, o exercício é avaliar o que aquela pessoa significou em sua vida. É um bom começo para decifrar por que um personagem específico apareceu nos sonhos dela.

Zuleika de Souza/CB/D.A Press
"Vejo o sonho como um autoconhecimento, o que vou sonhar são coisas só minhas. Sou eu falando comigo mesma. A gente tenta dar ouvido para si mesma, como se fôssemos duas pessoas" Cibele Pereira, 25 anos (foto: Zuleika de Souza/CB/D.A Press)
Nesse papo tão particular, Cibele deixou a superstição de lado e passou a procurar indícios de sua própria personalidade em conteúdos tão impalpáveis. Na terapia, entendeu que aqueles sonhos insistentes, em que sempre aparecia discutindo com uma pessoa mais velha, dizia muito sobre seu comportamento na rotina desperta. Cibele tinha problemas com autoridade. Considerava que os de mais idade são figuras inquestionáveis e, portanto, alguém cujas opiniões e posicionamentos não se poderiam contrariar.

Pelos sonhos, entendeu que podia se posicionar, ainda que o interlocutor tivesse mais idade. “Isso fez melhorar muito meu relacionamento com minha mãe, por exemplo”, considera. Pela mesma via, compreendeu que precisava expor seus sentimentos com mais naturalidade. Quem reforçou esse comportamento que as amigas próximas já percebiam foi o inconsciente. Nos sonhos, Cibele, muitas vezes, aparecia segurando o choro. Igualzinho como faz com suas emoções.

“Por isso, procuro anotar os sonhos e depois os analiso. Eles fazem com que eu pense sobre certos assuntos e tiro uma conclusão aqui, outra ali. Alguns sonhos hoje apresentam temas com menos força, o que significa que já superei algumas questões”, comenta. “Mas também não fico paranoica de que todo sonho diz alguma coisa”, pondera a moça.

ENTREVISTA/ SIDARTA RIBEIRO

Uma análise matemática
Diretor do Instituto do Cérebro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, o biólogo, biofísico e neurofisiologista Sidarta Ribeiro coordena pesquisas que buscam mensurar e esclarecer cientificamente a função dos sonhos. Eles tentam relacionar o mundo onírico com aprendizado, memória e até disfunções do cérebro.

Como as pesquisas em ratos podem desvendar a função dos sonhos?
As pesquisas com ratos servem para estudar os mecanismos eletrofisiológicos e moleculares responsáveis pelo papel benéfico do sono no aprendizado. Para estudar sonhos humanos, fazemos registros eletroencefalográficos de pessoas expostas a estímulos (imagens, videogames) e, depois, imagens durante o sono. Buscamos encontrar relações quantitativas entre o conteúdo dos sonhos e os padrões de ativação cerebral durante fases específicas do sono.

Wallacy Medeiros/Divulgação
(foto: Wallacy Medeiros/Divulgação)
Com que propósito vocês se dedicam a pesquisas com essa temática?

Estamos interessados na análise matemática de relatos verbais dos sonhos de pacientes psiquiátricos ou neurológicos para realizar diagnósticos diferenciais. Também perseguimos uma linha de pesquisa aplicada sobre o impacto do sono pós-aula no aprendizado escolar. Temos ainda uma linha de pesquisa estritamente comportamental sobre comunicação vocal, para explorar os limites da simbolização em primatas não humanos.

O que acontece no cérebro quando sonhamos?
Diversas regiões corticais e subcorticais são bombardeadas por neurônios localizados em regiões mais profundas do cérebro, causando uma reverberação vívida de memórias previamente adquiridas. O envolvimento da área tegmentar ventral, que libera dopamina em circuitos relacionados com a busca de recompensas e a evitação de punição, faz do sonho mais do que uma simples reverberação de fragmentos recombinados de memórias: os sonhos são movidos por nossos desejos, como postulou Freud, representando simulações de comportamentos adaptativos (a se copiar na vida real) ou de comportamentos não adaptativos (a se evitar na vida real).

Será possível, um dia, compreender pela ciência o conteúdo dos sonhos ou será sempre um papel da psicanálise?
Embora já seja possível decodificar sonhos usando ressonância magnética funcional, isto é feito com precisão muito baixa. Provavelmente, a técnica vai evoluir muito no futuro próximo, mas não acredito que ela se livrará da subjetividade inerente à interpretação dos sonhos. O conteúdo dos sonhos só faz sentido para o sonhador e seus eventuais interlocutores íntimos, como, por exemplo, a figura do psicanalista. Não acredito que a compreensão do sonho ou qualquer outro aspecto da consciência humana pode se valer de um atalho biológico que exclua a subjetivação psicológica.

Por que alguns se lembram mais dos sonhos que outros?
Todas as pessoas sadias sem lesões cerebrais sonham, mas poucas se lembram disso. As pessoas que relatam não ter sonhos, quando investigadas num laboratório de sono e despertadas durante uma fase específica do sono em que ocorrem movimentos oculares rápidos, normalmente relatam sonhos. Com os sonhos, existe uma grande queda na liberação do neurotransmissor noradrenalina, que está envolvido no processo atencional e na formação de memórias duradouras. Quando despertamos, o nível de noradrenalina sobe rapidamente, mas se a pessoa não mentaliza o conteúdo do sonho e rapidamente se engaja em outras atividades, o conteúdo do sonho se perde.

Os sonhos são importantes para o aprendizado?
Existem evidências abundantes do papel do sono na consolidação de memórias, mas o papel dos sonhos no aprendizado, embora identificado há mais de 100 anos por psicólogos como Carl Jung, só teve a primeira evidência experimental em 2011, com a publicação de um estudo do grupo de Robert Stickgold, da Universidade de Harvard. Ele mostrou que o aprendizado da navegação de um labirinto virtual foi muito maior em pessoas que sonharam do que em pessoas que não sonharam. Ainda há muito a descobrir no que diz respeito ao papel dos sonhos para a cognição.

Como vocês conseguem confirmar diagnósticos de bipolaridade e esquizofrenia por meio de sonhos?
Em colaboração com o professor Mauro Copelli, da UFPE, demonstramos que relatos de sonhos de pacientes psicóticos permitem diferenciar pacientes esquizofrênicos, bipolares e indivíduos sadios. Isso é possível porque existem diferenças estruturais grandes entre os relatos verbais desses grupos. Em colaboração com o professor Leandro Malloy-Diniz, da UFMG, usamos técnica semelhante para diferenciar pacientes com  Alzheimer de pacientes com transtorno cognitivo leve.