Sem medo de polêmica, pesquisador tenta decifrar relação entre sexo e religião

Historiador norueguês Dag Oistein Endsjo não se intimidou em abordar dois dos maiores tabus da humanidade em uma só tacada

por Carolina Samorano 18/07/2014 08:30

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O jardim das delícias terrenas. Óleo sobre madeira de Hieronymus Bosch realizado entre 1480 e 1505. (foto: Reprodução)
O historiador norueguês Dag Oistein Endsjo, estudioso da história da religião e professor da Universidade de Bergen, na Noruega, não se intimidou em abordar dois dos maiores tabus da humanidade em uma só tacada no seu último livro, lançado neste ano no Brasil, Sexo e religião — dos bailes de virgens ao sexo sagrado homossexual (Editora Geração, 376 páginas). Defensor dos direitos humanos, Endsjo acredita que a compreensão de que sexo e religião estão intimamente ligados desde os primórdios é o primeiro passo rumo a uma cultura de respeito às diferenças de credo e de orientação sexual.

“Penso que entender melhor essa relação nos leva à origem do preconceito e ensina como lutar contra ele. Mas é importante estar ciente de quão enormes são as diferenças nas várias religiões no que diz respeito ao sexo, e ainda dentro de cada religião”, sublinha o autor. De fato, alguns credos não encontram acordo nem mesmo internamente — a regra pode variar segundo região geográfica ou influência de segmentos conservadores. Na maioria dos países orientais, o celibato de padres católicos nunca vingou. O próprio conceito de ato sexual varia muito. Se for restritivo (exclusivamente penetração vaginal), os devotos estão autorizados, por exemplo, a praticar sexo oral sem macular a pureza. Se for amplo, como o de certas práticas hinduístas no Nepal, casais não podem sequer trocar carinhos em público.


Sem dúvida, relações entre pessoas do mesmo sexo continuam um ponto controverso. Porém, já foram consideradas sagradas por budistas no Japão e na China. Inclusive, alguns mosteiros chegavam a acolher homossexuais, o que já não ocorre, especula o autor norueguês, por influência do modelo de desenvolvimento ocidental. “Não há uma única definição, mas, de forma geral, para as religiões, todo ato sexual que não leve à reprodução não é aconselhável”, acrescenta o médico ginecologista e sexólogo Amaury Mendes Júnior, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Assim, sexo anal, sexo oral, troca de casais, enfim, tudo o que visa ao prazer e não à reprodução é condenável”, continua o especialista.

No caso da Igreja Católica, alguns estudiosos acreditam que o sexo, homo ou hétero, é cercado de tanta culpa que parece um crime, como afirma o teólogo Todd Salzman, especialista em antropologia sexual e professor de ética na Universidade de Creighton, uma instituição católica nos Estados Unidos. “Devido a várias heresias dualistas na igreja primitiva e algumas primeiras interpretações das escrituras sobre as atitudes negativas em relação à sexualidade humana, a tradição cristã, em geral, tem tido uma atitude bem negativa em relação ao sexo. Esse foi certamente o caso católico”, diz. “Por exemplo, no caso de pecados sexuais, não existia a noção de maior ou menor gravidade. Todos os pecados sexuais eram muito graves e potencialmente mortais, sendo que até o homicídio poderia ser justificado em certas situações. Algumas denominações, claro, vão além dessa visão e apreciam a expressão sexual em um contexto ‘apropriado’, como os relacionamentos comprometidos.”

Somado a isso, Endsjo acredita ainda que, embora as religiões tenham testemunhado nos últimos anos um afrouxamento da condenação a coisas como o divórcio e o sexo antes do casamento, quando o assunto é homossexualidade, o diálogo permanece frio. “A atitude mais positiva em relação ao sexo por parte dos conservadores veio acompanhada de mais condenação contra gays e lésbicas”, sublinha o autor. “Ao mesmo tempo, é importante lembrar que muitos fiéis, como a maioria dos católicos europeus e nas Américas, não têm mais nenhum problema com a homossexualidade”, pondera.

O que não tira, ele diz, a parcela de culpa das religiões pelo ódio contra homossexuais, além de mulheres ou pecadores. Salzman concorda. “Eu acho que os cristãos e outros religiosos frequentemente foram intolerantes e opressivos, especialmente com relação a gays e lésbicas. E essa opressão e intolerância levou a violações fundamentais dos direitos humanos. O epítome desse fanatismo é encontrado em vários países africanos e do Oriente Médio, onde ser homossexual pode levar à prisão ou à execução. Tais leis e o uso de crenças religiosas para defendê-las são contraditórios com a chamada para amar a Deus e ao próximo”, defende o teólogo.

Pontos quentes - Alguns assuntos abordados por Dag Oistein Endsjo em seu livro:
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O pecado original. Afresco de Michelangelo, realizado entre os anos de 1508 e 1512 na Capela Sistina. (foto: Reprodução)
Sexo
É sinônimo de “intercurso sexual vaginal” para a maioria das religiões. Mas há muitas nuances. Judeus ultraortodoxos de Jerusalém, por exemplo, têm ônibus específicos para homens e mulheres, porque só o contato entre pessoas do sexo oposto já é considerado uma indecência. No Nepal hindu, os turistas são advertidos para evitarem troca de beijos e carinhos em público. No cristianismo, Jesus dizia que não era necessário sequer contato físico para que alguém fosse culpado de infidelidade sexual: bastava olhar com paixão para uma mulher.

Quanto à nudez, no século 16, o papa Júlio II não se importou com as figuras bíblicas nuas de Michelangelo na Capela Sistina. Anos depois, o pontífice Paulo IV convocou seguidores do artista para “vestir” as pinturas. Para os muçulmanos, idealmente ninguém deveria se mostrar nu, embora na prática a regra valha muito mais para mulheres do que para homens — salvo exceções, como no Irã, onde, depois da revolução de 1979, os homens perderam seu direito de se vestir como bem entendessem.

A definição de sexo influi diretamente no comportamento sexual dos fiéis. Segundo o autor, uma pesquisa de 2012 mostrou que 27% de um grupo de universitários que haviam se comprometido com alguma instituição cristã conservadora a se abster de sexo antes do casamento conseguiram se manter firmes no seu compromisso ao longo de um ano, exceto pela prática de sexo oral. “Muitas pessoas, inclusive clérigos, julgam que sexo oral não é sexo”, explica o teólogo norte-americano Michael Lawler. O argumento é que o ato não gera filhos.

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Xilogravura japonesa shunga, sub-gênero erótico do movimento de arte ukiyo-e. Séculos 17 e 18. (foto: Reprodução)
Abstinência e virgindade

De acordo com o livro, muitos jovens católicos em países das Américas e na África veem no sexo anal uma forma de protegerem a virgindade das mulheres. No entanto, ainda que a virgindade, especialmente a feminina, seja extremamente valorizada, Endsjo diz que uma pesquisa de 2007 conclui que 21% dos protestantes e 28% dos católicos não acreditavam na gravidez da Virgem Maria.

Grávida ou não, as religiões continuam pregando que é melhor ser como a santa do que entregue ao sexo. Endsjo lembra uma citação de 400 a.C. atribuída a Buda em que ele diz ao monge Sudinna que antes o seu pênis ficasse preso em uma cova com carvão ardente ou engastado na boca de uma serpente venenosa que na vagina de uma mulher. O apóstolo Paulo, por exemplo, dizia que desejava que todos fossem como ele, ou seja, abstinentes, e os que não conseguissem, que se casassem. O livro continua: no cristianismo primitivo, acreditava-se que uma única virgem na família poderia salvar a todos, pais e irmãos. No Brasil católico, no século 17, apenas 14% das filhas de famílias importantes na Bahia se casaram. Outras 77% foram para conventos.

Para os católicos conservadores, a abstinência assumiu nova versão para o que eles chamam de “inclinação homossexual”. Segundo o autor, há hoje no cristianismo uma crescente convicção de que homossexuais nascem assim, são “criados” por Deus. No entanto, ao mesmo tempo, acreditam que um relacionamento entre pessoas do mesmo sexo não está de acordo com os preceitos cristãos. Assim, pregam que quem nasce homossexual deve manter-se abstinente.

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O inferno. Afresco de Luca Signorelli realizado entre os anos de 1499-1505 na Catedral de Orvieto. (foto: Reprodução)
Masturbação

No fim do século 19, o adventista do sétimo dia John Harvey Kellogg se mostrou muito preocupado com o que chamava de “pecado secreto” da masturbação, que seria, segundo ele, uma porta de entrada para outras práticas luxuriosas, além do que poderia levar a doenças como a epilepsia e até a loucura. Assim, ele passou a recomendar medidas de correção à masturbação especialmente em jovens, como colocar gaiolas sobre os órgãos sexuais e, para os meninos, a circuncisão sem anestesia, porque as dores teriam “efeito pedagógico”. Para as meninas, a solução seria esfregar ácido carbólico no clitóris.

A Bíblia não veta especificamente a prática solitária, mas, no judaísmo, a Torá afirma que toda ejaculação contém impurezas. No entanto, a masturbação masculina acabou proibida na religião dentro da crítica do profeta Isaías ao sacrifício de crianças. O “desperdício” do sêmen seria o mesmo que tirar a vida de futuras crianças. Já a feminina, era irrelevante, porque não trazia consequências à procriação. Hoje, o judaísmo é bem brando com relação a essa antiga regra. No islamismo, não há muito consenso: ao passo que os xiitas condenam, as outras variantes da religião nunca chegaram a nenhum acordo sobre até que ponto ela deve ser proibida ou não. No budismo, como as mulheres sempre foram vistas como seres movidos por desejo, a masturbação sempre foi um problema para elas. A elas são vetados legumes como consolos, além de que devem tomar cuidado para não sentir prazer ao lavar suas partes íntimas. Quando menstruadas, também não devem usar absorventes muito rentes ao corpo nem nadar contra a corrente.

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Miniatura anonima hindu, império Moghul (foto: Reprodução)
Homossexualidade

O autor coloca o budismo como a religião historicamente mais positiva em relação ao sexo entre homens, muitas vezes considerado até sagrado. Alguns mosteiros budistas no Japão eram famosos por abrigar homossexuais. Anos mais tarde, por volta do ano 1 a.C., quando o budismo começou a ganhar força na China, o sexo entre homens passou a ser aceito na região também. Ao contrário das outras religiões, para as quais a única função do sexo é a procriação, o budismo considera este o pior aspecto do sexo, logo, a homossexualidade era bem tolerada. Entre mulheres, porém, nem tanto. Como a religião via a mulher como um ser movido a desejos sexuais, o sexo entre duas mulheres não era bem-visto.

Embora outras religiões tenham um histórico de intolerância, o autor lembra que é muito clara a transformação pela qual passaram nas últimas décadas. Muitos países hoje têm leis em favor do casamento homossexual, ainda que aprovadas quase sempre sob dura oposição de religiosos radicais. Na Noruega, por exemplo, a legislação foi aprovada em 2008 com 66% dos deputados a favor, e mesmo o Partido Popular Cristão, único a votar contra a lei da união civil em 1993, afirmou na ocasião que a lei deveria “seguir em vigor para assegurar aos homossexuais um âmbito jurídico para sua vida em comum”.

A mudança é ainda mais claramente vista entre os seguidores, segundo os especialistas. “Seres humanos estão sempre em estado de evolução e, por isso, sempre se pode esperar que valores sexuais e religiosos mudem para estarem de acordo com a humanidade evolutiva e seus valores evolutivos”, comenta o teólogo Michael Lawler.

Já para o estudioso Faramerz Dabhoiwala, autor do livro As origens do sexo (Editora Biblioteca Azul), alguns países, especialmente onde os religiosos detêm o poder político, como no Oriente Médio e na África, a lei religiosa ainda impõe penas duras para o adultério e a homossexualidade. “Mas, desde o Iluminismo do século 18 e do que eu tenho chamado de ‘primeira revolução sexual’, o mundo ocidental tem caminhado por um rumo diferente. Sexo tem sido cada vez mais tratado como um assunto privado, e a igualdade para todos os seres humanos — homens, mulheres, hetero ou homossexuais, negros ou brancos — lentamente tornou-se o princípio orientador dos assuntos éticos e políticos. É por isso que, embora ainda existam preconceitos, as atitudes ocidentais em relação ao sexo são tão diferentes das do resto do mundo”, opina.