HIV traiçoeiro: vírus ainda assombra perfil diversificado de pessoas

Especialistas alertam que a redução da mortalidade e da infecção causadas pelo vírus da Aids não pode minimizar o caráter ameaçador dele

por Bruna Sensêve 17/07/2014 15:31

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Em pouco mais de 10 anos, a incidência da infecção pelo HIV caiu 33% e, hoje, quase 10 milhões de soropositivos vivem com o auxílio de tratamento antirretroviral no mundo — de um universo de 35,3 milhões de infectados. Os avanços são inegáveis para uma epidemia que também registra números cada vez menores de mortalidade. Se em 2005 foram 2,3 milhões de óbitos, a taxa chegou a 1,6 milhão em 2012, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). As taxas mais promissoras inspiram declarações de que o fim da Aids estaria cada vez mais próximo. Mas esses pronunciamentos motivam a ação ou podem minimizar o real perigo da doença? Um especial da revista Science publicado hoje quer responder a essas questões ao mesmo tempo em que a OMS alerta: pessoas com maior risco de contrair a Aids não estão recebendo os cuidados de que necessitam.

Ted Aljibe/AFP
Ativistas pedem o fim dos estigmas ligados à Aids: profissionais do sexo, transgêneros e usuários de drogas estão entre os mais ameaçados (foto: Ted Aljibe/AFP)
Um boletim divulgado hoje pela instituição mostra que o não fornecimento de serviços adequados a cinco populações-chave ameaça o progresso global na resposta à doença. Esse grupo é formado por homens que fazem sexo com homens, presos, usuários de drogas injetáveis, profissionais do sexo e transgêneros. A definição da OMS tem como base um conjunto de comportamentos de alto risco que os colocam em maior exposição ao vírus. Segundo a instituição, há ainda outro agravante para a situação: essas pessoas também são menos propensas a ter acesso à prevenção, aos testes e ao tratamento. “Em muitos países, elas são deixadas de fora dos planos nacionais contra o HIV, e as leis e as políticas discriminatórias são as principais barreiras a esse acesso”, descreve a OMS.

A entidade divulgou diretrizes que devem delinear passos para que os países alcancem uma redução no número de novas infecções e aumentem o acesso ao teste, às terapias e aos cuidados contra o HIV. As informações antecipam dados que deverão ser discutidos durante a Conferência Internacional de Aids, em Melbourne, na Austrália, de 20 a 25 deste mês. As recomendações incluem uma ampla gama de abordagens clínicas que, para serem eficazes, demandam a remoção de barreiras jurídicas e sociais. Um dos pontos específicos trata de homens que fazem sexo com homens.

A indicação é de que as nações passem a utilizar como prevenção o método adicional de profilaxia pré-exposição (PrEP) com o preservativo. Isso porque as taxas de infecção entre eles continuam a ser elevadas em quase todos os países. Acredita-se que, globalmente, uma redução de 20% a 25% na incidência de HIV nesse público poderia ser alcançada por meio dessa estratégia, evitando até 1 milhão de novas infecções em mais de 10 anos. O risco dessa população de contrair o vírus é 19 vezes maior que as pessoas em geral. O índice é 14 vezes maior que o de profissionais do sexo e menor que o calculado para transgêneros e usuários de drogas injetáveis, ambos com risco 50 vezes maior.

Segundo o diretor do Departamento de HIV da OMS, Gottfried Hirnschall, é preciso considerar que esses grupos não vivem em isolamento. “Profissionais do sexo e seus clientes têm maridos, esposas e parceiros, sendo que alguns usam drogas injetáveis, e muitos têm filhos”, lembra. Hirnschall acredita que ainda existem lacunas significativas nos planos nacionais. Apenas 70% dos países pesquisados explicitamente abordam as necessidades de homens que fazem sexo com homens e profissionais do sexo, enquanto que o valor para usuários de drogas injetáveis foi de 40%. Transgêneros são raramente mencionados nos planos de HIV e, mesmo onde as políticas existem no papel, o acesso é dificultado.

Avanços terapêuticos
Ainda assim, muitas notícias são otimistas quanto a uma possível erradicação do HIV. Países com alta prevalência de infecção ampliaram os programas de prevenção da transmissão vertical (de mãe para filho), e novas infecções pediátricas passam a ser raras. Mudanças terapêuticas levaram ao início precoce do tratamento antirretroviral e, especialmente, a medicação continuada de gestantes. As novidades, sem dúvidas, trazem maior esperança rumo ao fim da epidemia, mas igualmente podem representar um risco. Essa é a opinião de Wafaa El-Sadr, diretor do Centro Internacional para o Cuidado da Aids e Programas de Tratamento (ICAP), da Universidade de Columbia, um dos autores convocados pela Science.

Segundo ele, o sucesso iminente pode implicar em uma percepção errônea que minimize os desafios que permanecem, resultando na retirada de recursos e consequente ressurgimento da suposta doença “controlada”. “Embora a incidência global tenha diminuído, novas taxas de infecção entre usuários de drogas injetáveis, homens que fazem sexo com homens e mulheres jovens na África continuam alarmantes.” O especialista, assim como Hirnschall, garante que, em muitos casos, abordagens ousadas se mostram mais efetivas.

Uma estratégia polêmica e bem-sucedida teve iniciativa australiana. Lá, foi lançado um programa de troca de seringas e agulhas que promove a entrega de material esterilizado para usuários de drogas. Quando iniciada, em novembro de 1986, a estratégia era uma violação da legislação antidrogas. Hoje, é chamada de redução de riscos. Em muitos dos países vizinhos, como a Indonésia e a Malásia, pessoas que injetam drogas são responsáveis pelos percentuais mais elevados de infecções. Na Austrália, por outro lado, apenas 17 dos 3.490 usuários de drogas injetáveis que fazem testes de HIV anualmente foram infectados entre 1995 e 2012.

O relato é do grupo de pesquisadores liderado pelo epidemiologista John Kaldor, do Instituto Kirby para Infecção e Imunidade na Sociedade, em Sidney, na edição de janeiro da revista Aids. O último relatório de vigilância anual descobriu que, entre 2008 e 2012, o uso de drogas injetáveis foi responsável por apenas 2% dos novos diagnósticos de HIV na Austrália. Os homens que fazem sexo com homens representaram a maioria dos novos diagnósticos (67%), seguido por sexo heterossexual (25%).

Antes do contágio
Nessa intervenção, não há a necessidade de contato com o vírus para que a medicação seja iniciada. O coquetel de antirretrovirais é fornecido a pessoas de grupos vulneráveis e expostos ao risco de infecção. Quando feita de forma consistente, reduz o risco de infecção em até 92%. O método de prevenção faz parte das estratégias de combate à infecção pelo HIV em diversas partes do mundo. No Brasil, é testado em 100 voluntários do Rio Grande do Sul, estado com maior incidência de Aids do país.

Deborah Persaud comanda a terapia tratada como potencial cura da Aids
Vírus ressurge em bebê de Mississipi
Cargas de HIV foram detectadas no bebê de Mississippi. A criança nascida prematuramente há quatro anos em uma clínica do Mississipi (EUA) ficou conhecida por ter sido a primeira presumidamente curada da infecção após receber antirretrovirais logo após o parto. O grande feito foi noticiado globalmente no início do ano passado, em uma conferência sobre Aids e na renomada revista científica New England Journal of Medicine. Os exames de agora, porém, jogam um balde de água fria em investidas que seguem esse tipo de intervenção em busca da eliminação da doença.

“Cientificamente, esse desenvolvimento nos lembra que ainda temos muito mais a aprender sobre os meandros da infecção pelo HIV e sobre onde o vírus se esconde no corpo”, disse Anthony S. Fauci, diretor dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos. Ele se refere aos santuários de HIV, locais do corpo compostos por células infectadas, mas afastadas da corrente sanguínea e com o vírus em estado latente. Juntas, essas duas condições fazem com que o micro-organismo não seja atingido pelos antirretrovirais, contribuindo para a manutenção da infecção.

No caso do bebê de Mississippi, a vitória e a provável cura da infecção estaria na hipótese de que, como ele foi tratado tão rapidamente, não houve tempo para a deposição do vírus nesses locais. A mãe soropositiva transmitiu o vírus ao bebê durante o parto e depois de uma intensa e precoce terapia com antirretrovirais, não apresentou níveis detectáveis do vírus. Diferentemente do procedimento padrão, a equipe da infectologista Deborah Persaud interrompeu o tratamento e, surpreendentemente, o bebê se manteve sem o vírus no sangue.

Outro caso de criança recém-nascida curada da infecção pelo HIV foi relatado pela mesma equipe neste ano. Na época, Persaud detalhou a infecção debelada em um recém-nascido em Los Angeles, também nos Estados Unidos. Ainda sob o tratamento com antirretrovirais, a segunda criança a obter a cura funcional foi submetida a terapia ainda mais cedo que a primeira: com apenas quatro horas de vida. Ela, diferentemente da primeira criança, é mantida sob tratamento desde então. Com a nova condição, os pesquisadores querem entender o que permitiu que o bebê permaneça sem tratamento por mais de dois anos e, ao mesmo tempo, sem o vírus detectável e resposta imunológica mensurável.