Dor deixou de ser sintoma para se transformar na própria doença para 60 milhões de brasileiros

A dor como ela é: veja o emocionante depoimento de cinco pessoas que se viram obrigadas a conviver diariamente com o problema físico e, por consequência, emocional

por Gláucia Chaves 16/04/2014 13:00

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Quando algo não vai bem, a presença dela é garantida. Ainda que, em alguns momentos, não seja possível detectar exatamente o que ela está sinalizando, a dor é um importante sintoma. Quase como um aviso de que é preciso prestar mais atenção a si mesmo. Assim como o corpo, porém, ela também é complexa: às vezes, a dor é tão intensa que deixa de ser sintoma e passa a ser a própria doença. A partir daí, torna-se uma companheira inseparável e igualmente desagradável. Entendê-la e conviver com ela é um desafio — mas não necessariamente o fim.

Como saber, porém, que a dor já passou para outro nível? José Tadeu Tesseroli de Siqueira, presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED), explica que um indicativo usado é o tempo. Se a dor que surgiu a partir de algum procedimento, como uma cirurgia, por exemplo, não desaparece mesmo após o tempo que seria esperado, há chances de ela se tornar crônica. “Hoje, estipula-se cerca de três meses como o mínimo para definir uma dor como crônica, embora essa estimativa seja controversa”, frisa. O número é apenas um ponto de partida, segundo o médico, porque a dor pode insistir em ficar devido a um diagnóstico impreciso, por exemplo.

Em outras palavras: a dor crônica é aquela que persiste, a despeito da cicatrização, e não tem valor biológico algum. Ela não serve mais para indicar que algo está errado e não é mais um aviso — é a própria doença. “Ela passa a agregar problemas secundários, como imobilidade, distúrbios do sono, alterações de humor, quadro depressivo e até mesmo tendências suicidas”, enumera Siqueira. O problema é quando o profissional não está preparado para reconhecer que a dor já ultrapassou a linha do sintoma e passou a ser doença. É importante que o diagnóstico da dor crônica, explica José Siqueira, seja feito por médicos especializados em dor.

"Sinto como se eu fosse uma prisioneira" - Patrícia Alvarista, 43 anos, ex-cabeleireira

Gustavo Moreno/CB/D.A Press
(foto: Gustavo Moreno/CB/D.A Press)
O que causa a dor: fibromialgia

“A fibromialgia é uma doença que prejudica muito a memória. Por isso, não lembro muito bem as datas em que meus problemas foram acontecendo. Tenho desde criança, mas só fui diagnosticada quando vim para Brasília. Sempre que ia ao médico, achavam que era dor na coluna, por conta do meu trabalho. Eu era cabeleireira. Passei a perder meus movimentos até que fiquei 120 dias sem andar. Fui ao médico e ele pediu meu histórico. Descobri que uma das vezes que dei entrada no hospital, eu já tinha sido diagnosticada com fibromialgia, mas o médico não me comunicou nem me explicou como deveria proceder.

Ele me passou uma medicação muito forte, que, depois, descobri que só poderia ser usada uma vez por mês. O médico me orientou a tomar todos os dias. Achei milagroso, porque em três dias voltei a trabalhar, mas, em um mês, engordei 20kg, porque alterou minha tireoide. Desde então, meu metabolismo foi para o espaço. Fiquei novamente sem andar, achei que nunca mais conseguiria voltar. Sinto dores todos os dias. Tenho todos os 18 pontos desenvolvidos (a doença caracteriza-se por 18 pontos de dor fundamentais). Dizem que a doença não é incapacitante, mas como se eu mesma era cabeleireira e estou há anos sem conseguir voltar a trabalhar? Hoje, se tento cortar o cabelo de alguém aqui de casa, tremo de dor. Os médicos disseram que minha doença é muito grave, que posso esquecer a minha profissão.

O que mais maltrata a gente é a falta de tratamento multidisciplinar. Na rede particular, fui até onde deu, mas, agora, estou sem tratamento. As medicações são caras e não posso pagar. Fui a Recife para me tratar. Fiquei dois anos, mas voltei porque meu marido mora aqui. Lá, eu conseguia acupuntura, fisioterapia, hidroterapia, mas em Brasília tudo isso é muito caro e não se consegue nada pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Temos muitos problemas financeiros por causa disso, porque tive que parar de trabalhar e não conseguimos mais bancar os tratamentos. Fui ao Ministério da Saúde, mas me informaram que eles só podem fazer algo por instituições.

Criei a Associação dos Portadores de Fibromialgia e queremos uma campanha de sensibilização da fibromialgia, como fazem com o cigarro e com a bebida. Queremos legalizar a associação, mas não é fácil. O difícil é lidar com pessoas que sentem dor todos os dias. Elas ficam desanimadas e desistem da luta. Temos um grupo de apoio, tentamos ajudar e chamar o pessoal para lutar, mas a maioria desiste.

Quero atendimento para ter pelo menos um pouco de qualidade de vida. As pessoas dizem que me veem forte. Mas isso é uma coisa que mexe muito com o psicológico. Tenho fadiga crônica, então durmo e acordo muito cansada. Tem dias que sinto tanta dor que não sei nem por onde começar a contar para o médico. Se saio de casa um dia, fico outros três sem conseguir levantar. Sinto como se eu fosse uma prisioneira. A fibromialgia precisa ser tratada pelo emocional e, raramente, conseguimos um psicólogo.

Só de falar em futuro, já sinto vontade de chorar. Cada dia que passa, sou mais prisioneira da cama. Como vou pensar em futuro? As pessoas ajudam no começo, mas, quando veem que é uma dor contínua, terminam se afastando. Quem quer conviver com uma pessoa que sente dor o tempo inteiro? A gente vai perdendo a parte social da vida. Não lembro a última vez que saí para passear. Sei que, se eu tivesse tratamento, poderia ter menos dores e viver. O problema é achar. A realidade é que somos invisíveis, assim como as clínicas de dor do DF.”


Tipos de dor

A dor crônica está presente em praticamente todas as especialidades médicas. Veja algumas:
» Músculo-esquelética
» Pós-operatória
» Pós-traumática
» Ação degenerativa na coluna
» Dores de cabeça

Tratamentos
» Fermacológico
» Reeducação postural
» Hipnoterapia
» Massoterapia
» Fisioterapia
» Musicoterapia
» Ozonioterapia
» Cirurgia
» Radiofrequência
» Implante de marcapasso para alívio da dor
» Implante de bombas que bombeiam medicação em baixas doses

Fonte: José Oswaldo de Oliveira Jr, neurocirurgião, diretor da Unidade de Dor do Hospital A.C Camargo e diretor do Departamento de Terapia da Dor e Cirurgia Funcional da Escola de Oncologia Celestino Bourroul.

"A dor é muito pessoal, as pessoas não entendem" - Danny Nunes de Sousa, 32 anos, agente da Polícia Civil

Janine Moraes/CB/D.A Press
(foto: Janine Moraes/CB/D.A Press)
O que causa a dor: espondilite anquilosante

“Eu tinha acabado de passar em um concurso e estava sentindo várias dores na região da clavícula, no ombro e no dorso. Achei que era por conta de má postura, porque ficava muito tempo sentado, estudando. Fui a vários ortopedistas e nada resolvia. Tomava anti-inflamatórios, mas só amenizavam a dor. Meu pai é médico e me encaminhou a um reumatologista. Fiz uma bateria de exames e, paulatinamente, o médico fechou o diagnóstico. Comecei o tratamento em 2007. A espondilite anquilosante é como se fosse artrite reumatoide.

Tenho parte da bacia rígida, porque a doença começa como uma inflamação e vai necrosando. Se eu não tratar, minha coluna pode virar um osso só. Na pior crise, que coincidiu com o período em que eu não estava tomando a medicação, comecei a ter dores no ombro, no dorso, nas costas e no joelho. Fiquei muito amargurado, tive depressão, porque eu estava em um trabalho bem específico, que exigia treinamento, postura.

Sentia uma ardência entre os ossos, nas articulações. É como se tivesse alguma coisa queimando dentro de mim. Tenho que manter meu corpo em movimento. Se eu durmo muito, já sinto meu corpo rígido, como se meus ossos estivessem se contraindo. A depressão atrapalhou a melhora. Passei por várias etapas do tratamento e, durante cada uma delas, tive acompanhamento constante, com medicações que amenizavam os sintomas. Mas a doença é autoimune e não tem cura. Cheguei a ficar alguns períodos de atestado médico porque não conseguia me mexer.

Cheguei na fase final do tratamento e, há dois anos e meio, tomo um remédio biológico. Ele é distribuído pela Secretaria de Saúde e é muito caro, só tomo porque preencho todos os requisitos. Tive três crises fortes antes de começar, cheguei a ficar imóvel por algum tempo. Preciso fazer exame de sangue de três em três meses, porque o remédio baixa a imunidade. A doença vai retrocedendo por conta da baixa imunidade, mas me deixa exposto a outros problemas. Compenso com alimentação saudável, atividade física e vida regrada. Tomo uma injeção a cada 15 dias. Cada caixa vem com duas injeções e custa R$ 7.500. Não teria a menor condição de comprar.

A princípio, consegui me readaptar. Tenho restrição médica, então, não é permitido que eu faça certos serviços da polícia. É complicado porque, visualmente, a pessoa está inteira. A dor é muito pessoal, as pessoas não entendem, então, você está sujeito a críticas. O povo te chama de preguiçoso. E, como você está sentindo dor, acaba não tendo a mesma performance. Em crises graves, não consigo abaixar para amarrar o sapato. Um gestor já me disse que, se soubesse como eu era ‘podre’, não teria me chamado para trabalhar com ele. Isso me magoou, mas hoje estou bem.”


Tentando decifrar o problema

Pacientes com dores que nunca passam não são raros. Segundo a SBED, o percentual médio de pessoas afetadas por algum tipo de dor crônica varia de 15% a 40% da população brasileira — mais de 60 milhões de pessoas. Entre a população mundial, esses índices são de 20% a 30%. A entidade estima que o indivíduo com dor demore até oito anos para procurar ajuda. Na literatura médica, estudos que visam entender, mapear, prevenir e tratar a dor crônica estão por toda a parte e abarcam todas as especialidades.

O neurocirurgião José Oswaldo de Oliveira Jr, diretor da Unidade de Dor do Hospital A.C Camargo e diretor do Departamento de Terapia da Dor e Cirurgia Funcional da Escola de Oncologia Celestino Bourroul, explica que, se a dor demora muito para passar, começa a provocar alterações no sistema nervoso. “Geralmente, é uma sensibilização progressiva e que torna o status doloroso uma situação geneticamente documentada.”

De acordo com o médico, as células cerebrais começam a ser transformadas geneticamente. “As células entendem o estado de sensação dolorosa como normal, de modo que ela sempre vai responder sentindo dor.” Uma dor persistente causa estímulos, liberação de substâncias químicas e reações dentro e fora das células. “A célula, então, começa a fazer atalhos metabólicos. Chega em um ponto em que ela dá a mesma resposta, mesmo sem estímulo. Como a parte genética mudou com a dor crônica, fica difícil reprogramar a célula.”

"O importante é direcionar as emoções para outro lado" - Lílian Neuberger Guimarães, 41, coaching

Daniel Ferreira/CB/D.A Press
(foto: Daniel Ferreira/CB/D.A Press)
O que causa a dor: enxaqueca e fibromialgia

“A enxaqueca eu tenho desde pequena. Achava que era hereditário porque minha mãe, minhas tias e minha irmã mais nova também têm. Mas, depois que engravidei, fazendo exames com um endocrinologista, descobri que tinha intolerância a lactose, o que desencadeava as crises. Mudei completamente meus hábitos, primeiro por causa da gravidez da época, que acabei perdendo, e também porque me senti muito melhor depois de parar de tomar leite. Ao contrário da cefaleia normal, que chega devagar, a crise vem de uma vez. A dor ataca a nuca e se esparrama pela cabeça. A luz, o som, tudo incomoda. Me fecho em algum lugar escuro, tomo a medicação e coloco uma bolsa de água fria em cima dos olhos.

Descobrir a fibromialgia foi esquisito, porque eu comecei a sentir dor quando colocava sutiã, calça mais justa. Mas não era a dor da roupa me apertando, era uma dor que eu sentia ao vestir a roupa mesmo, sem cabimento, sem motivo. Deixei para lá, achando que era frescura. Fui fazer um exame para descobrir algo sobre o que estava me dando enxaqueca e o médico encostou na lateral do meu corpo. Doeu muito, falei para ele e fui aconselhada a procurar um neurologista, porque, provavelmente, eu estava com fibromialgia. O neurologista fez milhões de exames e detectou que era mesmo. O médico não quis me receitar medicamentos, mas me mandou para a acupuntura. Fiz um tratamento demorado: seis meses, toda a semana.

Nunca fui de fazer a vítima, sempre busquei tratamento. Mesmo que demore, se melhorar os sintomas, vamos lá. Sempre trabalhei muito. Quando morava em Curitiba, meu ritmo de trabalho era muito acelerado. Quando voltei para Brasília, escolhi qualidade de vida. Diminuí meu horário de trabalho. Ainda tenho crises de enxaqueca e de fibromialgia, mas em uma escala muito menor. Cada vez tenho menos crises.

Hoje, sabe-se que a fibromialgia não é um problema só fisiológico, mas emocional. Quando estou estressada, nervosa, ansiosa, a dor ataca. A gente sofre e toma um monte de remédios sem saber a causa. O medicamento trata a consequência, não a causa. Não procurei terapia porque nunca tive paciência para falar de mim mesma. Pensei em outra alternativa: fui para o exercício físico. Entrei na natação. Foi ótimo porque é um esporte individual, cada um vai no seu próprio ritmo. Quando descobri a fibromialgia, eu ainda tinha problemas com o meu peso. Cheguei a pesar 140kg. Além de me relaxar, a natação me ajudou a emagrecer 25kg.

Não dá para ficar parada, pensando no problema. Não é questão de fugir, mas de encará-lo de outra maneira, de forma mais positiva. Minha dica é procurar vários médicos, até achar um que a entenda. Às vezes, o médico indica uma terapia, por exemplo, e você vai, mesmo sem querer ir — não é aquilo que vai resolver. Eu encontrei a minha terapia na atividade física, mas ela pode estar no artesanato, no bordado… O importante é direcionar as emoções para outro lado. São dificuldades que o corpo passa para indicar que algo está errado. O corpo está pedindo ajuda. Enquanto você não der, a doença estará ali. A dor não me incomoda mais, mas ela está sempre aqui, me lembrando que ela existe. Aprendi a conviver.”


Como mensurar
Especificar as razões de dores crônicas nem sempre é possível. Em muitos casos, ela é sintoma de algum problema de saúde, como fibromialgia, artrite reumatoide ou enxaqueca. George Miguel Goes Freire, anestesiologista do Hospital Israelita Albert Einstein, explica que esses pacientes têm deficiências analgésicas endógenas, ou seja, para eles, a dor vem com mais intensidade.

Mas como saber que intensidade é essa? Segundo Andréa Naves, oncologista e diretora médica da Mundipharma, os dois tipos de escala mais comumente usados são a Escala Numérica de Dor, que vai de 0 a 10, e a Escala Visual Analógica, que usa uma régua de 10cm mostrando “ausência de dor” e “dor máxima imaginável” nos dois extremos. Há também questionários mais complexos que tentam avaliar outras dimensões no quadro de dor, como, por exemplo, a alteração de humor, o impacto nas atividades diárias e na qualidade de vida. “Esses questionários são úteis para complementar a avaliação de populações específicas com dor crônica.”

José Aparecido da Silva, professor titular do Departamento de Psicobiologia da USP-Ribeirão Preto, explica que “medir” a dor é algo complicado, já que a sensação é individual e subjetiva. Ele afirma que a dor deve ser analisada como um quinto sinal vital, uma vez que pode englobar todo o organismo. “Como não temos um instrumento que permita capturar a dor, como fazemos com a pressão ou a temperatura, usamos um tipo de régua métrica.”

Há ainda escalas de adjetivos, como dor intensa, muito intensa, moderada, leve, insignificante ou ausente. Nessa mesma escala, os médicos podem ter uma ideia de quanto estava a dor há dois meses, quanto ficou após determinado medicamento, de uma cirurgia ou de procedimentos a que o paciente tenha sido submetido. O profissional, porém, precisa estar atento a outros sinais. A dor é multifacetada: há componentes afetivos, culturais, sociais.

"Só peço para não perder meu equilíbrio" - Viviane Roberta da Silva, 39, secretária

	Janine Moraes/CB/D.A Press
(foto: Janine Moraes/CB/D.A Press)
O que causa a dor: enxaqueca, fibromialgia, depressão e transtorno bipolar

“Descobri a enxaqueca aos 20 e poucos anos. Tinha muita dor de cabeça, comecei a não conseguir mais trabalhar. A medicação não resolvia. Procurei um neurologista e ele diagnosticou que tenho enxaqueca tensional. Se eu me sentir nervosa ou estiver com algum problema, a dor de cabeça não para. Fiquei anos assim, até que comecei a sentir dor em todo o corpo, principalmente no rosto, nos tornozelos e no cotovelo. Estava passando por uma depressão e meu psiquiatra explicou que eu tinha doenças relacionadas ao problema. A fibromialgia é uma delas.

Tomei remédios por muito tempo, mas os ansiolíticos não me faziam bem. Não estavam combatendo a dor, que sinto o dia inteiro, o tempo todo. Procurei um reumatologista e ele me deu o diagnóstico de artrose. Fiz todos os exames, mas tinha vergonha de contar que sentia dor na pele. Os testes deram fibromialgia e comecei a tomar um composto de relaxante muscular, além de tentar melhorar o meu dia a dia, ficar mais relaxada, me equilibrar. Isso me ajudou a melhorar da depressão. Há dois anos não tomo mais remédios.

A gente tem que se adaptar. Há dias em que levantar da cama exige muita força, mas aprendi que não devemos pensar nisso. Sou espírita kardecista, então, quando sinto as crises, me concentro, faço uma prece e peço para não perder meu equilíbrio. Morro de medo de me desequilibrar, por causa da depressão. Fazer exercício físico ajuda, faço spinning e musculação. Outra coisa que me distrai é fazer doces. É minha maneira de evitar o estresse. Faço, geralmente, de madrugada. Todo dia, penso em uma forma de não sentir dor.

Dói do cabelo à ponta do pé. A sensação da crise é como a de uma gripe: a gente sente que o corpo todo está moído, não tem ânimo para nada. Tem horas que é horrível, tem horas que você suporta. As enxaquecas são como batidas na cabeça, como quando a gente toma coisa muito gelada. Mas não deixo isso atrapalhar minha vida, sorrio e até brinco com a dor.

Mas as pessoas não entendem. Já ouvi comentários como ‘você está sempre com dor’, ‘você toma muitos remédios’, como se fosse minha culpa estar doente. Falam que é frescura, mas queria que essas pessoas vivessem só um dia como eu. Já me falaram que eu sinto essas dores nas pontas dos dedos porque não quero lavar louça, que estou com preguiça. Como é uma doença pouco conhecida, os outros não entendem como alguém pode sentir essa dor tamanha. Então, procuro nem falar muito. Se está doendo, tomo um relaxante e fico quieta.

Esses comentários pioram a minha depressão, que é uma coisa que traz dores que não existem, dores psíquicas. Eu tomava remédios que, se alguém ler a bula, não tem coragem de tomar. O limite foi o lítio. O médico misturou dois remédios e eu fiquei duas semanas sem falar nem andar.”


Cabeça e corpo em (des)harmonia
A relação entre dor física e sentimental também é próxima. A chamada dor social, ou psíquica, é estudada a fundo pela ciência. Segundo pesquisa feita pela International School of Advanced Studies (Escola Internacional de Estudos Avançados, em tradução livre) e publicado na edição deste mês da revista especializada Social Cognitive and Affective Neuroscience, a dor social ativa certos circuitos cerebrais relacionadas à física, mesmo que essa “dor” seja sentida por outra pessoa. A empatia, dizem os estudiosos, dói.

Os participantes do estudo foram convidados a jogar um jogo com bola. Os pesquisadores, deliberadamente, excluíram um dos jogadores, representando a condição de dor social que seria sentida pelos demais. Em outro experimento, administraram um procedimento de dor leve em um dos participantes — que também observou outro indivíduo sofrendo o mesmo estímulo. Todos os experimentos foram analisados com ressonância magnética. “Nossos dados mostraram que, em condições de dor social, há ativação de uma área tradicionalmente associada ao processamento sensorial da dor física: o córtex insular posterior”, diz Giorgia Silani, uma das neurologistas envolvidas no trabalho. “Isso ocorreu tanto quando a dor foi experimentada na própria pessoa quanto no outro participante.”

Uma moça que termina o relacionamento e se queixa de uma dor “sufocante” usa o termo não por exagero, mas porque a sensação é realmente essa. “Esse tipo de descrição da dor social é similar à da dor física porque as áreas ativadas são iguais”, reforça José Aparecido da Silva, professor da USP-Ribeirão Preto. “Essa pessoa também pode converter a dor social em física.” José Tadeu Tesseroli de Siqueira, presidente da SBED, completa: “É comum ter pacientes que relatam dor e a gente não encontra uma causa, mas, quando vamos investigar, descobrimos problemas de relacionamento, no emprego, e isso se manifesta no corpo”.

Por isso, o médico explica que o tratamento não pode ser apenas farmacológico — embora os medicamentos tenham um papel importantíssimo na diminuição da dor física. Envolve também psicoterapia, terapia ocupacional e o que mais for preciso. O impacto biológico da dor é estudado há cerca de 40 anos, segundo Siqueira. Quando um indivíduo sente dor, seu comportamento, seus sentimentos, sua memória mudam. Todas essas alterações, se não observadas, podem progredir para quadros mais sérios, como transtornos psiquiátricos.

Solange Bittencourt Quintanilha, psicóloga médico-hospitalar e psicanalista, promove um grupo voluntário de apoio psicológico a pacientes com dor. Um dos temas que trabalha é: por que as dores pioram quando se está triste? Segundo ela, isso acontece porque praticamente todas as doenças crônicas são psicossomáticas. “Não há como separar mente e corpo.” A imunidade, explica, está ligada às questões emocionais. “Se uma pessoa está em depressão, o sistema imunológico fica baixo e ela tem mais facilidade em adoecer.” O problema é que tudo vira uma bola de neve: as emoções negativas pioram a dor, e a dor causa emoções negativas. “A única forma de resolver é unir a medicação ao atendimento psicológico.” Portanto, aprender a lidar com dificuldades emocionais, melhorar a autoestima e se fortalecer emocionalmente é parte essencial do combate à dor.

"O negócio é não se desesperar" - Maria Eloisa Cherubini, 27 anos, empresária


Janine Moraes/CB/D.A Press
(foto: Janine Moraes/CB/D.A Press)
O que causa a dor: cefaleia com aura

“Tenho um tipo raro de cefaleia com aura. Desde os 12 anos, eu sentia muita dor de cabeça. Um dia, senti uma tão forte, que minha vista escureceu. Aos 20 anos, as dores voltaram, diariamente. Um dia, ela me deu um susto. Porque a aura é assim: ela aparece 20 minutos antes da enxaqueca. Aparecem umas estrelas na vista, como se fosse um tevê cheia de pixels. Aí vai aumentando, sempre do lado esquerdo da cabeça. Sinto a dor vindo da nuca até a testa. Consigo ver só metade do rosto das pessoas, depois mais nada. Prejudica a audição também. Além disso, fico aérea, não consigo me movimentar. Quando esses sintomas da aura param, vem a dor de cabeça forte e vômito. Fiquei apavorada, porque era a primeira vez que eu tinha sentido isso na vida. Achei que era derrame, que ia morrer.

Senti essa primeira vez e as crises começaram a aparecer sempre de três em três meses, até que pararam de repente. Fiquei um ano e meio sem ter, mas comecei a tomar um anticoncepcional e elas passaram a vir toda semana. Procurei um ginecologista e descobri que os hormônios desencadeiam as crises. Ele suspendeu o hormônio e hoje não tomo mais anticoncepcional. Tive meu primeiro filho, hoje com 3 anos e 7 meses, e nenhuma crise aconteceu durante a gestação. Mas, uma semana depois que ele nasceu, tive uma crise horrível.

Tem tratamento, mas não sei se tem cura porque não fui a fundo com o neurologista para saber. Na minha família, tem duas pessoas com a mesma enxaqueca que eu, então deve ser genético. A maioria tem enxaqueca ‘normal’, com aura só eu, meu primo e minha tia. É horrível. Eu me preocupo com meus filhos, mas, até agora, o Murilo não apresentou nenhum sintoma. Minha pior crise foi uma vez que tinha acabado de chegar em um shopping. Coloquei os pés lá dentro e liguei para meu esposo na hora, porque os sintomas tinham acabado de começar, no meio de todo mundo. Se eu estivesse no trânsito, teria que parar onde estivesse, ligar o pisca-alerta e chamar alguém para me buscar, porque é impossível dirigir. Quando chego no hospital, já sei até quais remédios tenho que tomar.

Hoje, sei como controlar, olho no relógio e sei que vai passar. Estou grávida, no quarto mês de gestação, e tive uma crise há um mês. Não posso tomar nenhum medicamento, só analgésico, mas fui ao médico e ele disse que são os hormônios da própria gravidez. Eu me acostumei com a dor. O negócio é não se desesperar. Sei que ela vai ficar 20 minutos, depois vou sentir a dor de cabeça, vou vomitar e é isso. Não tem muito o que fazer.”