Envelhecer com câncer: conheça histórias de quem vive com a doença há décadas

Segundo a Organização Mundial da Saúde, cerca de 30 milhões de novos casos serão diagnosticados por ano no mundo, nos próximos 15 ou 20 anos

por Flávia Duarte 07/03/2014 09:02

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Não há quem esteja imune ao crescimento de um tumor em qualquer parte do corpo. Segundo a Organização Mundial da Saúde, cerca de 30 milhões de novos casos serão diagnosticados por ano no mundo, nos próximos 15 ou 20 anos. Número que só tende a crescer ao considerar que um dos fatores de risco da doença é justamente o envelhecimento. Com a população vivendo mais, aumenta o número de pacientes com mais idade convivendo com o câncer.

Surge então o conceito de oncogeriatria, uma proposta de reunir profissionais de diversas áreas para avaliar o estado geral do paciente, suas limitações decorrentes da idade avançada. Juntos, eles ponderam o caminho do tratamento a ser seguido, que não interfira no quadro de doenças pré-existentes nem debilite o estado de saúde do paciente com idade avançada, muitas vezes fragilizado. Médico do ambulatório de Oncogeriatria do Departamento de Oncologia Clínica do Hospital A.C.Camargo, Aldo Lourenço Dettino explica que os pacientes idosos têm mais chances de conviver com o câncer graças aos avanços das medicações, como as terapias monoclonais, que atacam preferencialmente as células tumorais, sem destruir as sadias e debilitar a pessoa tratada.

Zuleika de Souza/CB/D.A Press
Maria Thomé, 73 anos, já teve diversos tumores no abdômen. Ela os controla com tratamentos há oito anos. Aliada às drogas, a espiritualidade não a deixa esmorecer (foto: Zuleika de Souza/CB/D.A Press)
Os níveis de toxicidade também são cada vez menores e mais bem tolerados. Assim, o paciente vive mais tempo em tratamento, sem efeitos colaterais. Somado a isso, é oferecido apoio emocional e são propostos exercícios físicos e alimentação adequada. Doença sem cura, mas qualidade de vida total durante o controle. Tratamentos mais certeiros, menos agressivos, que prometem, no futuro, controlar a remissão de alguns tumores pelo resto da vida do paciente.

Maria Bogéa Thomé, por exemplo, convive com diversos tumores no abdômen há oito anos. É provável que eles nunca sumam, mas a quimioterapia ajuda a mantê-los sem crescer. Aos 73 anos, ela tem a aparência de uma mulher saudável. Atribui tanta força à espiritualidade. Não teme o câncer. Acredita que todos têm suas dores a enfrentar nessa passagem pela Terra. A dela seria essa. Um fardo nada leve.

Em 2006, a mulher que ama astronomia e até fez voo de gravidade zero (ela é presidente no Brasil da National Space Society) foi diagnosticada com câncer do ovário. Submeteu-se a uma cirurgia para a retirada do tumor e descobriu que a doença já tinha se alastrado. Fez quimioterapia. Seis meses depois, a doença estava de volta. De lá para cá, já passou por cinco cirurgias para a retirada de tumores em lugares distintos. Não adianta. Ainda tem alguns espalhados no corpo. O mais recente deles apareceu no cérebro e teve de fazer radiocirurgia.

Quem a vê toda arrumada, maquiada e bem vestida, não imagina que o procedimento foi feito há menos de uma semana. Quando o tratamento a derruba, ela descansa, medita. Não pragueja. Sabe que não adianta. Aprendeu a gargalhar para tornar a vida mais leve. A resiliência também é um santo remédio. “Meu caso não tem cura, mas tem controle. Eu digo que esse câncer não é meu, é apenas um hóspede no meu corpo”, define, corajosa.

Um mal da genética
Não há como não se impressionar com o relato do jornalista José Jance Marques, 28 anos. Na aparência, não há qualquer indício da gravidade do seu quadro. Servidor público, leva uma vida normal. Não fosse sua genética rara, que já o fez enfrentar cinco tumores diferentes em menos de 10 anos, ele seria um jovem igual a qualquer outro.

Zuleika de Souza/CB/D.A Press
José Jance Marques, 28 anos, tem uma mutação genética que favorece o surgimento de tumores: foram cinco diferentes em menos de 10 anos (foto: Zuleika de Souza/CB/D.A Press)
O primeiro deles apareceu aos 19 anos. O melanoma, o câncer de pele mais agressivo, deixou uma cicatriz no peito. Fez o tratamento. Sentiu os efeitos das drogas que fulminam o tumor e roubam a energia do corpo. Recuperado, começou a fazer acompanhamento para identificar logo qualquer sinal da doença. Criado em Ceilândia pela avó feirante, nessa época não tinha condições de fazer exames de ponta que garantissem um diagnóstico mais preciso.

Foi o cansaço inexplicável e a falta de ar que o fizeram suspeitar do segundo tumor. Desta vez, no coração. José Jance achou que ia morrer. Teve medo do futuro. Procurou o Ministério Público para ter direito a se tratar. Mais um pesado tratamento e a superação da doença novamente. Curou-se. Só uma arritmia ficou como sequela.

Até que, meses depois, o câncer de pele voltou. “Foi quando eu desconfiei que deveria ter alguma coisa de errado comigo para ter tantos tumores”, conta. Ele tinha razão. José é portador de uma doença rara chamada síndrome de Li-Fraumeni. A patologia surge por causa de uma mutação no principal gene ligado à supressão de tumores: o TP53. Em pessoas saudáveis, esse gene é responsável por frear a divisão celular no momento adequado. Em pessoas como Jance, esse principal freio é modificado e não funciona. “A mutação é herdada e a chance de essa pessoa ter um câncer é quase total”, explica o médico Luis Felipe Ribeiro Pinto, responsável pelo Programa de Carcinogenese Molecular, do Inca, e representante científico do Brasil na Agência Internacional para a Pesquisa em Câncer.

O corpo passa, então, a ser um fabricante de tumores. “Fiz um mapeamento genético e passei a entender que poderia acontecer novamente. Vi que não era um castigo divino”, diz o jovem. Consciente de que teria de viver para sempre com o risco de novos tumores, ele tentou encontrar formas de desacelerar o processo. “Pensei: ‘O que eu posso fazer para minimizar?’. Cortei várias coisas da alimentação que poderiam não me fazer bem, passei a fazer exercícios e, apesar de não beber e não fumar, decidi que nunca teria esses hábitos”, diz.

Ainda assim, o câncer voltou. No cérebro. Depois, enfrentou uma leucemia no ano passado. Dessa última vez, ele teve medo de não resistir. Sentiu muita dor, e a possibilidade de não encontrar um doador o assustou, mas deu certo. Há poucos meses, ele passou por um transplante de medula. Agora, está livre do câncer, mas não da mutação que o provoca. Não sabe quando aparecerá o próximo, mas não descarta que terá outro tumor. Hoje tem condições de fazer os exames mais sofisticados para diagnosticar um novo câncer tão logo apareça e possa tratá-lo.

De resto, a vida é tocada dentro da normalidade possível. José dirige, trabalha, tem amigos, viaja, estuda e até já foi fazer mestrado no Japão. Com a voz grave e serena, conclui: “É provável que o câncer volte, mas vivo a cada dia. Vou vivendo minha vida, criando meus projetos. Não dá para desistir. A gente luta pela vida o tempo todo”.

"Pensei: ‘O que eu posso fazer para minimizar?’. Cortei várias coisas da alimentação que poderiam não me fazer bem, passei a fazer exercícios e, apesar de não beber e não fumar, decidi que nunca teria esses hábitos” - José Jance Marques, 28 anos