Amantes de games controlam sonhos e se assustam menos com pesadelos

Psicóloga norte-americana constata que esse controle é como se as experiências oníricas fossem uma continuação das brincadeiras digitais

por Roberta Machado 06/02/2014 13:00

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“Uma vez, Jean Grey se soltou e começou a matar pessoas, e eu pensei: ‘Isso é muito estranho, provavelmente, é um sonho’. E foi logo depois disso que ela apareceu e me disse que eu precisava acordar. Eu pensei que algo ruim ia acontecer, então acordei.” O estranho relato é apenas um entre centenas de registrados pela pesquisadora Jayne Gackenbach durante mais de 20 anos analisando como os videogames influenciam os sonhos. A descrição, que inclui uma personagem da série em quadrinhos X-men, é também um ótimo exemplo do que a estudiosa descobriu sobre o tema: pessoas que dedicam um bom tempo aos eletrônicos têm sonhos muito estranhos. Quando adormecem, elas costumam entrar em um mundo de bizarrice em que as histórias são mais vívidas e os pesadelos parecem menos ameaçadores. Além disso, mesmo sem o joystick nas mãos, os jogadores se mostram mais capazes de controlar a aventura onírica.

A psicóloga norte-americana, atualmente professora na Universidade MacEwan, no Canadá, começou a prestar atenção nos efeitos dos videogames na década de 1990, quando seu filho Teace foi fisgado pela Nintendo. Interessada em descobrir quais efeitos os jogos virtuais teriam na mente do menino, ela descobriu, por meio de estudos, que os jogos podiam melhorar a capacidade de orientação espacial — habilidade que ela já sabia ser associada a indivíduos capazes de perceber quando estão dentro de um sonho. “Somei 2 e 2, e pensei: ‘Ei, talvez os gamers tenham sonhos lúcidos!’”, conta Gackenbach, que depois comprovou a hipótese.

Nesse tipo de sonho, também muito comum naqueles que praticam meditação, a pessoa é capaz de perceber que a situação vivenciada não é real. “Muitos relatam diferentes graus de controle durante o sonho. Tem gente que consegue fazer o que quer, consegue alterar completamente o contexto do que se passa”, conta Sergio Arthuro, pesquisador do Instituto do Cérebro e do Laboratório do Sono do Hospital Universitário Onofre Lopes, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Ao monitorar o cérebro de pessoas enquanto elas dormiam, Arthuro descobriu que esse tipo de experiência costuma ocorrer entre o sono de ondas lentas (conhecido como sono REM e que é acompanhado de sonhos) e o estado de vigília. A noção de que nada é real surge quando o cérebro vai “acordando” em partes, deixando a pessoa em um estado de “meia consciência”. Para a maioria dos indivíduos, é aí que o sonho acaba. “Mas tem gente que nasce com a capacidade do sonho lúcido, e não sabemos por quê. Outras fazem um treinamento e acabam conseguindo desenvolver essa habilidade”, prossegue o pesquisador.

CB/D.A Press
Também muito comum naqueles que praticam meditação, a pessoa é capaz de perceber que a situação vivenciada não é real (foto: CB/D.A Press)
Simulação

De acordo com os estudos de Gackenbach, o exercício da meditação dá uma visão mais clara a respeito dos sonhos, mas os jogadores têm mais controle sobre o rumo das histórias fantasiosas do que os meditadores. Isso acontece, segundo a psicóloga, porque tanto o sonho quanto a diversão eletrônica são espécies de simulações. “Jogadores se sentem confiantes em controlar o sonho porque passam o dia controlando outra realidade alternativa”, analisa. Ao matar alguns soldados em Call of duty, o indivíduo estaria treinando o cérebro para criar estratégias e reagir a ameaças.

Por isso os pesadelos não representam uma ameaça tão grande para essas pessoas. Em uma pesquisa realizada com militares, a psicóloga notou que muitos soldados tinham noites perturbadas por fantasias em que ficavam sem munição, eram perseguidos ou ficavam vulneráveis no campo de batalha. Por outro lado, aqueles que gostavam de videogames assumiam um papel ativo nos combates noturnos, atirando e derrotando inimigos oníricos.

“Há uma série de estudos mostrando que o sonho é um aprendizado estratégico emocional. Se uma pessoa fica tensa com alguma coisa, a mente tenta se adequar em busca de uma resposta mais adequada”, aponta Rafael Scott, estudante de doutorado em psicobiologia na UFRN, que também estuda a relação dos sonhos com o videogame. Em sua pesquisa, Scott deseja verificar se dormir entre uma partida e outra pode melhorar o desempenho nos jogos. Para isso, ele vai submeter um grupo de voluntários a sessões intercaladas do game Fear e de cochilos e descansos mais longos.

Entre as experiências vividas durante o sono pelos gamers estão situações muito violentas, com cenas de perseguição e de combate, muitas vezes protagonizadas por criaturas monstruosas. Muitos dos entrevistados por Gackenbach, contudo, nem mesmo classificavam essas situações como pesadelos. Alguns chegavam a se divertir com a situação imaginária que poderia ter saído de um filme de terror. O efeito protetor, no entanto, parece não ocorrer da mesma forma entre homens e mulheres. Na mais recente pesquisa da psicóloga, garotas que curtem games admitem assumir o papel de vítima em pesadelos, mais até que colegas que nunca interagiram com um jogo virtual. As razões para essa diferença ainda estão sendo estudadas pela psicóloga

Perspectiva
O controle dos jogadores sobre os sonhos pode ser na verdade bastante literal, similar ao que eles vivenciam quando brincam. Assim como os botões de um joystick permitem que uma pessoa mude a visão do personagem na tela, indivíduos acostumados com essa dinâmica também podem manipular o ponto de vista durante um sonho, colocando-se em primeira ou terceira pessoa. “Os jogadores estão muito familiarizados com esse conceito, movem-se de trás para a frente. A posição entre primeira e terceira pessoa costuma depender da demanda do jogo, então também pode variar de acordo com o sonho”, explica Gackenbach. Pessoas que não têm experiências com videogames, por outro lado, costumam se manter à noite o mesmo ponto de vista da vida real.

De acordo com os relatos colhidos pela especialista americana em questionários on-line e em diários mantidos por voluntários, os jogadores sonham com mais frequência com mortos, monstros e elementos surreais, como viagens no tempo. “Se você passa algumas horas em um videogame, principalmente se a atividades despertar emoções fortes, esse repertório vai aparecer no sonho”, afirma o neurocientista Fernando Louzada, professor na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Para o especialista brasileiro, a experiência onírica mistura elementos da realidade, mas em uma lógica com pouco sentido para quem está acordado. Objetos ou situações vistas em um videogame ou em um filme se confundem com experiências reais, criando cenários fantásticos. “Ouvindo sonhos do meu filho, que adora jogar, vejo que eles incorporam um repertório que não é da vida. Talvez vá além do personagem, tem mais a ver com situações, como períodos históricos ou armas que ele não encontrou nos livros de história”, conta.

Para Gackenbach, a questão pode ir além de sonhar com um personagem ou se colocar no lugar dele. Os jogos eletrônicos, explica a psicóloga, são uma forma comprovada de estímulo à criatividade. A interatividade das aventuras virtuais permite que o cérebro crie diferentes cenários e estratégias, exercitando a imaginação. Por isso, muitos jogadores relatavam sonhos estranhos mesmo sem ter tocado em um videogame no dia anterior: os devaneios noturnos não eram somente a lembrança das aventuras virtuais e sim fruto da imaginação da própria pessoa.

"Jogadores se sentem confiantes em controlar o sonho porque passam o dia controlando outra realidade alternativa" - Jayne Gackenbach, psicóloga da Universidade MacEwan

Dedicação
As pesquisas de Jayne Gackenbach são focadas no que ela chama de hardcore gamer (jogador barra-pesada). São estudados os sonhos de pessoas que jogam várias vezes por semana, normalmente por mais de duas horas seguidas. Os voluntários com sonhos influenciados pelos jogos são indivíduos que jogaram mais de 50 títulos na vida e se dedicam a esse passatempo desde, pelo menos, a terceira série.