Empresa cria cinto de castidade moderno e levanta polêmica sobre formas de prevenir o estupro

Vítima de abuso sexual afirma que no Brasil pouco se discute sobre a prevenção. Especialistas acreditam que roupa não vai solucionar o problema e sim cercear a liberdade da mulher. O consenso é de que a sociedade precisa aprender que o corpo da mulher não é um objeto

por Gabriella Pacheco 22/11/2013 09:00

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Reprodução / Indiegogo.com
O cinto de castidade se parece com um short (foto: Reprodução / Indiegogo.com)
A discussão sobre o estupro é polêmica em todos os âmbitos – inclusive no que diz respeito às formas de evitá-lo. A mais recente delas é um short antiestupro desenvolvido por uma empresa norte-americana, que promete criar uma barreira intransponível contra agressores. Mas há como evitar o estupro sem ferir as diferentes formas de liberdade da mulher? A responsável pela Delegacia Especializada de Atendimentos à Mulher de Belo Horizonte, Margaret de Freitas Assis Rocha, acredita que, por mais que algumas situações possam ajudar a prevenir que o crime aconteça, nada justifica a mulher ser cerceada de seus direitos.

No entanto, mais de um século após o sufrágio universal, em uma era em que mulheres governam países e chefiam empresas multinacionais, a delegada ressalta que ainda é necessário encontrar “uma maneira para que as mulheres possam andar em liberdade”. “Nossa sociedade ainda é machista e patriarcal e não possibilita isso. A mulher é desenhada como um objeto de posse. O ideal é que possamos andar com liberdade e isso inclui escolher com quem manter relações sexuais”, ressalta.


O Saúde Plena traduziu o vídeo em que a empresa defende a peça de roupa. Assista:




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Só em 2012 foram registrados mais de 50 mil estupros no Brasil. O número é superior ao de homicídios dolosos. Mas como prevenir? (foto: Reprodução / AR Wear)
Mas o ideal parece longe de ser realidade. No Brasil, os estupros ainda são um problema de segurança grave. Na última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que contém dados sobre todas os boletins de ocorrência registrados em 2012, o número desses crimes no país superou os de homicídios dolosos (aqueles em que não há a intenção de matar). No ano, foram registrados 50.617 casos de estupro, o que equivale a 26,1 estupros por grupo de 100 mil habitantes. A marca representa um aumento de 18,17% em relação a 2011, quando a taxa foi de 22,1 por grupo de 100 mil.


Em meio a um mar de opiniões, uma empresa norte-americana criou um short antiestupro como alternativa para inibir o crime. De outubro a meados de novembro de 2013 ela tentou arrecadar fundos, por meio de um site de crowd funding, para colocar o projeto em prática. E a ideia deu certo. Onze dias antes do fim da campanha, a AR Wear já tinha ultrapassado sua marca pré-estabelecida de doações arrecadando mais de US$ 51 mil. A um dia do fim das arrecadações, data em que essa matéria foi publicada, a empresa conseguiu mais de US$ 54.539 mil. A aposta dos investidores mostra que, mesmo provocando revolta em muitos grupos e sendo o centro de uma polêmica internacional sobre a prevenção do crime, a iniciativa tem muitos apoiadores.

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A ideia da empresa é que o short possa ser utilizado em diversas situações do dia-a-dia, desde corridas à baladas (foto: Reprodução / Indiegogo.com)
Apesar de dar espaço para dúvidas sobre sua real capacidade de impedir um agressor armado de concretizar o ato, a vestimenta se apresenta como uma possibilidade viável para evitar assédios após o consumo excessivo de álcool ou até em casos em que a vítima for drogada. Se a proposta dará certo ou não, ainda não é possível dizer. “Acredito que isso irá depender do contexto. Se o agressor tiver tempo para tentar, pode ser que ele faça o possível para ultrapassar esse obstáculo”, comenta a delegada. “Se isso vai inibi-lo ou não, não dá para dizer. Outra questão é se isso pode deixar a pessoa mais enfurecida. É uma possibilidade”, pontua.

A imprevisibilidade do ser humano não deve ser descartada. Se tratando de pessoas, várias possibilidades podem ditar o comportamento do sujeito agressor. A característica machista da nossa sociedade é só a mais chamativa em uma lista de outras questões que motivam esse tipo de crime. Antes de tudo, Margaret lembra que o estuprador se trata de uma pessoa que se satisfaz com esse tipo de comportamento. “O ato sexual sem consentimento é o que dá prazer para essa pessoa, seja ele o estuprador que droga a mulher ou aquele que a aborda em uma rua escura. A tendência é, inclusive, que mesmo as pessoas que já tenham cumprido pena pelo crime, quando livres, voltem à prática porque é isso que os satisfaz”.

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O produto promete ser resistente à cortes. Além disso, travas impedem que ele seja arrancado por puxões (foto: Reprodução / Indiegogo.com)


A roupa
Apelidada de 'cinto de castidade moderno' por muitos, o protótipo da AR Wear tem suas limitações e algumas delas são expostas na própria campanha de divulgação. A marca tenta minimizar a polêmica dizendo que a culpa por estupros é exclusivamente do estuprador e que somente por meio da educação é possível acabar com o problema. “Enquanto predadores sexuais continuarem povoando nosso mundo, AR Wear gostaria de fornecer produtos para mulheres e garotas que vai oferecer melhor proteção contra alguns tipos de tentativas de estupro”, afirma a empresa na página de divulgação do protótipo no site Indiegogo, que lista negócios empreendedores em busca de financiamento coletivo.

Os itens que a AR Wear pretende comercializar são resistentes e não podem ser cortados ou rasgados, mas prometem ser confortáveis para serem usados em qualquer situação do dia a dia. Parte da proposta é também que ele só possa ser retirado pela própria mulher. Para tanto, os shorts têm uma espécie de fechadura com combinação (veja no vídeo como a mulher pode ajustar e 'trancar' o short). É a existência dessa combinação que pode tornar o acessório valioso nos casos em que a mulher estiver fora de si ou inconsciente.



Reprodução / www.adrianatorres.com.br
Clique aqui para ler o relato completo de Adriana (foto: Reprodução / www.adrianatorres.com.br)
“Resolvi fazer minha primeira viagem, sozinha, com meu dinheiro. Que orgulho! Fui para Maceió em uma excursão com muita gente animada e divertida. Eu estava sonhando… O sonho se transformou em pesadelo, quando o guia local tentou me estuprar no dia que eu iria retornar. E desse caso eu não esqueço um só detalhe. Os sorrisos dele durante a semana e eu me esquivando de forma gentil e sorridente, levando na brincadeira… O convite para um chope no sábado que eu aceitei. “Preciso passar rapidinho em casa pra trocar a camisa”. Eu não querendo entrar na casa e ele dizendo “deixa disso, não farei nada com você, sou separado, tenho um filho…”. A sala arrumada. O álbum com fotos do filho que ele fez questão de trazer para mostrar. Enquanto eu via as fotos, ele foi trocar a camisa. De repente estava ao meu lado, tentando me beijar. Eu paralisei e o medo sufocou. O afastei de forma delicada e ele insistiu. Eu disse não, mas ele não ouvia. Comecei a me debater e ele me jogou no sofá, arrancando minhas roupas com uma facilidade absurda. Eu chorava e tentava empurrá-lo, mas era em vão”
.

A história não terminou aí. Adriana Torres, que hoje é voluntária do Movimento Nossa BH e articuladora da Marcha das Vadias na capital mineira, apanhou e o ato teria sido consumado se não fosse pela falta de ereção, que acabou deixando o agressor ainda mais enraivecido. Ela viu aí uma oportunidade para fugir e se trancou no banheiro da casa dele, onde permaneceu até momentos antes do embarque de volta para casa. (Clique aqui para ler o restante desse relato e outras experiências vividas por Adriana).

Não houve a consumação carnal, mas a violência aconteceu. Assim, como tantas outras mulheres, Adriana teve um homem se forçando sobre ela, rasgando suas roupas, passando a mão como desejava por seu corpo, mesmo sem o consentimento dela. Foi diante e devido à essas outras formas de assédio que a legislatura brasileira sobre o assunto foi alterada. Desde 2009, a Lei 12.015 considera estupro “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Um short antiestupro não impediria nada disso.

'O estupro não tem nada a ver com sexo. Tem a ver com poder sobre a mulher'
Mas o que impediria? Para a mobilizadora, somente quando nossa sociedade deixar de ser machista e patriarcal nossas mulheres deixarão de ser vítimas desse tipo de violência. “Eu não responsabilizaria a maioria dos homens que me fizeram mal por suas ações. Atualmente sou até contra a penalização máxima porque não acho que isso vá resolver qualquer problema, isso não muda a cultura. Só espero que eles tenham a oportunidade de ter conhecimento de que o que fizeram é um crime”, afirma.

A responsabilidade, na opinião dela, não pode ser de só uma pessoa, na medida que essa pessoa está inserida e foi criada em um meio onde é normal tratar a mulher como uma posse. O 'culpado' só pode ser apontado quando ele tem consciência de que o que está fazendo é errado. "Uma das coisas mais importantes de se desnaturalizar a violência, de mostrar o quanto a cultura patriarcal e machista é responsável por essa violência - é que quanto mais gente souber, mais essas pessoas se tornam responsáveis pelo que falam, pelo que fomentam, pelo que fazem. Já não dá mais pra elas dizerem 'eu não sabia'", completa.

Arquivo Pessoal
À esquerda, Adriana Torres (C) grávida na Marcha das Vadias e à direita, com o filho Leon, que hoje tem um ano e três meses. 'Vou criar meu filho para que ele não olhe para as mulheres como objetos de posse', afirma (foto: Arquivo Pessoal)


Ela explica que esses homens e muitas mulheres que também são vítimas de violência estão tão imersos na cultura de objetificação do sexo feminino que não têm consciência da brutalidade existente em seus discursos e ideias. “Isso faz com que as mulheres estejam vulneráveis à violência sexual em qualquer horário ou etapa da vida. Não tem como pedir para a mulher usar uma roupa X ou Y por conta desse risco. O estupro não tem nada a ver com sexo. Tem a ver com poder sobre a mulher”, ressalta.

Diante de suas experiências sendo violentada e seu envolvimento em causas sociais, Adriana considera um presente ter dado a luz à um menino. Para ela, essa é a oportunidade de criar um homem que não olhará para mulher alguma como um objeto. 

Às vésperas do Dia Internacional do Combate à Violência Contra a Mulher, comemorado dia 25 de novembro, ela é categórica: “não há medidas cabíveis para evitar o estupro e não adianta criar mecanismos para que isso não aconteça sem expor a real razão para a existência da violência sexual”.

Polêmica na Internet
A campanha de divulgação da 'calcinha' antiestupro teve ampla repercussão nas redes sociais e a página contou com mais de 1.600 retweets. Em muitos comentários, os internautas pontuam que o short não serviria para todas as ocasiões de assédio. Fabiane Lima compartilhou a ideia via Twitter, mas lamentou: “uma pena que não funcionaria para a maioria dos casos”. Já a usuária da mesma rede Clara C. elogia a ideia. “Acho genial esse produto. Mas a necessidade dele existir é ridícula”, diz.

Não faltam, é claro, críticas negativas. Alejandro Lozada, da Cidade do México, diz que considera o item insultante e perigoso. “Ele ainda coloca a mulher como culpada pelos estupros”, comenta na rede. A jornalista Amie Ferris-Rotman chama o produto de 'cinto de castidade moderno'. Outra internauta, identificada como Shanley, confessa que achou a ideia “triste e enfurecedora”.

'Não precisamos de roupa e sim que não aconteçam estupros'
Para a secretária executiva da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Reprodutivos, Clair Castilhos Coelho, a proposta é um retrocesso brutal para as conquistas feministas dos últimos séculos. “É como se as mulheres voltassem a usar um cinto de castidade”, destaca. “Não precisamos de uma roupa que nos proteja, precisamos que não aconteçam estupros”, completa. Além de inverter a lógica de como o assunto deve ser tratado, o uso de uma roupa como essa atribuiria mais uma vez a responsabilidade do crime à mulher.

Reprodução / www.redesaude.org.br
Clair Castilhos Coelho, secretária executiva da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Reprodutivos, acredita que a proposta da roupa antiestupro é um retrocesso brutal para as conquistas feministas dos últimos século (foto: Reprodução / www.redesaude.org.br)
“O que nos interessa é a prevenção e a punição”, ressalta. A solução, ela acredita, está em um trabalho interdisciplinar e intersetorial, começando com um processo educativo para tentar transformar a mentalidade machista predominante, criando uma nova imagem da mulher, que não de propriedade.

A conscientização da mulher diante do crime também é um passo importante, que na opinião da delegada, vem sendo tomado. “Acredito que o aumento no número de ocorrências de estupro mostra que as mulheres estão denunciando mais e mais conscientes de seus direitos”.

Homens se identificam com frases de estupradores
Infelizmente, a cultura machista ainda é um dos maiores responsáveis pela objetificação do corpo da mulher. A proximidade do pensamento sexista com a mente de um estuprador é maior e mais assustadora do que se imagina. A comprovação veio com um estudo das Universidades de Middlesex e Surrey, na Inglaterra. Pesquisadores apresentaram a um grupo de homens afirmações vindas de estupradores condenados e outras tiradas de revistas masculinas e perguntaram aos entrevistados com quais eles mais se identificavam, sem dizer quem eram os autores delas. O resultado, para a surpresa dos cientistas, mostrou que os entrevistados concordaram mais com os estupradores. “Nós nos preocupamos que as estratégias de legitimação utilizadas pelos estupradores ao falar de mulheres são mais familiares para esses jovens do que antecipávamos”, afirma a doutora Miranda Horvath, da Universidade de Middlesex.

Além disso, o trabalho também mostrou que as pessoas tendem a considerar as frases dessas revistas mais pejorativas. A preocupação despertada por essa descoberta, de acordo com o doutor em Psicologia da Universidade de Surrey, Peter Hegarty, é de que isso sirva para normalizar o tratamento de mulheres como objetos. “Não queremos ser estraga prazeres ou puritanos que pensam que não deve existir nenhum tipo de informação ou mídia sexual para jovens. Mas será que rapazes e jovens estão preparados para experimentar amor e sexo quando eles tratam como normal ideias sobre mulheres que são perturbadoramente próximas àquelas usadas por estupradores?”, questiona.

Arte: Soraia Piva
Arte: Soraia Piva (foto: Arte: Soraia Piva)