Estudo mostra que viciados são capazes de realizar escolhas racionais

Pesquisador americano diz que as condições de vida são mais importantes para a instalação da dependência química do que a ação das substâncias no cérebro

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O homem inala a fumaça branca, prende a respiração e joga a cabeça para trás, esperando que a substância faça efeito. Vendedor de livros nas ruas de Nova York, ele é o que os americanos chamam de crackhead (algo como cabeça de crack): consome o derivado da cocaína pelo menos cinco vezes na semana e não tem intenção de parar. Passado algum tempo, é avisado da possibilidade de ganhar outra dose. Ele, contudo, aperta uma tecla sinalizando que não deseja a droga. Prefere um cupom de US$ 5 para gastar em uma loja. Ele só receberá o vale daqui a algumas semanas, mas, mesmo assim, o acha mais atraente que outra viagem tóxica.

O ano é 1999, e a cena faz parte de uma pesquisa financiada pelo governo americano e conduzida na Universidade de Columbia por Carl Hart, psicólogo especializado em neuropsicofarmacologia. Desde que convidou usuários de crack para viverem em um hospital e participarem do estudo, Hart teve surpresas. Contrariando a ideia de que a droga tira a capacidade de decisão, os voluntários se mostraram capazes de realizar escolhas racionais, avaliando se um cupom era mais interessante que uma nova dose de crack ou metanfetamina, outro entorpecente estudado pelo cientista.

ARTE: CB/D.A Press
A opinião do norte-americano costuma gerar discussão. "Via de regra, todos que experimentam o crack por duas vezes, não precisam mais do que isso, se tornam viciados. O crack, em pouco tempo, faz o usuário abandonar a família, o trabalho e a vida social. Ele só pensa e só quer fumar o crack e vai morar na cracolândia, onde o uso se torna constante", diz Virgínia Ferreira, professora da Faculdade de Medicina de Petrópolis (foto: ARTE: CB/D.A Press)
Passados 14 anos, Hart está convencido de que alguns mitos impedem a adoção de políticas eficazes para lidar com a questão das drogas. A maior dessas crenças equivocadas, segundo ele, é a de que o vício é uma doença cerebral que pode ser explicada apenas pela forma como as substâncias agem sobre os neurônios. Seus argumentos estão reunidos em High price (Alto preço, ainda sem edição no Brasil), uma mistura de revisão científica sobre o tema e livro de memórias (o autor conta também sua trajetória desde a infância em um bairro pobre de Miami e como se tornou um dos poucos de seu grupo de amigos a não ter problemas com as drogas e com a lei).

Em entrevista ao Correio, Hart deixa claro que, em nenhum momento, afirma que as drogas não são perigosas. “As pessoas podem, sim, ficar viciadas”, ressalta. E lembra que os participantes do estudo de 1999 eram todos dependentes. Apesar de serem pobres, gastavam entre US$ 100 e US$ 500 por semana com crack e tinham perdido quase completamente o vínculo familiar. No entanto, a capacidade deles de ponderar e recusar o entorpecente não confirmava a ideia de que a dependência “sequestra” o cérebro e toma completamente o controle dos desejos.

Em vez disso, o uso de drogas segue uma lógica semelhante à de outros comportamentos. Se a substância parece vantajosa, a pessoa vai optar por ela. E não faltam indivíduos cujas vidas parecem muito difíceis, a ponto de a melhor opção ser o consumo constante de algo que, apesar de perigoso, garante prazer imediato. Quanto menor a sensação de apoio, maiores são as chances de uso abusivo. Já um sujeito com suporte social, econômico e emocional, caso experimente alguma droga, terá menos chances de tornar esse um hábito compulsivo e destrutivo. “Pessoas com outras fontes de prazer e com algo a perder tendem a ter menos problemas”, afirma.

Divergências

A opinião do norte-americano costuma gerar discussão. Muitos cientistas não compartilham seu ponto de vista. “Apesar de respeitar o posicionamento do doutor Hart, não concordo com ele e penso que os dados levantados por meio de pesquisas não refletem o que ele diz. Via de regra, todos que experimentam o crack por duas vezes, não precisam mais do que isso, se tornam viciados. O crack, em pouco tempo, faz o usuário abandonar a família, o trabalho e a vida social. Ele só pensa e só quer fumar o crack e vai morar na cracolândia, onde o uso se torna constante”, diz Virgínia Ferreira, professora da Faculdade de Medicina de Petrópolis.

Hart sabe que vários colegas pensam assim, mas afirma que os dados mostram, na verdade, que fatores sociais são mais preponderantes para a formação do vício. Além de seus estudos, ele cita uma série de outros trabalhos e levantamentos do governo americano segundo os quais uma grande parte de pessoas que usaram entorpecentes, até mesmo o crack, não podem ser definidas como dependentes.

A explicação neurológica da dependência ganhou força a partir de uma descoberta acidental feita nos anos 1950 por James Olds e Peter Milner na Universidade McGill, no Canadá. Durante um experimento com ratos, no qual buscavam estimular uma área cerebral para ensiná-los a se mover por um labirinto, os cientistas notaram que a técnica só funcionava em um dos bichinhos. Eles decidiram ver, então, o que havia de diferente naquele animal e perceberam que o eletrodo usado para estimular seu cérebro havia sido posicionado no lugar errado.

Em vez de acionar a região de interesse do estudo, a dupla tinha ativado, naquele animal, o feixe prosencefálico medial (FPM). Experimentos seguintes mostraram que o neurotransmissor mais abundante nessa área era a dopamina, substância capaz de proporcionar grande satisfação. O FPM tornou-se conhecido como centro de prazer do cérebro, tornando-se, ao lado da dopamina, o foco de pesquisas sobre drogas. O desafio, acreditavam muitos cientistas, era descobrir como as diferentes substâncias interagiam com o neurotransmissor e depois achar formas de bloquear esse processo. A cura do vício parecia uma possibilidade real.

Os problemas dessa abordagem são muitos, afirma Hart. Primeiro, a dinâmica cerebral se mostrou muito mais complexa. Depois, resultados costumam ser extrapolados. Mesmo nos experimentos conduzidos por Olds e Milner, alguns animais não reagiam da forma esperada quando tinham seu centro de prazer estimulado. Além disso, quase todos os estudos que vieram depois e buscaram explicar o vício pelo ponto de vista neurológico são feitos com animais — não pessoas — que vivem isolados, sem interação com outros bichos. Quando a droga é oferecida a cobaias que têm outros estímulos, os resultados costumam ser diferentes.

Em 1992, o psicólogo canadense Bruce Alexander fez um experimento chamado parque dos ratos. Ele criou em laboratório um amplo espaço que se parecia mais com o ambiente natural dos roedores. Ali, os animais viviam em grupo, podendo formar casais, e tinham à disposição diferentes espaços para explorar, brinquedos para fazer exercício e refúgios escuros, o tipo de ambiente preferido por esses animais. No parque, também era oferecida água doce com morfina. Os autores compararam, então, o consumo da droga pelos ratos que viviam no parque com o de animais mantidos isolados em jaulas. Entre os bichos que estavam em grupo, muitos nem provaram a morfina, e os que a experimentaram tiveram um consumo bem mais moderado que o do outro grupo, às vezes 20 vezes menor.

Proteção
Entre humanos, uma série de fatores não biológicos torna alguém menos propenso a abusar das drogas ou mais capaz de abandonar o uso. Estudos listados por Hart concluíram que sujeitos casados têm três vezes mais chances de largar a cocaína. Ter filhos dobra essa possibilidade. Pessoas com relacionamentos românticos e familiares sólidos se saem melhor na reabilitação, e estudantes com sentimentos de acolhimento social apresentam menos problemas com substâncias ilegais. Fatores econômicos exercem forte influência também (leia Três perguntas).

Para o especialista, não se trata de negar que as drogas agem sobre o cérebro. Elas agem e, por isso, parecem atraentes. O prazer a curto prazo que provocam pode fazer o usuário se sentir constantemente tentado a usá-las. Mas o uso abusivo está ligado, como mostram os dados colhidos por ele, a uma série de outros fatores, que, se ignorados, impedirão o entendimento total da questão. “Reduzir o comportamento humano a termos simplistas como ‘vício’ e tentar culpar químicas cerebrais pelas ações de pessoas resulta no erro de não considerar o contexto em que o comportamento ocorre. Isso também coloca uma ênfase injustificada na busca por uma explicação cerebral, quando entender o comportamento e seu contexto poderia ser muito mais útil para explicá-lo e alterá-lo”, escreve no livro.

Nesse sentido, trabalhos que têm procurado tratar a dependência e, ao mesmo tempo, ajudar os usuários a resolverem questões como o desemprego têm obtido resultados promissores. Nos EUA, pesquisadores do Hospital Johns Hopkins liderados por Ken Silverman desenvolveram os “lugares de trabalho terapêuticos”. Lá, pacientes em recuperação aprendem uma nova profissão. Enquanto têm aulas, recebem ajuda de custo e só podem continuar se os testes de urina mostram que não consumiram nenhuma substância ilícita. Essa abordagem conseguiu, por exemplo, dobrar os índices de abstinência de opioides e cocaína entre mulheres grávidas ou com filhos recém-nascidos quando comparada a outros tratamentos.

Desde que foi lançado, High price tem gerado uma série de debates nos EUA. Hart tem sido convidado a dar palestras e entrevistas, críticas são publicadas e outros especialistas têm se manifestado. Não é pequeno o número dos que apoiam as evidências colhidas por ele. “Ele não está dizendo que o abuso de drogas não faz mal, mas está mostrando que as drogas não transformam as pessoas em lunáticas. Elas podem parar de usar quando têm à disposição outros reforçadores (estímulos positivos)”, afirmou ao New York Times Craig Rush, especialista em abuso de estimulantes da Universidade de Kentucky. “Hart está correto. Os fatores sociais, assim como os farmacológicos, precisam ser levados em conta quando se consideram as causas do vício”, acrescenta ao Correio David Nutt, diretor da Unidade de Neuropsicofarmacologia do Imperial College London.

Divulgação
Carl Hart, professor associado da Universidade de Columbia, em Nova York (foto: Divulgação)
TRÊS PERGUNTAS PARA...

Por que se dá mais atenção a estudos que buscam explicar o vício a partir da química cerebral que a outros que procuram examinar o contexto?
Porque é uma ideia muito sedutora a de que podemos achar uma bala mágica que vai explicar por que uma pessoa se comporta de determinada maneira. Esses estudos devem ser feitos, eles são importantes para entendermos mais sobre o problema. Mas há mais dados mostrando que os fatores sociais são mais preponderantes na formação do vício do que o efeito das substâncias sobre cérebro.

Qual é a melhor forma de combater o abuso de drogas?

Imagino que no Brasil o álcool e a nicotina sejam drogas legais. Basta você imaginar que o tratamento com relação às outras drogas seja igual. A maioria das pessoas que bebe sabe que não deve tomar a primeira dose antes do meio-dia, que não pode beber no trabalho etc. Elas foram educadas. No entanto, as políticas de repressão impedem que esse mesmo processo ocorra. Ao reprimir simplesmente, deixamos de educar e estigmatizamos as pessoas, abrindo espaço para ações policiais e judiciais que discriminam negros e pobres.

No Brasil, é possível internar um viciado em crack compulsoriamente, sob o argumento de que muitos não têm capacidade de decidir o que é melhor para eles. Como seu livro pode ajudar a pensar essa questão?
Levantamentos mostram que a maioria dos viciados é negra e pobre, apesar de um número parecido de brancos e ricos usarem droga. No seu país, também deve ser assim. Grande parte dos dependentes vive sem muitas opções, numa realidade em que a droga é a única opção de prazer à mão. Optar por ela parece lógico. As pessoas que querem internar compulsoriamente um usuário de crack realmente estão olhando para esse indivíduo? Querem entender sua história, os motivos que o levam a usar a droga tanto assim?

Crack no Brasil
Estudo divulgado pelo governo federal na última semana mostra que 80% dos frequentadores das áreas de uso de crack no país se declaram não brancos, 75% não são casados e uma porção semelhante não chegou ao ensino médio. O índice de usuários que apontaram perdas afetivas, problemas familiares, violência sexual, vida ruim ou perda de emprego como motivo para consumir a droga chega a 40% dos entrevistados.

REPERCUSSÃO

Um mundo irracional
“O doutor Hart está correto. Os fatores sociais, assim como os farmacológicos, precisam ser levados em conta quando se consideram as causas do vício. Em muitos ambientes, o mercado da droga é uma das poucas oportunidades de emprego, e geralmente é a mais lucrativa. Nessas circunstâncias, o uso de drogas fornece uma experiência de prazer que acaba se tornando exagerada pela pouco atraente natureza da vida cotidiana. Então, não é surpreendente que jovens desempregados e sem perspectivas se voltem para as drogas: em muitos casos, essa é uma escolha racional em um mundo irracional.” - David Nutt, diretor da Unidade de Neuropsicofarmacologia na Divisão de Ciências do Cérebro do Imperial College London

Prazer devastador
“O ponto positivo e original do estudo (feito em 1999, com usuários de crack) é trazer ao debate uma perspectiva mais otimista em relação às possibilidades de escolhas racionais do usuário, mas não devemos transpor indevidamente esses achados para o universo extremamente complexo dos usuários de crack. O contexto social, a dose diária, o padrão e o tempo de uso são muito variados. De maneira semelhante, seria ingenuidade supor que todos os usuários compartilham da mesma capacidade racional escolha. Do contrário, como explicar os usuários que substituem dinheiro, emprego, família e saúde pelo prazer momentâneo e devastador do crack?” - Antonio Pedro de Mello Cruz, psicólogo com pós-doutorado em neurociências do comportamento e professor associado da Universidade de Brasília