Prática de artes marciais durante a infância auxilia no desenvolvimento corporal, cognitivo e social

Segundo especialistas, os pais devem escolher treinadores capacitados, mas também se preocupar em promover a cultura de paz entre os filhos

por Correio Braziliense 02/08/2013 09:00

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Edílson Rodrigues/CB/D.A Press
Heitor treina os filhos Lucas e Gabriel há 10 anos: da bagunça nos tatames à dedicação aos treinos (foto: Edílson Rodrigues/CB/D.A Press)
Perto de completar 6 anos, Gustavo ensaia os primeiros golpes de caratê. Conheceu a atividade nas brincadeiras com o pai, Marcelo Augusto de Almeida. O servidor público de 40 anos é faixa preta de tae kwon do e começou a praticar artes marciais há 20 anos. “Desde que ele começou a andar, já me acompanhava. Eu tinha alguns equipamentos em casa e o incentivava”, conta Marcelo, que deixou o esporte de lado nos últimos cinco anos.

O filho é diferente. Gustavo está nos tatames. Há um ano, frequenta uma turma de caratê e, desde então, o menino, que também pratica natação, melhorou a convivência com as crianças da mesma idade. “Ele era mais fechado, sinto que ganhou confiança nele mesmo e autoestima depois que o colocamos para praticar esportes”, avalia o pai. Marcelo procurou uma turma que se adequasse aos horários do garoto, matriculado também no maternal, e que tivesse as atividades voltadas para crianças. Segundo ele, o filho também ficou mais rápido para resolver as atividades passadas pela escola. “Está mais concentrado, resolve com mais facilidade e rapidez os deveres”, afirma.

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Gustavo, 5 anos, luta caratê há um ano em uma turma só para crianças: autoconfiança e concentração na escola (foto: Edílson Rodrigues/CB/D.A Press)
Inspiradas pelos pais, pelos desenhos animados ou pelos filmes, as crianças se interessam cedo pelos esportes de luta. Os movimentos variados realizados durante a prática do esporte podem favorecer o desenvolvimento dos pequenos, além de trazer benefícios psicológicos, como a possibilidade de enfrentamento e o controle da agressividade. Doutor em ciências do esporte, Alexandre Drigo acredita que é preciso que os pais se preocupem com a formação dos instrutores para que esses benefícios se concretizem de fato. “Eles devem cobrar uma formação coerente com a proposta oferecida e o comprometimento com a saúde da criança”, afirma o também professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

É comum que o comportamento aprendido com os mestres seja levado para o cotidiano da criança. Por isso a importância de encontrar instrutores que tenham uma boa preparação, saibam ensinar valores positivos e estimular os alunos contra a violência. “A criança aprende pelo exemplo. Se o professor for justo e correto, e os pais, respeitosos, ela também será. A violência atribuída a lutadores sempre esteve atrelada ao ambiente a que são expostos”, afirma Drigo. Marcelo pensa parecido. Para o pai do pequeno carateca Gustavo, é preciso que o professor esteja compromissado com a formação do aluno. “A criança absorve o que é dito e traz para casa, por isso eu procurei um professor que não incentivasse a violência e estivesse comprometido com o desenvolvimento do meu filho”, pondera.

Professor da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP), Walter Roberto Correia alerta que o fato de o instrutor ser bem-sucedido no esporte não é garantia de que ele seja um bom instrutor para crianças. “Nem sempre um grande esportista tem a formação pedagógica necessária para trabalhar com a infância”, alerta.

Acompanhamento
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É comum que o comportamento aprendido com os mestres seja levado para o cotidiano da criança. Por isso a importância de encontrar instrutores que tenham uma boa preparação e saibam ensinar valores positivos (foto: Edílson Rodrigues/CB/D.A Press)
A presença e o acompanhamento dos pais nas atividades dos filhos também são fundamentais para que o aprendizado de um esporte de luta não se torne um problema para a família. “Se os pais não explicam, desde o começo, os motivos de praticar o esporte, que não é para violência, brigas, há o risco de a criança se tornar violenta”, pondera Rodrigo Scialfa Falcão, especialista em psicologia do esporte.

Crianças que não têm o acompanhamento devido podem utilizar o que aprendem nas academias de luta para atividades violentas e inadequadas. “Há uma tendência na nossa sociedade de a educação ser terceirizada, mas os pais precisam entender que têm de estar próximos dos pequenos”, completa Eliza Kozasa, neurocientista do Instituto do Cérebro do Hospital Israelita Albert Einstein e também instrutora de aikidô pela federação paulista do esporte.

O pai de Lucas, 10 anos, e Gabriel, 13, vai além. Treina os próprios filhos desde que eles completaram 3 anos. No começo, os garotos não levavam a atividade muito a sério. O comportamento, condizente com a idade, era de encarar a prática apenas como uma brincadeira, sem qualquer comprometimento. “Eles me acompanhavam no início, mas, na verdade, acabavam mesmo era aproveitando para fazer bagunça”, conta Heitor Hardy, 44.

Com o tempo, Lucas e Gabriel passaram a se dedicar mais e com seriedade aos treinos. “Hoje, eles ficam agoniados se algum dia não podem praticar”, orgulha-se o pai. Os meninos, que, segundo Heitor, costumavam brigar quando mais novos, foram se tornando mais tranquilos conforme o tempo e a dedicação ao esporte aumentaram. Além disso, Gabriel livrou-se da bronquite. “O esporte fortaleceu os meus filhos, fez com que eles se tornassem mais saudáveis”, conta o também técnico em contabilidade.

A disciplina aprendida dentro do tatame reflete-se ainda no desempenho de Gabriel e Lucas no colégio. O comportamento dos dois sempre foi elogiado pelos professores e orgulho de Heitor. As artes marciais, para o pai professor, são, além de tudo, uma maneira de aumentar a proximidade com os filhos e tornar os vínculos mais fortes entre eles.

Valores transmitidos
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Allan pratica caratê há três anos e já participa de campeonatos (foto: Edílson Rodrigues/CB/D.A Press)
Allan Felipe, 13 anos, começou a se interessar pelo caratê depois de assistir ao último filme da série Karatê Kid, em 2010. Aos 10 anos, o garoto pediu à mãe, Talita dos Santos, 29 anos, para matriculá-lo em uma turma do esporte. O menino começou a se destacar e a disputar campeonatos, alguns deles fora da cidade. Para não deixar que as competições atrapalhassem o desempenho nos estudos, Allan começou a se dedicar mais à escola. “Ele passou a se esforçar mais nas disciplinas e nos trabalhos depois que os campeonatos começaram. Fez isso para não deixar que as disputas atrapalhassem os estudos”, conta Talita.

Para a auxiliar administrativa, o filho se tornou mais centrado e disciplinado desde que passou a se dedicar ao caratê. “Ele sempre foi tranquilo, mas passou a ser mais, a desenvolver um espírito de equipe também”, comemora. Deixar claro para as crianças que as técnicas aprendidas no tatame não devem ser usadas para a violência fora dele é papel dos pais e dos instrutores, acredita Talita. “A estrutura da família é fundamental para isso, sempre ensinei a não violência para ele e os professores fazem o mesmo”, afirma.

Especialista em psicologia do esporte, Rodrigo Scialfa Falcão acredita que aprender princípios que fazem parte da filosofia das artes marciais, como respeito, disciplina e autocontrole, é um dos grandes benefícios desse tipo de atividade. “Trabalhar os esportes de luta também para educação é muito importante. Transmitir esses valores, o respeito, o conhecimento dos próprios limites pode ser mais importante do que apenas ensinar técnicas”, afirma. Falcão, porém, lamenta que esse modo de ensinar baseado nos valores ainda é pouco utilizado pelos instrutores.

Exercícios e técnicas são adaptados
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Especialista em psicologia do esporte, Rodrigo Scialfa Falcão acredita que aprender princípios das artes marciais, como respeito, disciplina e autocontrole, é um dos grandes benefícios desse tipo de atividade. Para não deixar que as competições atrapalhassem o desempenho nos estudos, Allan começou a se dedicar mais à escola (foto: Edílson Rodrigues/CB/D.A Press)
O ensino e a prática das artes marciais para crianças precisam sofrer adaptações, que vão desde mudanças nos exercícios e golpes ensinados até técnicas utilizadas pelos professores para prender a atenção dos pequenos. As lutas precisam ser pensadas de acordo com a idade do alunos a fim de que os riscos de lesões sejam reduzidos ao máximo possível. “Em crianças, é muito mais perigoso, pois os ligamentos e a musculatura ainda estão em desenvolvimento”, afirma Alexandre Drigo, especialista em ciências do esporte.

Segundo Walter Roberto Correia, professor da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP), as artes marciais não foram criadas pensando no desenvolvimento da criança e, nem sempre, são baseadas em princípios que condizem com os que hoje são vistos como recomendáveis pela sociedade. Para Correia, por esses motivos, o ensino de artes marciais deve ser repensado didática e pedagogicamente para se adaptar à infância. “Só assim podem ser mediadoras de valores éticos de cidadania e de bem-estar para a infância”, acredita.

Para fazer com que crianças e adolescentes mantenham o interesse pela prática de esportes de luta, os professores recorrem a ferramentas de ensino que vão além do simples aprendizado da técnica. Brincadeiras e conversas específicas são recursos que ajudam a deixar a atividade mais próxima do universo infantil. “A prática deve ser lúdica, mesclada a algumas brincadeiras e em um ritmo mais tranquilo”, afirma a neurocientista Elisa Kozasa.

Drigo ressalta que cabe aos pais procurarem instrutores que compreendam a necessidade de tratar de maneira diferenciada o treinamento durante a infância. “A criança não é um adulto em miniatura e o universo infantil é mais importante que o próprio domínio técnico da modalidade”, defende.

Arte: Soraia Piva / EM / DA Press
(foto: Arte: Soraia Piva / EM / DA Press)

Instrumento de resiliência
“Para evitar que as crianças se tornem violentas, antes de mais nada, é preciso mostrar que existe sofrimento e prejuízo tanto para a pessoa ferida quanto para aquela que se feriu. É importante que princípios de ética e valores sejam ensinados aos pequenos, pois eles também fazem parte do treinamento em arte marcial. Uma luta, na sua forma mais completa, não é apenas luta. É um instrumento para que o indivíduo desenvolva e conheça sua força e resiliência.”

Elisa Kozasa, neurocientista do Instituto do Cérebro do Hospital
Israelita Albert Einstein e instrutora de aikidô pela federação paulista do esporte