Exame de visão não pode se resumir a identificar letrinhas em um papel

Avaliação completa é fundamental para evitar perda parcial ou total da capacidade visual. Especialista indica primeira consulta aos 2 anos

por Letícia Orlandi 17/05/2013 08:40

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Banco de Imagens / sxc.hu
O Teste de Snellen: para muitos, este vai ser o único exame de visão ao longo da vida. Limitação pode esconder doenças que afetam desempenho escolar e profissional (foto: Banco de Imagens / sxc.hu)
Foi-se (ou, pelo menos, deveria ter ido) o tempo em que sentar-se diante de um cartaz branco com letras pretas era suficiente para determinar se alguém enxerga bem. Este exame, que ainda é o mais usado em diversas políticas públicas brasileiras – não é capaz de avaliar problemas oculares que podem levar à dificuldade ou até à incapacidade de leitura, por exemplo.

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O oftalmologista Ricardo Guimarães alerta para a necessidade do exame completo (foto: Divulgação)
O médico oftalmologista da Fundação Hospital de Olhos, Ricardo Guimarães, explica que a oftalmologia vive um novo momento. “Muitos pacientes podem ler aquelas letrinhas perfeitamente e mesmo assim apresentar um problema graves. Antes, o trabalho do médico era focado em determinar o grau das lentes ou dos óculos. Nos últimos anos, com a aproximação entre essa especialidade e a neurociência, veio a compreensão de que não se pode restringir a análise da boa visão ao olho em si “, explica o especialista.

E veio também a necessidade de exames mais completos, que avaliem se há alguma dificuldade de enxergar no escuro, se há algum problema com o movimento e a noção espacial, além da pressão ocular e do fundo de olho, por exemplo.

Quanto mais cedo qualquer problema for identificado, mais fácil é o tratamento e melhor é o resultado.



Teste do olhinho e acompanhamento
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Érika Mota Pereira recomenda que, se o teste do olhinho, feito no recém-nascido, aponta condições normais, a criança deve ser levada ao oftalmologista antes dos dois anos de idade. Isso pode favorecer uma recuperação total da acuidade visual (foto: Divulgação)
A médica mineira Érika Mota Pereira, que se especializou em Oftalmologia Pediátrica e Estrabismo pela Universidade do Texas (EUA), lembra a importância do Teste do Olhinho, que já é obrigatório por lei em alguns estados brasileiros, como Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Distrito Federal. O teste é capaz de detectar doenças oculares que podem levar à cegueira, como catarata e glaucoma congênitos, tumores e retinopatia da prematuridade, maior causa da cegueira infantil da América Latina.

O exame consiste na emissão de luz na pupila do bebê recém-nascido com o uso do oftalmoscópio, aparelho similar a uma lanterna. O reflexo vermelho indica que as principais estruturas internas do olho estão normais. Além de rápido e indolor, o teste permite o encaminhamento ao médico oftalmologista no caso de irregularidades na avaliação, para o diagnóstico precoce, aumentando a possibilidade de cura.

Érika explica que a região do cérebro associada à visão ‘cicatriza’, ou seja, se torna igual à de um adulto, aos 7 anos de idade. Caso seja identificado algum problema antes desse limite, as chances de recuperação de 100% da acuidade visual são grandes. “Às vezes recebo crianças com 8 anos e sou obrigada a dizer aos pais que chegaram um pouco tarde”, lamenta.

Quando um olho se desenvolve mais do que o outro, por exemplo, é bem comum que a criança se adapte e não perceba a diferença, a ponto de alertar os pais ou professores. “O cérebro escolhe a maneira mais fácil de enxergar e o olho que tem a deficiência acaba ignorado. A falta de diagnóstico pode levar à perda completa da visão neste olho”, explica Érika. Por outro lado, se a diferença for descoberta cedo, antes dos 7 anos, a colocação de um simples tampão já traz resultados em até 30 dias.

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Teste do Olhinho é obrigatório em vários estados brasileiros e é capaz de detectar doenças oculares que podem levar à cegueira (foto: Banco de Imagens / SXC.HU)
Embora uma pessoa com visão em apenas um olho possa ter vida normal, algumas limitações farão parte do cotidiano, como a ausência da visão tridimensional ou a impossibilidade de se tornar um piloto de aeronave. “A capacidade visual é restrita, sem que a pessoa tenha tido sequer a chance de experimentar uma visão normal. Nos Estados Unidos, muitas vezes recebemos pais que identificaram algu problema no filho quando compraram uma televisão de última geração, 3D, e a criança não conseguiu perceber diferença para a comum”, conta a especialista. Ela acredita que em breve isso vai acontecer no Brasil também, e existem testes simples para verificar essa condição antes que o problema se agrave.

Uma visita ao oftalmologista pode evitar também a descoberta tardia de um tumor intraocular e da toxoplasmose congênita. “Atendi recentemente ao caso de uma criança de 2 anos que já havia passado por outros médicos e finalmente chegou a mim. Ela teve um dos olhos removidos devido a um tumor, passa por quimioterapia e corre o risco de perder a visão no outro olho. Uma visita anual ao oftalmogista poderia ter minimizado as consequências do problema”, relata a médica.

A recomendação da especialista é que, se o teste do olhinho aponta condições normais, a criança deve ser levada ao oftalmologista antes dos dois anos de idade. A partir daí, devem seguir a recomendação do profissional e retornar anualmente ou de dois em dois anos, dependendo do caso.

Mundo digital
Outro fator que não deve ser desprezado é a porcentagem da população com problemas oculares. Enquanto no Brasil estima-se que cerca de 30% das pessoas apresentem algum problema, nos Estados Unidos essa taxa está em 45%, em Cingapura alcança 75% e em Taiwan, impressionantes 90%. “Essa taxa vem crescendo e uma das razões – embora existam outros fatores – pode ser a exposição exagerada e precoce aos ambientes digitais, repletos de joguinhos e telas em geral”, relata Ricardo Guimarães.

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Formação do sistema visual da criança é completa aos 7 anos: é importante que o tratamento comece antes disso. Exposição precoce e exagerada ao mundo digital pode contribuir para aumento das deficiências oculares na população (foto: Banco de Imagens / SXC.HU)
Segundo ele, a convivência cada vez maior em ambientes artificiais, em detrimento do ambiente natural, pode ser uma das explicações para o desenvolvimento anormal de defeitos refracionais em crianças de pouca idade. Já houve inclusive pesquisas que observaram a reprodução da miopia em animais, quando expostos à luz artificial exagerada.

O médico lembra também sobre a necessidade de atenção de pais, professores e profissionais de saúde à Síndrome de Irlen (saiba mais nesta matéria do Saúde Plena). Crianças na pré-escola, por exemplo, já são capazes de ver uma letra, associar ao som e reconhecê-las em palavras. Mas algumas delas, mesmo sendo participativas, espertas e apresentando normalidade nos exames de estrabismo e miopia, por exemplo, não se saem bem na leitura. Isso pode afetar a sua autoimagem e interesse pelo aprendizado, tornando o acesso à escola um pesadelo. Excluindo-se os déficits mentais e a cegueira, por exemplo, as principais causas de dificuldades na leitura são a Dislexia de desenvolvimento e a Síndrome de Irlen.

Embora a dislexia já seja reconhecida e tenha apoio multidisciplinar, a Síndrome de Irlen ainda carece de atenção. “Ela pode até impedir que a pessoa venha a ler algum dia”, ressalta Guimarães, lembrando que a síndrome afeta em torno de 12 a 15% da população mundial. Pesquisas realizadas em escolas de Belo Horizonte confirmaram essa prevalência também aqui no Brasil.

Como identificar?

Há uma maneira mais fácil de verificar os sinais de problemas na visão das crianças? Segundo o oftalmologista, é perigoso indicar sintomas e confiar apenas na identificação caseira, o que pode adiar a visita ao oftalmologista. Ele reforça a recomendação de Érika. “É fundamental que a primeira consulta seja feita antes dos 7 anos. Isso pode evitar casos muitos comuns, em que a pessoa descobre que é míope com mais de três graus ou um rapaz que descobre que não enxerga de um olho quando faz testes para o serviço militar obrigatório”, exemplifica Guimarães.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o exame de rastreamento é feito com financiamento público aos 3, aos 5, aos 7 e aos 9 anos – isso quando não é anual. De acordo com o médico, o Brasil conta com alguns projetos isolados, mas nenhuma política pública abrangente que realmente incentive um exame mais completo da condição visual infantil. “Transferir para o professor a responsabilidade de detectar problemas de visão com o velho exame das letrinhas – o teste de Snellen - está longe do ideal. Muitas vezes os estudantes até decoram as letras para fazer a ‘prova’. Cada sala de aula tem uma luminosidade e cada criança é colocada a uma distância diferente do cartaz, provocando distorções nos resultados”, alerta o oftalmologista.

 


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Projeto Bom Começo capacita professores para identificação da Síndrome de Irlen e Dislexia (foto: Divulgação)


Bom começo

Em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Ricardo Guimarães criou o projeto 'Bom Começo', que pretende ampliar o diagnóstico e o tratamento da Síndrome de Irlen, além de outros problemas relacionados à visão em todo o país. O Bom Começo já formou cerca de 1340 profissionais da saúde e educação, de 21 estados brasileiros. Com o treinamento, eles se tornam aptos a identificar e encaminhar as crianças que apresentam dificuldades específicas na leitura e escrita e que podem estar relacionadas à dislexia ou à Síndrome.

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Quanto mais cedo o problema for identificado, mais fácil é o tratamento e melhor é o resultado (foto: Divulgação)
O Projeto é dividido em quatro etapas: capacitação dos profissionais; triagem de parâmetros de saúde e encaminhamento dos alunos para consulta oftalmológica; realização do screening (metodologia para identificar a Síndrome de Irlen) e monitoramento e acompanhamentos dos resultados enviados para um banco de dados central. A terceira etapa começa a ser realizada em agosto, nas escolas de Nova Lima, que receberão equipamentos de qualidade para examinar os estudantes.

No caso da Síndrome de Irlen, é possível realizar o tratamento mesmo que ela seja descoberta em idade avançada. Entretanto, se for identificada mais cedo, as chances de uma vida escolar e profissional mais tranquila é maior. “Estamos em campanha para atualização da classe médica em relação à necessidade de examinar de forma mais completa a visão dos pacientes; e também para alertar os pais em relação ao exame precoce”, define o médico.

Para ampliar essa consciência, será realizado, em Belo Horizonte, no próximo mês de julho, o Congresso Brasileiro de Neurovisão. Para saber mais, acesse o site do evento: www.neurovisao.com