Braulio Tavares revela o trabalho como tradutor do mestre Raymond Chandler

Novas e caprichadas edições dos romances policiais do escritor norte-americano mostram que a relevância de sua obra atravessa as décadas, como aponta em entrevista o tradutor e organizador

por Carlos Marcelo 18/08/2017 08:00
Quinho/EM
(foto: Quinho/EM)
“Se houvesse mais homens como ele, acho que o mundo seria um lugar mais seguro para se viver, e ao mesmo tempo não seria um mundo tão chato que não valesse a pena.” É com a definição do caráter dos detetives de seus livros que Raymond Chandler (1888-1959) encerra o ensaio “A simples arte do crime”, incluído na nova edição de Adeus, minha querida. Para o autor norte-americano, que tem no investigador Philip Marlowe o seu mais conhecido personagem, o detetive “é o herói, ele é tudo”: “Ele deve ser um homem de honra, instintivamente, inevitavelmente, sem pensar nisso, e certamente sem dizê-lo; o melhor homem para seu mundo e um homem suficientemente bom para qualquer mundo”.

Em tempos de homens desonrados, não deixa de ser apropriado revisitar a obra monumental do escritor nascido em Chicago que, logo no primeiro romance, O sono eterno, inscreveu o nome na história dos romances policiais ao apresentar o seu personagem mais marcante: o detetive Philip Marlowe. Os livros de Chandler ganharam roupa nova no Brasil pela editora Alfaguara. Além de capas estilosas (do escritório Retina 78), as edições têm traduções, prefácios e apêndices com cartas e ensaios de Chandler escolhidos pelo organizador das reedições, o escritor e tradutor paraibano Braulio Tavares. O mais recente a chegar às livrarias do país foi A irmã mais nova (lançado nos anos 1980 pela Brasiliense com outra tradução, A irmãzinha, para o título original The little sister).

Braulio Tavares entregou à Alfaguara a tradução de A janela alta, ainda sem previsão de lançamento. “Com esse título se completam seis romances”, lembra Tavares. “Eu insisto com a editora para publicarem Playback, que não está no contrato original com os agentes ingleses. É de fato um livro não-tão-bom, e Chandler não gostava. Talvez eles estejam seguindo a vontade do autor. Mas eu gosto do livro, em alguns aspectos, e ficaria esquisito publicar tudo menos isso”, conta. O músico e escritor Tony Bellotto, um dos fãs de Raymond Chandler que falaram ao Pensar sobre o impacto da obra do norte-americano, também gostaria de ver Playback lançado no Brasil: “Pra mim, é quando Marlowe se revela por inteiro”. De toda forma, está previsto ainda pela Alfaguara um volume de contos a ser lançado em 2019. “Vou escolher e traduzir, já tenho uns cinco ou seis até agora”, antecipa Tavares.

O mais atraente dos apêndices das edições disponíveis está em A dama do lago: o artigo “Doze anotações sobre a narrativa de mistério”, no qual Chandler desanca o modelo de romance policial consagrado na Inglaterra por escritores como Agatha Christie: “(A narrativa de mistério) deve ter uma motivação verossímil, desde a situação original até o desenlace; deve consistir em ações plausíveis, sempre lembrando que plausibilidade é em grande parte uma questão de estilo. Também elimina construções complicadas como as de Assassinato no Expresso do Oriente, onde toda a preparação do crime requer uma combinação tão caprichosa de circunstâncias que jamais poderia parecer um fato real”, aponta Chandler no artigo.


Hollywood 

Os ensaios e as cartas selecionadas ajudam a conhecer a personalidade do escritor, às vezes irascível e irônico, mas sempre incisivo – em especial no período em que trabalhou como roteirista em Hollywood (ele assinou o roteiro de Pacto sinistro, adaptação de Patricia Highsmith, dirigida por Alfred Hitchcock). Não deixa de ser curioso perceber que, ao defender a valorização e mesmo a primazia do trabalho dos autores das histórias, Chandler antecipou em muitas décadas a instituição do showrunner, que passou a exercer poder de criação e de decisão superior ao dos diretores nas séries de tevê. “Essa dinastia insensível (de produtores e diretores) não vai durar para sempre: há esperança de que esse sistema decadente e falsificado seja coisa do passado, de que os chefões flatulentos aprendam um dia que somente roteiristas altivos e independentes podem escrever bons roteiros”, profetizou Chandler: “Vamos comemorar juntos, pois a tendência de um escritor se tornar um showman está de acordo com a respeitável tradição da arte literária praticada por entre as câmeras.”
Mas é em relação ao personagem mais conhecido que o escritor demonstra maior entusiasmo. Em carta enviada a um leitor inglês incluída no posfácio de O longo adeus, Chandler descreve Philip Marlowe: “A data de nascimento dele é incerta. Acho que ele diz em alguma parte que tem 38 anos, mas isso já faz bastante tempo e ele não parece estar mais velho hoje. Ele pode ser bruto. Se eu tivesse a chance de escolher um ator de cinema que o interpretasse em minha mente, acho que seria Cary Grant.”. Em outra carta, que está na edição The Raymond Chandler Papers: Selected Letters and Nonfiction (1909-1959), organizada pelos biógrafos Tom Hiney e Frank MacShane, o autor é especialmente mordaz ao ser cobrado a mostrar a “consciência social” de seu detetive: “P. Marlowe tem tanta consciência social quanto um cavalo. Ele tem consciência pessoal, o que é totalmente diferente. P. Marlowe não está nem aí para quem é o presidente do país; nem eu, porque sei que sempre será um político”.
 
“Enquanto os autores de pulp fiction usavam a figura do detetive como uma espécie de explicador dos fatos, Chandler faz Marlowe contar a história ao leitor, mas nunca revela totalmente suas intenções”, aponta Braulio Tavares no prefácio de O longo adeus. “Ele é um mistério a mais numa história narrada de maneira nítida, mas que geralmente nos surpreende, pela decisão do autor de reduzir a identificação entre o leitor e o detetive”, complementa.  
 
Arquivo pessoal
Braulio Tavares: tradutor e organizador da obra de Raymond Chandler (foto: Arquivo pessoal)
ENTREVISTA
Braulio Tavares 
"Chandler sempre se magoava por não ser considerado um autor sério" 
 
Quais os maiores desafios na tradução da obra de Chandler? Como foi manter o ritmo da tradução do que você chama de “diálogos-tiroteio”? 
Os diálogos são rápidos, com frases curtas, muito coloquiais. Mais coloquiais do que a voz narrativa. Não quero usar gírias de 2017. Preciso fazer o leitor ter em mente que está lendo um livro dos anos 1940, então a linguagem tem que ser coloquial, mas um tanto distanciada. Em vez de “maneiro” devo usar “bacana”, etc.  Chandler se gabava de ser o primeiro autor a pôr em livro a maneira de falar do americano das ruas, em sua época. Acho que “ser o primeiro” era bazófia dele, mas ele fez isso muito bem.

Por que Philip Marlowe é um “investigador diferente”? Como ele se sobressai, por exemplo, em relação a Sam Spade, de Dashiell Hammett?
Existe nele um confessionalismo, uma transparência moral que está ausente em Spade. Spade é um mistério. Ninguém sabe quais são os problemas afetivos e éticos dele. Os de Marlowe a gente sabe o tempo todo.

Você comenta que Marlowe tem “o olhar de uma câmera”. Como o cinema influenciou e foi influenciado por Chandler? 
Antes mesmo de trabalhar como roteirista, Chandler tinha uma maneira cinematográfica de narrar: O sono eterno dá provas constantes disso, com longas cenas de ações complexas, narradas de maneira estudada, meticulosa, sem diálogo, sem monólogo interior. A gente “vê” o que está acontecendo e entende tudo sem explicações. Nota-se que ele ia muito ao cinema. Ele se gabava de ter inventado o monólogo-narração em off feito pelo protagonista em Double indemnity (Pacto de sangue, de Billy Wilder), seu primeiro roteiro. Isso virou marca do gênero: todo filme que faz isso é chandleriano em alguma medida.

Como Chandler forneceu “dimensão humana e psicológica” ao gênero policial? 
Eu não diria propriamente ao “gênero policial”, que é muito vasto, mas ao policial “hardboiled” norte-americano, em que os personagens, inclusive os detetives, costumavam ser muito rasos, muito durões, metidos a heróis, meio caricaturais, quase como os super-heróis do cinema de ficção científica de hoje. Simplificando ao máximo, digamos que Chandler botou pessoas de verdade, personagens da literatura propriamente dita, dentro dos enredos policiais.

O que revela o artigo “Roteiristas de Hollywood”? O que foi mais marcante na carreira de Chandler como roteirista?
Chandler via o roteirista como um autor ou co-autor, trabalhando num sistema industrial que os desprezava. Pela força de sua personalidade, ele conseguiu com poucos anos de trabalho (e tendo começado com mais de 50 anos) ser um dos mais bem pagos de Hollywood. Como vinha de outro universo ele não tinha papas na língua, não estava a fim de “fazer carreira”, dizia o que pensava, na cara dos figurões. Pegou brigas homéricas mas sempre se impôs, e ficou rico. Todas as críticas que ele faz à Hollywood de 1940 se aplicam, por exemplo, à televisão de hoje em dia.

No prefácio de A dama do lago, você destaca “algo de familiar” ao leitor brasileiro no “oceano de dinheiro escuso, polícia maculada e infeliz a quem cabe impor tanto a lei quanto a vontade dos mais fortes”. Chandler teria material para se inspirar no Brasil do século 21 ou a imaginação dele não daria conta de tantos crimes?
Os crimes do Brasil de hoje não me parecem maiores ou mais generalizados do que os da Califórnia de 1940, de outros países, de outras épocas. Eles nos parecem grandes porque afetam diretamente nossas vidas e porque envolve pessoas que em um momento ou outro admiramos, ou em quem já chegamos a acreditar. Corrupção política, corrupção policial, sadismo policial, promiscuidade das elites, pseudo-guerra às drogas, suborno, famílias milionárias eliminando quem os incomoda... isso já havia (guardadas as proporções) em Roma, na Grécia, na Mesopotâmia. Mas o crime em frente à nossa casa, ou dentro da empresa em que trabalhamos, nos dói mais.

O que mais o impressiona em “Doze anotações sobre a narrativa de mistério”, incluídas na edição de A dama do lago?
Chandler era um leitor atento e exigente das histórias de mistério. Minhas opiniões diferem muito das dele. Meu romance policial preferido é o romance detetivesco no estilo que ele não gostava: Ellery Queen, John Dickson Carr, Agatha Christie, etc. Mas entendo as críticas dele, e todas fazem sentido. É muito difícil manter o fair play proposto pelos autores clássicos, o de dar todas as pistas ao leitor, mas de uma maneira que este não consiga prever o desfecho. Esse tipo de literatura tem algo de jogo, e Chandler parecia considerar isso algo trivial; ele queria a seriedade de alta literatura. Daí o fato de que seus enredos são muito inferiores, como enredos detetivescos, aos dos autores que ele criticava. Não era nisso que ele despejava toda a sua energia.

Por que Marlowe é “um mistério a mais”, como você aponta em O longo adeus?
Marlowe é um solitário, alguém sem vida pessoal. Não tem esposa, filhos, parentes, amigos próximos. Ninguém que o conheça. Chandler o queria assim, revelando-se apenas através do que pensa, fala e faz. Sem vínculos colaterais que o definam, sem pertencer a nada. Um indivíduo no sentido radical do termo. Sabemos pouco sobre seu passado. Ninguém seria capaz de compor biografias inteiras de Marlowe, como se faz com Sherlock Holmes; os dados são muito escassos. Minha impressão é de que Chandler quis repetir o que Hammett fez com Sam Spade (um personagem meio invisível por dentro), mas aos poucos ele foi contaminando Marlowe com suas inquietações pessoais, e o personagem ganhou uma complexidade e nitidez que Spade não tem (sem deixar de ser também um grande personagem).

Como Chandler lidava com a separação entre a “grande literatura” e a literatura de gênero? 
Ele sempre se magoava por não ser considerado um autor sério.  Era enorme sua gratidão para com o público e os intelectuais da Inglaterra, que o tratavam como “um escritor de verdade”. Acho magnífico quando ele diz que Shakespeare trabalhou num gênero considerado menor e ampliou as dimensões do gênero, em vez de se tornar menor também. É isso que todo artista deveria fazer – se for grande de fato, e não apenas “se achar”.

O que revelam as cartas incluídas nos apêndices das edições? 
Nas cartas ele é muito mais solto, mais espontâneo do que nos livros. Afinal de contas, nos livros ele está preso à história, aos personagens. Já nas cartas ele falava de tudo: vida social, política, música, poesia, sexo, bebida, dinheiro, mercado editorial, Hollywood... Tinha o hábito de, de madrugada, ficar bebendo e escrevendo cartas de 10 ou 20 páginas para amigos ou até para desconhecidos com cujas cartas simpatizava. Chandler é como Lovecraft: as cartas são mais ricas e mais reveladoras (não só sobre ele – sobre o mundo em que ele viveu) do que a sua própria obra ficcional.

O que mudou ou foi reforçado na sua visão da obra de Chandler depois dessa imersão para tradução, organização e prefácios?
Conheci melhor a pessoa, porque li uma meia dúzia de biografias e estudos sobre ele, ao longo desses anos. Estudei seu método de escrita, que era bem peculiar. Quando a gente vai traduzir é sempre bom saber em que circunstâncias aquilo foi escrito, em que estado mental, em que ritmo de trabalho. Se a gente sabe que o autor “A” produzia uma página por dia e o autor “B” produzia dez, o modo de traduzir deve levar isto em conta. Se a gente sabe que Fulano de tal escrevia um romance em uma semana, não há por que passar uma dia inteiro para tirar uma vírgula e uma noite inteira para botar a vírgula de volta. Isso seria uma infidelidade ao autor.

Como Chandler influenciou escritores no Brasil?
Rubem Fonseca é o exemplo mais evidente do estilo “hardboiled” entre nós, e ele assimilou essas influências muito bem. Seus personagens são menos “humanistas” do que Marlowe, mais secos, mais frios, mas a gente encontra com frequência aquelas reflexões filosóficas entremeadas a cenas de confrontos brutais, de crueldade, daquele canibalismo social em que as pessoas são meros peões de pressões sociais muito fortes. Não tenho lido muitos autores policiais contemporâneos, mas Chandler é muito lido, não há como não haver uma influência aqui e ali.

Por que Chandler acreditava que Adeus, minha querida era o ponto mais alto de sua obra? Você concorda com ele?
Os livros preferidos dele, na própria obra, mudavam de tempos em tempos. Ele via qualidades diferentes em cada um, preferia uns pelo estilo, outros pelo ritmo narrativo. De minha parte, eu divido a obra dele em duas faixas, digamos que são os ótimos e os bons. Na primeira, ponho O sono eterno, Adeus, minha querida, A dama do lago e O longo adeus. Na segunda, A janela alta, A irmã mais nova, Playback e os contos.

Se tivesse de levar apenas um livro de Chandler para ler durante uma viagem de avião, qual seria o seu escolhido? Por que?
Levaria as Selected letters, organizado pelo biógrafo Frank MacShane, e que releio há quase vinte anos. Chandler era um cara que escrevia com verve, espírito, concentração. Era cheio de opiniões sobre tudo, até um pouco pedante às vezes, mas por isto mesmo se estendia em longas análises cheias de vislumbres extraordinários. Era desabusado, tinha um excelente senso de humor, não tinha papas na língua; por outro lado, era um sujeito emotivo, de paixões intensas, profundo senso ético e altamente escolado nas malandragens da vida. Adorava brigar por qualquer coisa. E ele tem o tempo todo, nas cartas como nos romances, cada torneado de frase que é uma beleza. 

 A OBRA DE RAYMOND CHANDLER
 
• A dama do lago
• De Raymond Chandler
• Alfaguara
• 272 páginas 
• R$ 39,90.

• O sono eterno
• De Raymond Chandler
• Alfaguara
• 256 páginas 
• R$37,90.

O longo adeus
• De Raymond Chandler
• Alfaguara
• 400 páginas 
• R$ 52,90.

• Adeus, minha querida
• De Raymond Chandler
• Alfaguara
• 312 páginas 
• R$ 52,90.

• A irmã mais nova
• De Raymond Chandler
• Alfaguara
• 296 páginas 
• R$ 44,90.

• Traduções, prefácios e organização de Braulio Tavares.