'Esperando Bojangles', romance de estreia do escritor francês Olivier Bourdeaut, faz um ensaio sobre a loucura

Inspiração foi o casal de escritores Zelda e Scott Fitzgerald, cujo espírito de liberalidade e hedonismo foi como uma bandeira

por Eduardo Murta 12/05/2017 10:46

Imagine alguém flanando permanentemente sob o efeito de três doses acima da humanidade. Uma delas temperada pelo autêntico grau de contentamento. Outra, graças à magia do champanhe e dos coquetéis ao alcance da mão.

Alain Jocard/AFP
Após trabalhar como corretor de imóveis e encanador, ter livro recusado em uma editora, Olivier Bourdeaut obteve sucesso imediato na França, com 300 mil exemplares vendidos e direitos de tradução para 29 países (foto: Alain Jocard/AFP)

E a terceira turbinada por um grão de insanidade que se potencializa na mesma velocidade com que passam os dias. O destino pode transformar tudo isso em tragédia. Pode. Mas, ao gosto do cliente, pode também converter essa mistura numa festa sem hora para terminar, como que desafiando todos os limites da razão.

 

Há quem pague para ver. E que, literalmente, convida todos os seus fantasmas para a contradança. Ora dissimulados, ora realisticamente assombrosos, eles estão presentes na atmosfera de Esperando Bojangles, romance de estreia do escritor francês Olivier Bourdeaut. E que estreia! Com fino equilíbrio, ele retrata o microcosmo de uma família em que pai, mãe e filho se veem mergulhados numa espécie de ensaio contra a loucura.

 

Se ela é irremediável, por que não diluí-la em celebrações homéricas e teatrais, regadas a música, uma ponta de lirismo, álcool, muito álcool, e o indisfarçável compromisso com o prazer? Como se fosse necessário manter a rotina fora de compasso, porque é demasiadamente doído lidar com o que não cabe nos modelos tradicionais – não de comportamento, mas na forma de ver o mundo.

 

Assim, transformam em QG do hedonismo o apartamento da família numa Paris aparentemente ambientada nos anos 1970, ainda que carregada pelo glamour que poderia remeter aos anos 1920 ou aos 1950.

 

Bourdeaut consegue abordar o tema insanidade com delicada sensibilidade. Descarta fórmulas que resvalariam na pieguice e vai construindo, ora com a visão do marido, Georges, ora com o olhar do filho, uma síntese em que o fundamento maior é o amor. Porque só ele explicaria a maneira como ambos vão se ajustando às excentricidades da mulher e da mãe, a ponto de viverem em função do universo próprio que ela cria – em que abrir correspondências (até mesmo as de cobranças) ou ir à escola estavam fora de questão.

 

 

A representação simbólica desse sentimento está na cena que se repete por todo o livro. Georges e a mulher dançando colados ao som de Mr. Bojangles (canção de 1968 do artista country norte-americano Jerry Jeff Walker) na voz de Nina Simone. E o disco sempre voltando à vitrola, como se fosse a primeira vez. A paixão, no fundo, deriva para uma espécie de cumplicidade cega. Resultado de uma das promessas feitas por ele logo que se conheceram, num episódio em que as extravagâncias já eram lugar-comum: onde ela estivesse, ele também estaria. Fosse num ato tresloucado, num gesto apaixonado, nos desvãos que dariam num sanatório, na busca por uma porta de saída.

 

A inspiração da história foi assumidamente o casal de escritores Zelda (1900-1948) e Scott Fitzgerald (1896-1940), cujo espírito de liberalidade e hedonismo foi como uma bandeira. Talvez por uma escolha que reflete a personalidade imprecisa da protagonista, a ela não é dado um nome. Georges, a cada manhã, num ritual que soava a brincadeira, a tratava com variados nomes. Era como se o ar de novidade fosse essencial para mantê-los em sintonia com a vida.
Ao tratar a loucura numa abordagem lúdica, em que o belo e o “certo” é aquilo que te faz feliz, Bourdeaut caiu no gosto do leitor. Chegou a 300 mil exemplares vendidos no ano do lançamento e fechou contratos para tradução em 29 países. Aos 36 anos, deixava definitivamente para trás a trajetória mal-sucedida de corretor imobiliário, ajudante de encanador e a de escritor recusado por editoras, como na primeira obra que apresentou.

 

Uma das chaves, ele apontava em entrevista ao jornal argentino La Nación, está na inclinação para uma pegada em que caibam ironia e lirismo até mesmo em roteiros semitrágicos. Uma das maiores virtudes de seu livro, ele destaca com justiça, é esse caráter de “luminosidade”. Para em seguida completar: “O sentido do humor é indispensável”.
Para além disso, Bourdeaut povoa Esperando Bojangles com a representação máxima da cumplicidade apaixonada pela mulher e mãe. Em que, deliberadamente, pai e filho permitem que o fio dominante de razão fosse pouco a pouco se desconectando. Como numa busca incessante por uma rota de fuga. Uma porta de saída. Um lugar em que as coisas façam mais sentido – ou sentido nenhum. Em que, por fim, reste o silêncio.

 

 

Autentica/Divulgação
(foto: Autentica/Divulgação)
Esperando Bojangles
De Olivier Bourdeaut
Autêntica
128 páginas 
R$ 34,90