'Dicionário do diabo', de Ambrose Bierce, ganha edição completa no Brasil

Obra revela o sarcasmo e o humor negro do jornalista, desaparecido durante a Revolução Mexicana

por Pablo Pires 03/03/2017 09:39

São poucos os escritores que conquistaram notoriedade fazendo escárnio a respeito do ser humano. E poucos são tão celebrados quanto Ambrose Bierce (1842-1914), norte-americano de vida atribulada, o que não o impediu de insistir na provocação ou, mais justo, o compeliu a ela, insistentemente. Seu livro mais citado é Dicionário do diabo, editado pela primeira vez na íntegra no Brasil, em edição luxuosa da Carambaia, que inclui os poemas que complementam seus ácidos verbetes.

Dicionário do diabo/Reprodução
(foto: Dicionário do diabo/Reprodução)

Embora popular, a coletânea teve recepção controversa. Ganhou importância ao longo dos anos e se tornou obra satírica de referência para além dos Estados Unidos, mesmo que sua obra de contos seja considerada literariamente mais importante.

O livro só ganhou tal formato em 1911, depois da versão chamada The cinic’s word book (1906). Mas o dicionário de Bierce teve início bem anterior, no começo da década de 1880, com a publicação de ensaios e artigos satíricos na imprensa norte-americana. Como verbetes, os primeiros foram publicados em 1887.

Não se sabe se o projeto foi concebido como um compêndio desde seu início ou foi ganhando forma à medida que era impresso nos diversos jornais em que trabalhou e que ganhava publicidade. Fato é que o escritor dedicou quase 40 anos criando suas ácidas definições sobre os conceitos mais diversos.

Ao leitor de hoje, alguns termos vão soar inadequados e politicamente incorretos. A maioria não carrega esse aspecto datado e, mesmo assim, os que possam soar desrespeitosos ou preconceituosos ainda carregam um humor ferino e implacável.

A definição de mulher, por exemplo, pode ser controversa: “Animal que em geral vive nas proximidades do homem e tem rudimentar suscetibilidade à domesticação. (...) A espécie é a mais amplamente distribuída entre todos os animais de rapina...”, diz um trecho do verbete. No entanto, as palavras para definir homem são ainda mais radicais: “Animal perdido no êxtase da contemplação daquilo que pensa ser, a ponto de negligenciar aquilo que sem dúvida devia ser. Sua principal ocupação é o extermínio de outros animais e da própria espécie (...)”. Ou macho: “Membro do sexo impensado, ou desprezível (...)”.

Nota-se, evidentemente, o pessimismo e a ironia, muitas vezes lançados contra si próprio, como se vê em autoestima: “Avaliação equivocada”. No Dicionário do diabo, contudo, não há margem para indulgências. Tosco, por exemplo, é “crescido em vez de criado”. E também termos atualíssimos. Pirataria: “Comércio sem camisa de força como Deus o criou”.

E ele produziu muito. Começou como cartunista, descreveu a Guerra Civil norte-americana como testemunha ocular e militar. Depois de empreendimentos fracassados, voltou a escrever, trabalhou para vários jornais e publicou em revistas literárias.

Comprou brigas por não se submeter à lógica perversa do establishment, como uma descrita na apresentação de Rogério W. Galindo, em que Bierce enfrentou o magnata das ferrovias Collins P. Huntington e escreveu o epitáfio do empresário, depois que este tentou subornar o jornalista. Ou com o “cidadão Kane” William Randolph Hearst, dono de enorme rede de jornais e revistas. Após anos trabalhando para veículos do grupo – nos quais publicou boa parte do material do Dicionário – Bierce rompe com o patrão pelo tratamento dado a seus textos.

Sua obra tem lugar impreciso entre as categorias literárias. Humor, sátira, denúncia, reportagem, terror, histórias sobrenaturais. Em geral, os contos (maior parte de sua produção) são considerados como realismo de horror psicológico, com os quais ganhou certa popularidade. Seu conto My favorite murder (O meu homicídio favorito, na tradução de João Reis, 2010), por exemplo, começa com a frase: “Depois de matar minha mãe em circunstâncias de singular atrocidade, fui preso e colocado em julgamento, que durou sete anos”. Apesar de extremo, o exemplo deixa claro que Bierce não tem medo de chocar.

E certamente chocou sua família ao partir para o México, aos 71 anos, deixando uma carta na qual dizia que morrer fuzilado contra um muro seria um belo fim. Sua missão no país vizinho era cobrir a Revolução Mexicana (1910-1920). Cruzou a fronteira em dezembro de 1913 e enviou uma carta a um amigo em Chihuahua. A partir daí, tudo é incerto e envolto em mistério. Especula-se que poderia ter acompanhado, como observador, o exército de Pancho Villa e que teria se desentendido com o general. Há relatos de que teria sido fuzilado, como tinha prenunciado, que sofria de asma ou até se suicidado, mas nada é comprovado.

A idiossincrasia, o sarcasmo e o humor negro que o destacaram ao longo da vida, somados ao misterioso fim, criaram um aspecto mítico em torno da figura de Bierce. A viagem do americano ao México e seu desaparecimento serviram de inspiração para Carlos Fuentes escrever Gringo velho, novela de 1985 que projetou internacionalmente o autor mexicano. O livro ganhou versão no cinema, dirigida por Luis Puenzo em 1989, e com Gregory Peck interpretando o velho escritor americano.

A história parte de fatos reais, mas aborda a revolução e, sobretudo, investiga a identidade mexicana e suas dualidades. Entre elas, a ideia de fronteira como cicatriz, algo que une e separa, algo que, nos dias de governo Trump, voltam a se tornar emblemáticas.

    

VERBETES:

Ano (s.m.): Período de 365 decepções.

Branco (adj.e.s): Preto.

Convicto (adj.): Expondo seus erros a plenos pulmões.

Distância (s.f.): A única coisa que os ricos querem que os pobres tenham e continuem tendo.

Empurrar (v.t.): Um dos dois fatores principais que levam ao sucesso, especialmente na política. O outro é puxar.

Erudição: (s.f.): Poeira sacudida de um livro que cai em um crânio vazio.

Felicidade (s.f.): Sensação agradável que surge ao contemplar a desgraça de outrem.

Gentileza (s.f.): Breve prefácio de dez volumes de cobranças.

Idiota (s.2g.): Membro de uma grande e poderosa tribo cuja influência nos assuntos humanos sempre foi dominante e controladora. A atividade do idiota não se limita a nenhum campo de pensamento ou ação específicos, e sim “permeia e regula o todo”. Ele tem a última palavra em tudo: sua decisão é inapelável. (...)

Impunidade (s.f.): Riqueza.

Malfeitor (s.m.): O principal fator do progresso na espécie humana.

Nação (s.f.): Entidade administrativa operada por uma incalculável multidão de parasitas políticos, logicamente ativos, mas apenas fortuitamente eficientes.

Ortodoxo (s.m.): Boi que usa o jugo popular da religião.

Paciência (s.f.): Forma menos grave do desespero, disfarçada de virtude.

Uma vez (loc.): O suficiente.



Editora Carambaia/Divulgação
(foto: Editora Carambaia/Divulgação)
DICIONÁRIO DO DIABO
De Ambrose Bierce
Tradução de Rogério W. Galindo
Carambaia
304 páginas
R$ 99,90

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