Da arte de se imortalizar

Para especialista, escritor mineiro sabia que havia produzido uma obra-prima, capaz de dialogar com futuras gerações e propor novas leituras a cada contexto histórico

CRISTINA HORTA/EM/D.A PRESS
(foto: CRISTINA HORTA/EM/D.A PRESS)


Tão velho. Tão novo. Os clássicos têm a incrível capacidade de continuar dialogando com um tempo ao qual não mais pertencem. E, geração a geração, se alimentam das contribuições que leitores de variadas épocas vão dando à obra. Não foi diferente com Grande sertão: veredas, avalia a professora de literatura da UFMG Marli Fantini, especializada em Guimarães Rosa. O caráter vanguardista, observa, garantiu-lhe um tônus literário que levou ao reconhecimento no Brasil e fora dele. “Ao dizer que a linguagem precisava ser renovada, tirar aquele monte de cinzas que encobriam aquele caráter puro, genuíno e arcaico da língua, contaminada pelos clichês, estava dizendo que a obra dele dava garantia de que isso era possível.” (EM)

O que o Grande sertão ainda nos diz 60 anos depois de lançado?
Como toda grande obra clássica, o Grande sertão: veredas continua dizendo coisas muito importantes. Um grande clássico, como dizia Italo Calvino, é aquela obra que nunca termina de dizer aquilo que disse, pretendeu ou tinha para dizer. Isso é que permite a ela sobreviver e continuar a dizer coisas por tanto tempo. Dou um exemplo. A gente pode vislumbrar questões que não eram tão relevantes décadas atrás, extremamente importantes, como a ambiental, que aparece de uma forma extremamente forte com tantas décadas de antecedência. Há uma passagem do romance em que Riobaldo, conversando com seu interlocutor, cita: “O Senhor vem, veio tarde. Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada”. Há outras questões relevantes e universais, como o medo e a coragem, que já estão nos grandes mitos desde a Antiguidade grega. O amor e o ódio, o conflito existencial.



Mas há um desafio específico aqui. Como se tornar um livro imortal falando das chamadas coisas comuns?

A gente vai ver que as grandes obras, as clássicas, são construídas dessa maneira. E Guimarães Rosa, como ocorre com todos os grandes autores, vai falar da sua aldeia, do seu sertão, do Rio São Francisco, com todo o imaginário que ele cria em torno das pessoas, com seus mitos. A partir de um imaginário dessas histórias contadas nos sertões mineiros, vai tratar de questões universais que vamos encontrar em Shakespeare, na Bíblia, em Homero, em Dante Alighieri. A travessia de céu e inferno é uma das mais fortes referências em Grande sertão: veredas.

Aí temos um desafio dentro do desafio, que é falar do simples sem cair no simplismo...
Se a gente observar bem, todo escritor competente consegue uma simplicidade, uma redução, que não é simplória. É muito elaborada, constituída. Mas construir isso é difícil. Essa concisão é uma construção muito elaborada. Para constituir uma obra da dimensão da obra rosiana, é preciso uma linguagem extremamente trabalhada, sofisticada, que dialogue com outras linguagens.

Mas soa contrassenso quando, na célebre entrevista ao alemão Gunter Lorenz, ele dizia que a inspiração precisava ser provocada e, na dificuldade, admitia: ‘Gosto de pensar cavalgando’. O escritório dele não tinha paredes?
Ele fala na entrevista sobre cavalgar o diabo. E é bom lembrar que ele gostava de cavalgar, literalmente. Mas vale também do ponto de vista do devaneio. Pensar em cavalgar como hoje se pensa em navegar pela internet. Devanear libera criação e elaboração.

O Grande sertão já foi revirado de ponta cabeça. Da linguagem ao misticismo... o que mais falta para se ver na obra?
Essa questão da estética, da recepção, que considera não só o que foi pensado, mas também a contribuição que leitores de diferentes épocas vão dando à obra. Uma obra, a cada novo contexto cultural, vai ganhando conhecimentos que não haviam sido percebidos nela. Além da estética rica da linguagem, da maneira como transforma as imagens linguísticas, as imagens das pinturas, do cinema. Nesse ponto, podemos destacar convergências com Fellini, que desenhava sempre os quadros que utilizaria nos filmes. Guimarães desenhava cenas, movimentos, posteriormente usados em sua obra. Foi objeto de estudo num trabalho que desenvolvi. Podemos ver que Antonio Candido, que foi um dos primeiros críticos relevantes de Guimarães Rosa, vai fazer um estudo importante da relação entre regionalismo brasileiro e as vanguardas europeias usando a expressão transregionalismo. Mostra que alguns regionalistas, os modernistas, conheceram as vanguardas europeias e estabeleceram uma espécie de diálogo entre aquilo que é local, aldeia, o regional, o típico, o próprio do sertão e como esse sertão pode ser visto sob a perspectiva nova, a da vanguarda.

Grande sertão não corre o risco de se tornar mais comentado do que propriamente lido fora do circuito acadêmico?
Isso vai ocorrer com todas as obras clássicas. Quem lê A divina comédia, Hamlet, Goethe? De um modo geral, elas têm uma complexidade e um emaranhamento de estética que demandam uma formação muito especializada para seu leitor.

Num mundo cada vez mais fast food, como se mantém viva uma obra com a densidade de Grande sertão: veredas, cuja linguagem, no melhor dos sentidos, é arcaica?
Na prática, o que mantém a leitura e a sobrevida desse tipo de obra são as escolas. Além dela, um circuito cultural que mantém viva a obra, assim como os museus mantêm vivos os pintores clássicos.

Rosa era um crítico muito ácido da literatura brasileira, que achava repetitiva. Ele também se atribuía uma certa missão de purificar o idioma. Não era uma visão messiânica?
Ao dizer que a linguagem precisava ser renovada, tirar aquele monte de cinzas que encobriam aquele caráter puro, genuíno e arcaico da língua, contaminada pelos clichês, Rosa estava dizendo que a obra dele dava garantia de que isso era possível. O que ele fala é muito verdadeiro. Numa obra que não trabalhe apenas os lugares-comuns, é preciso mesmo renovar.

Há 60 anos, ele disse: “O sertão está em todo lugar”. O sertão continua mesmo em todo lugar?
Se você pensar nessa coisa da aldeia... penso que ele está querendo dizer algo que traduz uma frase muito importante do livro, em que o Riobaldo pronuncia a sua condição de um homem que tem suas raízes na aldeia, no sertão, no regional, mas que também atravessou fronteiras, navegou por outras águas. É do sertão, mas, ao mesmo tempo, do mundo. Que está tensionado entre verdade e mentira, entre saber e não saber. Não se conhecer, morrer de medo, mas, a despeito disso e por causa disso, lutar para ter coragem. Que está entre o diabo e Deus, que atravessa vários círculos do céu e do inferno. Numa frase de Riobaldo (“Eu sou donde eu nasci. Sou de outros lugares”) há uma unidade, de ter a raiz, mas ter também a diversidade.

Uma das frases de Rosa foi: “Eu quero escrever livros que amanhã não deixem de ser legíveis”. Ele foi além disso?
Acho que ali ele pensava na estética da recepção. Um livro que continua a ser lido, mas de outras formas, a partir de novos contextos. O sentido de ser um livro desafiador. Como quando se vira para o tradutor alemão e diz: ‘Sua tradução não está boa. Você tem de olhar o sentido, as imagens, a sonoridade, a ambiguidade dos sentidos, a musicalidade. Você tem de desmontar a língua, recriar as imagens... porque esse livro foi feito para durar 750 anos ou, quiçá, para durar até o juízo final’. Mas ele sabia que havia feito uma obra-prima.

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