Rappers brasileiros e portugueses reagem à intolerância no disco 'Língua franca'

No álbum, junto aos lusitanos Valete e Capicua, Emicida e Rael destacam a riqueza cultural e humana da comunidade lusófona

por Ângela Faria 26/05/2017 08:30

Vera Marmelo/Divulgação
Rael, Emicida, Valete e Capicua: militantes do rap e ativistas da língua portuguesa. (foto: Vera Marmelo/Divulgação)

''Sob o leme do colonizador, a periferia atravessou o oceano nos porões. Agora a periferia cruza o Atlântico na primeira classe'', diz Emicida. Construída com rimas, samples e batidas, a ''nau do rap'' conduzida por ele, Rael e os portugueses Capicua e Valete se chama Língua franca – CD que o quarteto lança nesta sexta-feira, 26, nas plataformas de streaming e lojas. O hip-hop das ''quebradas transatlânticas'', como diz Caetano Veloso no texto de apresentação do álbum, denuncia xenofobia, racismo e a injustiça, mas também aposta na esperança, na tolerância e no cidadão como protagonista de sua própria história.

 

A língua portuguesa é a trincheira dos quatro rappers. Emicida destaca a riqueza cultural e humana da comunidade lusófona, formada por nove países em quatro continentes. ''O Brasil não pode e não deve se achar 'os EUA do sul', evitando se conectar à riqueza desse universo e estabelecer uma relação realmente igualitária com esses irmãos'', diz. O compositor paulistano saúda a globalização ''que era o sonho de Milton Santos''. Esse intelectual negro baiano (1926-2001) pregava a internacionalização solidária, que valorizava a singularidade de cada povo.

A cantora e compositora Capicua diz que Língua franca é uma resposta à descrença que tem dominado o planeta. ''Conservadorismo, xenofobia e incompreensão crescem no mundo inteiro. Isso está evidente no golpismo brasileiro, no fascismo que se alastra na Europa e no avanço de Donald Trump nos Estados Unidos'', observa. ''Temos de estar atentos para defender a democracia. Liberdade e igualdade são conceitos antigos, mas exigem o nosso cuidado. Quero reforçar a igualdade entre os povos'', defende a autora do verso ''Mundo escuro/ Medo de um futuro nulo'' da faixa (A) tensão!.

''É deprimente você, em 2017, ter de gritar por diretas já. É humilhante o brasileiro viver no século 21 como se estivesse em 1964'', desabafa Emicida.

SÍRIA

O nome do CD remete tanto à franqueza contundente do hip-hop quanto à língua comum adotada por povos que falam idiomas diferentes. É também metáfora do próprio rap, que se tornou porta-voz das periferias dos quatro continentes. O quarteto fala dos horrores da Síria, do extermínio de jovens pobres, sejam eles brasileiros, africanos ou portugueses, e da passividade mundial diante da caçada aos imigrantes.

''Como é que eu vivo com a morte?/ Como é que eu convivo com a finitude?/ Como é que me pedem para ser forte/ Quando ela não respeita nem a juventude'', rima Capicua na faixa Vivendo com a morte. ''Eu limo arestas nestas palavras funestas/ Lágrimas e luto, não há festa nesta escrita'', diz Valete em Ela. ''São tribos inimigas, exércitos e fronteiras/ São guerras, são brigas, quebradas são ruas/ E ruas virando trincheiras'', adverte Rael em A chapa é quente. ''Silêncio de tumba na sala/ Quer ser livre?/ Leva bala/ Epidemia conformista sobre a qual ninguém fala'', diz Emicida em (A) tensão!.

ALEGRIA

Faz escuro mas eles cantam – e também apostam na alegria e na força da vida. AFROdite, por exemplo, celebra a beleza da mulher negra, saudando Clementinas, Jovelinas, rainhas Nzingas e escravas Isauras. ''Preta/ Morena não/ Preta/ Cacheada não/ Crespa'', decreta Emicida, inspirado nas empoderadas ''nefertites de grafite''. ''Tu és feita da cor do Universo/ Tu és precioso chocolate de ouro/ Deixa a carapinha livre/ Brilhar como Sol'', celebra Capicua.

Está prometido também para esta sexta, o lançamento do clipe de Ideal, um suingado tributo ao amor, com casais se esbaldando no baile animado pelo quarteto. Negros, brancos, mulatos, jovens e velhos dançam a valer. ''Aquele beijo foi um pause/ O que é que eu faço?/ Tô de mudança/ Eu vou morar no seu abraço (...) Cabuloso/ Pixinguinha/ Carinhoso/ Tá delícia/ Tá gostoso/ Eu vim chavoso/ Prum abraço'', manda o crooner Emicida lá de cima do palco.

Pelo jeito, o rap nacional – outrora tão enfezado – aderiu com gosto ao dois-pra-lá-dois-pra-cá. Este mês, Boogie naipe, disco solo de Mano Brown, foi lançado no Rio de Janeiro e em São Paulo com dois bailes de arromba, em clima ''soul de Tim Maia''. ''O hip-hop também é fruto da festa'', comenta Emicida.

''Ideal fala do amor fora da caixa, do amor construído na diferença'', explica Capicua. Para ela, o rap é um megafone a serviço da liberdade. Socióloga, a compositora discorda de quem tacha o gênero de esteticamente pobre por causa de seus erros de concordância, gírias e palavrões. ''Aqui, a língua é um organismo vivo e libertador, que rompe cânones. Ele (o rap) fala o português da vida real. Isso é muito libertador e subversivo ao empoderar as comunidades'', acredita Capicua. ''A língua está viva. Sou ativista da língua portuguesa”, afirma. Rapper desde adolescente ''com esse meu português do Porto'', a compositora ri ao contar que acrescentou a seu vocabulário a gíria brasuca ''mala sem alça''. Por outro lado, ensinou a Rael e Emicida uma palavra lusitana: fixe – sinônimo de legal, bacana.

Parceria da produtora Laboratório Fantasma (comandada por Emicida e o irmão, Fioti) com a Sony, Língua franca mescla as batidas do rap à sonoridade pop das músicas brasileira e africana. A produção é assinada pelo brasileiro Kassin, Fred Ferreira (que forma a Banda do Mar com Marcelo Camelo e Mallu Magalhães) e o curitibano Nave, nome de ponta do hip-hop brasileiro. Clipes de A chapa é quente e Ela já estão na internet. A turnê de lançamento começa em 14 de julho com show em Lisboa, mas a temporada brasileira ainda está sendo planejada.

LUSOFONIA
Cerca de 250 milhões de pessoas falam português na comunidade lusófona. Presente nos quatro continentes, ela é formada por Portugal, Brasil, Guiné-Bissau, Angola, Cabo Verde, Moçambique, Timor-Leste, São Tomé e Princípe e Guiné Equatorial.

 

LÍNGUA FRANCA
. De Emicida, Rael, Valete e Capicua
. Sony/ Laboratório Fantasma
. R$ 27,90

Solidariedade a Mallu

''Amei'', comenta Emicida, ao se referir a Você não presta, novo – e polêmico – clipe de Mallu Magalhães, que dança com negros de Portugal cujos corpos estão besuntados de óleo. Ativistas acusaram a cantora de racista ao hiperssexualizar afrodescendentes.

O rapper elogia Mallu por valorizar o trabalho dos bailarinos, chamando a atenção para ''a invisibilidade dos pretos lisboetas''. ''Lisboa tem uma negritude escondida'', reforça. Para Emicida, o movimento em prol do politicamente correto ''é útil e valioso'', mas pondera: ''é preciso muito cuidado para identificar os reais inimigos. A gente não deve combater quem está ao nosso lado, esquecendo o objetivo principal''. No Facebook, o rapper Rael também elogiou o clipe.

Nas redes sociais, Mallu Magalhães se desculpou com quem se sentiu ofendido. ''Por mais que tentemos expressar com precisão uma ideia, acontece de alguns significados, às vezes, fugirem do nosso controle'', alegou. O clipe continua no ar.

YouTube/Reprodução
Mallu Magalhães foi acusada de racista. (foto: YouTube/Reprodução)

 


APROPRIAÇÃO
Recentemente, militantes do movimento negro criticaram o uso de turbantes por mulheres brancas, acusando-as de se apropriar de símbolos da ancestralidade africana. Emicida afirma que a pauta da apropriação cultural não o interessa. ''Não tenho tempo nem paciência'', diz. ''Sou sampleador'', argumenta, referindo-se ao uso de trechos de músicas alheias em seu trabalho. ''Falo um pouco de japonês, me aproprio de outras coisas. Respeito aquela cultura e mergulho com respeito ali''.

Em 2013, o rapper foi alvo de campanha de feministas devido ao rap Trepadeira, faixa do CD O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui. A letra recomendava ''surra de espada-de-são-jorge'' em uma garota tachada de ''biscate''. Na ocasião, ele argumentou que ''não tinha a intenção de generalizar nada de pejorativo sobre as mulheres''. ''É uma música feita a partir da perspectiva de alguém traído, tal qual Lupicínio Rodrigues em suas muitas canções de dor-de-cotovelo'', alegou.

 

Abaixo, confira o clipe de Ideal:

 

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