Banda criada por Itamar Assumpção nos anos 1980, Isca de Polícia vai lançar o primeiro álbum autoral

Projeto reúne parceiros e músicos influenciados pela linguagem do mestre

Ele só pode estar ali, escondido em algum canto debaixo do calo do dedo indicador da mão esquerda de Paulo Lepetit, brincalhão nos dribles de pernas tortas da guitarra de Luiz Chagas. É um riso e uma raiva que se sente sem ver na voz indomesticável de Vange Milliet e nas provocações de Suzana Salles.

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O cantor e compositor Itamar Assumpção morreu em 2003 (foto: Reprodução/ Internet)
 

Uma predileção pelo diabo aqui, evocada por Lepetit e Carlos Rennó, outra glorificação dos próprios erros ali, proclamada por Arrigo Barnabé. Presente sem estar, Itamar Assumpção, morto em 2003, reafirma a força de uma linguagem que ele definiu nos anos 1980. Agora, o grupo que criou em 1981, o Isca de Polícia, lança o primeiro disco autoral sem o seu criador. A banda faz em São Paulo duas apresentações, nos dias 15 e 16, mas ainda não há previsão de turnê.

A missão poderia ser inglória por algumas armadilhas na pista. Haveria legitimidade de se compor com o pensamento de Itamar sem sua presença? Criada nos anos 1980, quando era erguido um cenário chamado Vanguarda Paulista, não estaria aquele idioma datado? As duas perguntas nem parecem ter sido feitas pelos músicos enquanto trabalhavam no novo repertório, mas podem ser levantadas por quem vai ouvi-los. E as respostas aparecem logo que a primeira música começa.

MULETAS A linguagem do Isca não soa datada talvez por ter se recusado a se escorar nas muletas de época. Musicalmente, Itamar desconstruía os caminhos que ele mesmo começava a pavimentar, criando um movimento ininterrupto de tensão e relaxamento, confundindo graça e contestação ou usando a primeira para atingir a segunda. Quando existia, a calmaria durava pouco, como se estivesse ali apenas para dar o gosto do quase pop, retirando o doce da boca da indústria pop.

Ao seu lado do início e até o fim, Paulo Lepetit absorvia seu pensamento, colocando o contrabaixo na condução do processo criativo, guardando sustos para os próximos compassos. Quando viessem então os anos 2000 e surgisse o que se chamaria de “a nova música brasileira”, com seu núcleo criativo identificado em São Paulo, com nomes como Tulipa Ruiz, Rodrigo Campos, Kiko Dinucci e Dani Black, a validade do Isca seria mais uma vez colocada à prova. Ele estaria em todos, de alguma forma, em corpo e alma.

Estariam os músicos do Isca pensando com suas cabeças ou com a cabeça de Itamar Assumpção? “Esse não é um trabalho saudosista”, define Vange Milliet em sua forma de dizer, com respeito ao mentor, que o valor do passado não pode ser uma âncora ao presente. O disco tem vida própria e seu idioma não é mais de um, mas de todos que um dia aprenderam a falar aquela língua. “Cada um dos músicos tem seus trabalhos próprios ou com outros grupos, mas é impressionante. Quando nos juntamos, fazemos esse som naturalmente, essa linguagem é nossa”, diz Vange, sob os olhares do baterista Marco da Costa e o guitarrista Jean Trad.

“Nunca nos acomodamos”, diz Lepetit. E, depois da morte de Itamar, a constatação é de que o Isca passou a fazer mais shows. “Foi quando começamos a desenvolver essa linguagem que temos hoje”, diz Lepetit. Há um fato sobre o qual parece haver alguma angústia represada. Itamar entrou em confronto direto com o meio artístico convencional, desafiando não só as gravadoras como outros agentes, como jornalistas, TVs, contratantes e artistas. Negro Dito não baixava a guarda, dizendo não para gravadoras, reafirmando sua má vontade com matérias jornalísticas e não titubeando em abrir mão de apresentações uma vez que suas exigências não fossem aceitas. Se não ganhasse o mesmo cachê de Gilberto Gil, por exemplo, não se apresentaria. A banda se ressentia. “Éramos todos jovens”, diz Paulo Lepetit. “É claro que queríamos tocar mais.”

NOVIDADES O disco que sai agora cruza colaboradores com histórias passadas diretamente ou não pelo trajeto da Vanguarda Paulistana. Péricles Cavalcanti é autor de Arisca; Arnaldo Antunes assina Dentro fora com Lepetit; Meus erros é de Lepetit com Arrigo Barnabé (com quem Itamar começaria tocando contrabaixo). Lepetit, Milliet e Ortinho fazem uma homenagem mais assumida em As chuteiras do Itamar: “Não se afobe, o adversário é forte / Pra gente virar o jogo não vai ser mole não / Baixa o Garrincha aqui nesse Nego Dito / Driblo a torcida com meu sorriso / Meu patrocínio é o que eu digo, preste atenção”.

Há uma espécie de exercício de alongamento no repertório do Isca. Zeca Baleiro não estava ainda na cena, mas poderia ter passado por ali, apesar do estilo de poesia mais direto, como mostra sua parceria com Lepetit batizada de É o que temos, é o melhor. “Você nunca sabe o que quer / Se quer viagem, casamento, bicicleta / É sempre tão difícil escolher...” Há ainda Atração pelo diabo, de Lepetit e Carlos Rennó; Eu é uma coisa, com Alice Ruiz; Xis, de novo com Arnaldo Antunes; e Itamargou, de Tom Zé. Tom é outro sócio de um clube que tinha como prerrogativa aceitar mentes que rejeitavam amarras. “Itamargou-ou-ou / Sem Itamar / Se a Isca se for / Vai escamar...”

Há mais material já pronto para o lançamento de um segundo álbum, programado para sair em seis meses. “É a tomada de carreira do Isca como banda autoral”, diz Paulo Lepetit, seu criador mais atuante. A inédita em disco Beleléu via Embratel, de Itamar, já conhecida dos shows, será gravada pela primeira vez. E virão parcerias agora com Chico César, Alzira E, André Abujamra e Zélia Duncan. São os longos tentáculos do Isca, sob a eterna direção de Itamar Assumpção. (Julio Maria/Estadão Conteúdo)

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