Rashid lança 'A coragem da luz' e aposta no diálogo do hip-hop com a MPB

Suas rimas não se limitam à crônica da periferia, trazendo a vivência do garoto apaixonado pela roça mineira

por Ângela Faria 12/06/2016 06:00
Eric Ruiz Garcia/divulgação
Eric Ruiz Garcia/divulgação (foto: Eric Ruiz Garcia/divulgação)

Nem grafites nem rapazes de olhar enfezado nem tênis “da hora”. Na capa está o mano descalço, caminhando pela estrada de terra. O tom sépia lembra a foto do Clube da Esquina, aquela do menino negro e seu amigo sentados à beira do barranco de uma roça qualquer.

À sua maneira, o rap do paulistano Rashid, o moço sem sapatos da capa do CD A coragem da luz, bebe na fonte do antológico álbum de Milton Nascimento e Lô Borges. Lançado há 44 anos, aquele disco tem feito a cabeça do MC, de 28, nos últimos quatro anos. Cartola, Jorge Benjor, Adoniran Barbosa, Jay-Z, Racionais MCs e Chico Buarque estão entre os outros ídolos dele.

Em A coragem da luz, a flauta que abre a primeira faixa (Cê já teve um sonho) é pura MPB. O violão e a cuíca de DNA, a faixa seguinte, remetem ao samba. “Querem muros? Eu prefiro pontes”, versa Rashid, sem temer as “pedradas” endereçadas a rappers como ele por manos que não aceitam essa história de levar o hip-hop para além dos beats “de raiz”. Não custa lembrar: em 1972, Milton e Lô também “apanharam” por ousar misturar rock, Beatles,jazz e samba-canção...

“Cultivei a ginga no meu jazz”, diz o verso de Rashid. Em seu primeiro álbum solo, ele põe rock, jazz, samba, zouki, soul e uma pitadinha de bossa nova a serviço do hip-hop. Rap essencialmente brasileiro – essa é a missão do MC, que já mandou para as ruas três mixtapes e dois EPs. Na era pós-gravadoras, ele construiu sua carreira de 10 anos na internet: o single A fila anda superou 2,7 milhões de visualizações; Se o mundo acabar passou de 1 milhão; Gratidão bateu 1,1 milhão.


Talento descoberto nas batalhas de rimas em São Paulo, Rashid começou a criar seus versos aos 12. Por volta dos 18, depois de morar alguns anos no interior de Minas, decidiu ser músico. Criado na periferia paulistana, iniciou a carreira ao lado dos hoje famosos Emicida e Projota, adolescentes humildes como ele. O trio vendia cada disco por menos de R$ 5 – nas ruas, depois dos shows e onde houvesse freguês. Em 2011, o projeto Três Temores bombou – brincadeira deles com os milionários tenores Placido Domingo, José Carreras e Luciano Pavarotti. Com o single Nova ordem, o trio superou 7,3 milhões de visualizações no YouTube.

Lançado este ano, A coragem da luz, primeiro álbum solo de Rashid, contou com produtores experientes – entre eles, Nave, Max de Castro e Coyote. Bem que Criolo avisou, em abril, ao divulgar seu Ainda há tempo: esse disco de Rashid vem reforçar a linha de frente do rap nacional. O gênero, tão discriminado como “coisa de bandido” há alguns anos, conquista o seu lugar na música popular brasileira.

“Aqui, você sai na rua e ouve samba, sertanejo, funk, rock, arrocha... Nós conseguimos unir, misturar”, diz Rashid, empenhado em fazer “rap com a cara do Brasil”, mas sem deixar de lado as novidades do exterior. Sem forçar a barra, a sonoridade do álbum traz beats criados no computador dialogando com violão, guitarra, sax e flauta.

Rashid explica que sua geração ousa “pôr a cara em lugares diferentes”, em termos musicais. Lembra que Sabotage (1973-2003), lenda do rap brasileiro, foi muito criticado por misturar (pioneiramente) seus beats com samba. Recentemente, Mano Brown, o respeitado líder do Racionais MCs, viu-se diante de uma espécie de linchamento virtual de parte dos fãs, indignados ao vê-lo gravar Benny & Brown com o funkeiro carioca Naldo. Ainda por cima, o clipe estreou no Fantástico...

Artista independente – A coragem da luz foi totalmente bancado por ele –, Rashid mantém a produtora Foco na Missão, que vende shows, camisetas, bonés, EPs, mixtapes e CDs. “Nunca dependi de governo para nada”, avisa, indignado com a quase extinção do Ministério da Cultura pelo governo Michel Temer. “Cultura educa, integra, forma e resgata a juventude”, defende.

Rashid nunca recorreu à Lei Rouanet. Não perdoa os ataques recebidos por colegas que reivindicaram a manutenção da pasta. Revolta-se com a pecha de “vagabundo” imposta a artistas que saíram em defesa dos mecanismos de patrocínio cultural. Para o rapper, a destituição da presidente Dilma Rousseff foi “uma punhalada” que a sociedade brasileira desferiu em si própria.

Em suas letras, fala de um Brasil cruel, onde a polícia mata crianças de 10 anos e a violência extermina jovens negros, sobretudo nas periferias. O rap A cena, que ganhou clipe, descreve uma batida policial. “Não deixe que o medo te envolva/ Fale uma palavra atravessada/ E não há Pasquale que resolva”, adverte ele. Racismo, preconceito, homofobia e intolerância religiosa são temas do disco. Porém, o rapper fala também de amor, esperança e fé.


BROWN

O disco traz um “encontro de gerações” do rap nacional. Criolo, de 40, é parceiro de Rashid em Homem do mundo (“Cidade grande/ Tempo curto/ Felicidade é a meta/ Dinheiro é surto”). O veterano Mano Brown, de 46, divide os microfones com o jovem colega em Ruaterapia, faixa produzida por Max de Castro. O rapper do Racionais surge romântico, com referências a Roberto Carlos e “o coração em off”. Detalhe: desta vez, ele canta – não se limita apenas a rimar.

“Meu, até hoje não acredito que Mano Brown tá cantando no meu disco. O público vai ficar em choque”, diz Rashid, contando que o “Racional” e Max de Castro abraçaram seu projeto com tanto carinho que até batizaram Ruaterapia.



‘Mineirim’ da gema

Dos 13 aos 18 anos, Michel Dias Costa, o Rashid, morou com a mãe, Valdecília Vitória Dias, os irmãos e a avó, Terezinha de Jesus Dias, em Ijaci, pequena cidade perto de Lavras, no Sul de Minas. Hoje, vive em São Paulo, mas volta à roça pelo menos três vezes por ano. O nome artístico veio da brincadeira dos colegas, que o achavam com cara de árabe. A palavra quer dizer sábio conselheiro.

Garoto, trabalhou como boia-fria, ajudando a mãe a colher café. “Meu rap tem periferia urbana, mas tem roça também. Trago comigo o que aprendi em Minas. Muito se fala do Brasil da favela, do tráfico e dos tiroteios, mas não é só isso. O Brasil é também aquela vivência sofrida – e bonita – da gente do interior”, diz.

Lançado em 2014, o clipe Gratidão foi rodado em Ijaci. Tem vacas no pasto, menino mergulhando no rio, vara de pescar, pontilhão, estrada de terra. Ano passado, o rapper fez questão de voltar à sua roça com o fotógrafo Eric Ruiz Garcia. São de lá as imagens da capa e do encarte de A coragem da luz.

Rashid canta o Brasil profundo – ou melhor, a Minas profunda. O mundo é de nós todos é exemplo disso. A canção não entrou no disco novo devido a problemas relativos a direitos autorais de um sample, já resolvidos. Fala de bóias-frias e também de bolivianos e coreanos, trabalhadores ilegais que lutam pela vida em São Paulo. “São os escravos dos tempos modernos”, diz Rashid.



SIMPLICIDADE


Fã de Milton Nascimento, diz que ele representa a beleza da simplicidade. “São Paulo extrai beleza do concreto, enquanto Minas extrai daquelas montanhas, daquele jeito de viver”, filosofa. Gosta tanto do disco Clube da Esquina que até pensou em reproduzir a foto dos dois meninos da capa em seu A coragem da luz.

Feliz, Rashid revela que Lô Borges compartilhou nas redes sociais – com elogios – o clipe em que ele faz sua releitura hip-hop de Tudo que você queria ser, clássico do Clube. A faixa integra a coletânea virtual Mil tom, lançada pelo site Scream e Yell.

Como em casa de ferreiro espeto é de pau, Rashid nunca fez show em sua querida Ijaci. É bem verdade que os amigos de lá adoram sertanejo, mas o dia vai chegar. “Tudo tem a sua hora certa”, diz o “mineirim”, que de vez em quando solta um ou outro uai nas quebradas de SP. Ijaci vai esperar um tiquinho, mas BH poderá conferir a performance do rapaz em 22 de julho, no Sesc Palladium.

Quem sabe o Lô não aparece...

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