Clara Gurjão tem estreia promissora com o disco 'Ela'

Cantora faz uma mistura de pop, samba, jazz, tango, blues e outros ritmos e levadas

por Kiko Ferreira 30/03/2016 08:00
Philippe Leon/Divulgação
(foto: Philippe Leon/Divulgação)
A primeira boa notícia sobre Ela, disco de estreia da cantora, compositora e violonista carioca Clara Gurjão, é que ela não parece uma nova versão de alguém. Traduzindo: sua música pop, que mescla samba, jazz, tango, blues e outros ritmos e levadas, não soa como versão atualizada de nenhuma outra artista. Não que ela seja absolutamente original, mas demonstra personalidade nas 12 faixas do CD, produzido por ela, Kassin, Marcelo Costa e Danilo Andrade.

A voz afinada e bem colocada, preparada pela craque Suely Mesquita, surfa com facilidade pelo repertório praticamente todo autoral. Só não são dela a versão acelerada de Muito, de Caetano Veloso, que ela confessa ser sua maior influência, e o bolero Como fue, do cubano Ernesto Duarte Brito, que ela possivelmente conheceu quando andou pela terra de Fidel pesquisando ritmos, ao lado do pianista Danilo Andrade.

Iniciada com clima francês e logo assumindo uma pegada dance, Ela abre apresentando uma personagem entre Paris e Rio, frequentando exposições, andando pelas ruas e bebendo de bar em bar, esperando a noite e suas perguntas que vão ficar pelo ar. Procurando mesclar influências de Céu e Tim Maia, a hedonista O mundo é tentador, rapaz tem suingue envolvente, com destaque para o baixo de Kassin, teclados de Danilo Andrade e a guitarra fuzz de Gabriel Mayall, ex-Los Hermanos. O homem e o mendigo, uma de suas primeiras composições, parte de uma cena carioca, em que ela viu um engravatado ajudando um mendigo que teve rasgado o saco de lixo em que carregava seus pertences, para defender o saudável espírito de convívio entre extremos da cidade do Rio de Janeiro.

A influência do jazz em seu trabalho é mais nítida em Sempre é pouco, inspirada no standard Take five, de Paul Desmond, com mudanças de tempo musical e compassos quebrados e uma declaração de princípios: “Não percebe que funciona assim?/ tão somente sou mulher/ quando o coração hesita em falar/ é porque deixa pra lá”. Armadilha, samba lento, quase melancólico,  ela relaciona com Monsueto, mas tem um tempero de samba e bossa que combina com a personagem que cai na armadilha do amor e perde o rumo. Com a voz teatral de Sílvia Machete dividindo os vocais, Pequenos segredos soa nostálgica, com ar de musical da primeira metade do século 20.

Já Canção lisboeta, composta durante viagem a Lisboa, quando fez seu primeiro show fora do país, funciona como se a moça do começo do disco pegasse um voo para Portugal e continuasse sua busca pela felicidade, com direito a citação a Fernando Pessoa no final. Com jeito de tema de novela, Rendição é a preferida da autora. Com pegada meio oitentista, é nela que a letrista melhor abre a guarda e se deixa levar pelo prazer: “Nunca terei um minuto de paz/ minh’alma está entregue à vaguitude/ juízo já não encontro mais/ não sou de nada/ eterna escrava /- ingratos !-/ do seu bel-prazer”. Com a percussão ajudando a mesclar clima de tango com tons africanos, Leonino é o contrário. É uma típica DR com um outro leonino, de gênio forte. Drama de mesa de bar.

Mas ela baixa a guarda na versão sedutora de Como fue antes de encerrar com Vou te esperar, uma de suas primeiras composições, que soa um pouco ingênua (com versos como “eu vou mover mundos e fundos pra fazer você feliz”) e, mesmo assim, mantém a sensação de que Clara é uma compositora com boas possibilidades de desenvolver uma carreira sólida e inspirada.

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