Confira a repercussão do adeus a Naná Vasconcelos

Capaz de produzir belos sons com os mais inusitados objetos, multipremiado no exterior, dono de uma carreira que começou ainda na infância, o percussionista transformou sua luta contra o câncer numa batalha musical

por Eduardo Tristão Girão Ana Clara Brant 10/03/2016 08:00

PREFEITURA DO RECIFE/DIVULGAÇÃO
PREFEITURA DO RECIFE/DIVULGAÇÃO (foto: PREFEITURA DO RECIFE/DIVULGAÇÃO)
 

''Estou com a mente plena de vida. O pensamento cheio de músicas. Mântricas, místicas, populares e eruditas, além da miscigenação de pessoas de diferentes ramificações religiosas rezando por mim. Para o bem. Amém. Amém''. Em entrevista ao Estado de Minas, em outubro passado, o percussionista pernambucano Naná Vasconcelos contou que foi essa a frase que lhe veio à mente ao final do primeiro dia de tratamento contra o câncer no pulmão, doença que acabou por derrotá-lo na manhã de ontem, no Recife. Ele tinha 71 anos.


O artista não fraquejou. Mesmo internado, continuou compondo. Cantarolou tanto que musicou aquela velha frase de médico: “Respire fundo e diga 33”. Cantada repetidamente, virou verso de trilha para balé. Ele havia compreendido que, independentemente do que acontecesse, a música era o caminho a ser seguido. Não por acaso, disse à reportagem, naquela ocasião, que já estava pensando no que cozinhar para Egberto Gismonti, quando o fluminense estivesse em sua casa para escreverem Budista afro, peça para percussão e orquestra.


Naná teve relação visceral com a música. Além de não ter parado de tocar, compor e viajar, nunca perdeu o olhar curioso que o distinguiu no panorama da música mundial. Manteve todo o tempo o encantamento pela descoberta de sons, chegando a anunciar, três anos atrás, o lançamento de um disco (4 elementos) em que fez da água da piscina de sua casa instrumento musical, batendo nela com as mãos. Disse que acrescentou cordas “só para dar um clima”. O que dizer de um músico que simula o som do fogo esfregando um pacote de salgadinhos?


E ele fez bem mais do que isso. Tratou o berimbau como um saxofonista trata o saxofone, por exemplo, habilitando-o para o papel de solista. Deslocado do contexto da capoeira, o instrumento ganhou o mundo e novas perspectivas tornaram-se claras. O pernambucano aproveitou várias delas, e talvez seu maior feito tenha sido nada menos que um disco de berimbau e orquestra, Saudades, lançado em 1980 pela gravadora alemã ECM, a mesma que tem no catálogo álbuns de alguns dos melhores instrumentistas do planeta.

FLORESTA TROPICAL A partir dos anos 1970, passou temporadas no exterior, quando afirmou, ao lado de outros colegas de grande quilate (como Airto Moreira e Dom Um Romão), a importância da percussão brasileira. Naná levou na bagagem queixada de burro, penico e outros objetos que, para ele, eram música pura, além do berimbau. O ouvinte estrangeiro, acostumado às congas e maracas dos ritmistas caribenhos, foi pego de surpresa. Ouvir o pernambucano recriar com as mãos os sons da floresta tropical foi impactante.

Não é exagero. Basta ouvir o clássico disco Dança das cabeças, do multi-instrumentista Egberto Gismonti, no qual o pernambucano está em plena forma: fechando os olhos, dá para viajar pela mata brasileira. A colaboração com Gismonti rendeu outros lindos álbuns, que estão no currículo do percussionista ao lado de trabalhos com Miles Davis, Pat Metheny, Art Blakey, B.B. King e Paul Simon. Isso para ficar em apenas algumas citações. Sua discografia, sem hiatos, é composta por cerca de 30 obras.

 

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O artista costumava queixar-se de ser o “Brasil que o Brasil não conhece”. O reconhecimento internacional, de fato, é imenso (a revista norte-americana DownBeat o elegeu várias vezes percussionista do ano), mas os feitos dele no país não foram poucos. A inovação no berimbau e a sofisticação percussiva (que incluía a voz e o corpo) já seriam o suficiente em termos de influência para as gerações posteriores, mas é preciso reconhecer sua participação como diretor de um festival importante, o Panorama Percussivo Mundial (PercPan, em Salvador), e em bandas de peso, como o Som Imaginário, ao lado de vários mineiros.
Por falar em Minas, vale lembrar que Milton Nascimento foi um dos responsáveis por trazer Naná para o universo da música profissional, na década de 1960, no Rio de Janeiro. Bituca havia chegado recentemente de Belo Horizonte e estava prestes a gravar seu primeiro disco. Naná havia deixado o Recife natal para trás e, numa festa na casa de Milton, deixou o anfitrião impressionado ao tirar som de panelas, enquanto soavam os acordes de Travessia. Desde o princípio, o pernambucano conseguia fazer música com pouco nas mãos.

Essa lição ele aprendeu cedo, acompanhando o pai, violonista, em bailes de bolero e chá-chá-chá nos cabarés da capital pernambucana. Ele só tinha 12 anos e, sem saber, o mundo pela frente.

 

"FLORIDO ERA TODO SEU SER"Os amigos costumavam dizer que Naná Vasconcelos transformava tudo em música e tinha a mania de batucar em tudo que via pela frente. Foi assim na temporada que passou em Belo Horizonte, nos anos 1970, mais precisamente na casa da família Borges, em Santa Tereza, onde criava sons nas panelas de dona Maricota, a matriarca.


O compositor Márcio Borges lembrou, nas redes sociais, a convivência com o percussionista em um post emocionado. “Naná Vasconcelos, meu querido Juvenal Vasconcelos de Holanda, o jovem que hipnotizava mamãe Maricota e levava as panelas dela pra esquina, pés descalços, camisas floridas como florido era todo seu ser, dando show de graça para os transeuntes... Um cara pra quem o próprio saudoso Bauzinho – nosso orgulhoso recordista etílico das pingas boas – tirava o chapéu pela inacreditável resistência às dezenas de doses que nós tomávamos, ele mais do que todos juntos, o último a ficar de pé depois de tantas, sempre! Imbatível... A lista do lado de lá já está quase superando a de cá. Valha-me, Deus!”


A relação do músico pernambucano com Minas Gerais e os mineiros se deu por meio de Milton Nascimento, com quem chegou a morar no Rio de Janeiro e de quem foi parceiro em shows e discos. O pandeirista Túlio Araújo conta que conheceu Naná pela obra de Bituca. Observando trabalhos mais “abertos” de Milton, encantou-se com as texturas de canções como Novena (1964). “Fiquei chocado com a visão que o Naná Vasconcelos tinha de instrumentos que, outrora, eram considerados somente de acompanhamento. O berimbau é o grande marco do Naná, o instrumento que o projetou para o mundo, mas ele era completo. Os dicionários definem ‘percussionista’ como aquele que domina as técnicas dos instrumentos de percussão. O Naná vai além, dominou a música por completo. Eles se tornaram um só. Choro hoje, mas com um sorriso dentro do peito. Naná, agora, é eterno!”
O baterista Esdra (Neném) Ferreira comentou que teve a honra de tocar com o músico em duas ocasiões e ficava impressionado como ele sempre inovava. “A criatividade do Naná era algo muito forte. Nunca fazia o mesmo do mesmo. E fora que, quando se apresentava, tinha aquela coisa muito visual. Ele era diferente.”

 

Já o percussionista carioca Marcos Suzano tem no pernambucano uma espécie de farol e sua principal referência. “Naná sempre apontava uma direção, quando a gente estava procurando algo, assim como foram Miles Davis e Paulo Moura. Era um músico inacreditável, respeitado no mundo inteiro e que vai deixar um legado enorme. Era meu grande ídolo, minha grande inspiração, e, assim como me influenciou, acredito que ainda vá continuar influenciando muita gente.” 

 

 

Confira as homenagens de outras personalidades ao percussionista:  

 

“‘Minha maneira de pensar música vai continuar viva depois de mim’, dizia Naná Vasconcelos. Descanse em paz, querido”
Gilberto Gil, cantor e compositor

“O que realmente tem significado, mais do que discos ou shows a fazer, é a perda desse grande amigo, o que mostra, mais uma vez, a grande fragilidade da vida”
Egberto Gismonti,
compositor e multi-instrumentista

“Naná Vasconcelos nos ensinou a ouvir o Brasil. Nos trouxe de volta um país profundo, refugiado em nossas memórias de infância. Toda a sua obra como artista está impregnada de referências que são parte essencial do nosso modo de ser e de sentir. Sua música é a música da voz, do corpo e dos inúmeros instrumentos que dominou com
tanta perfeição”
Juca Ferreira, ministro da Cultura

“Não vou estranhar se os trovões, os ventos e as chuvas passarem a soar bem melhor, em combinações inusitadas de ritmos, depois da chegada do mestre Naná Vasconcelos ao céu”
Gabriel, o Pensador, rapper

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