Sem depender de herança musical, Alice Caymmi transforma MPB em pop experimental

Com postura de diva e vozeirão inconfundível, cantora e compositora lança primeiro DVD da carreira no próximo mês

por Bossuet Alvim 19/10/2015 08:54
DARYAN DORNELLES/Divulgação
''De maneira geral, para tudo, há em mim uma inquietude, especialmente mental. Tenho uma necessidade de criar fora do comum'', diz artista com dois álbuns lançados aos 25 anos (foto: DARYAN DORNELLES/Divulgação )
O único assunto que parece entediar a enérgica Alice Caymmi é a pompa que circunda o nome da família, a quem ela chama de clã. Afinal, a carioca de 25 anos é muito mais do que neta de Dorival ou sobrinha de Nana. Apesar de orgulhosa da herança artística, a filha de Danilo é tão repleta de referências que soa injusto restringi-la ao sobrenome ou ao rótulo da MPB. “Tudo me influencia, não só a música. É muito abrangente. Não sou nenhum Einstein, nenhuma Marina Abramovic, mas tenho agora um olhar treinado”, diz a artista sobre suas inspirações. “Vou pegando fontes diferentes nas artes e nos pensadores. Às vezes, se acho que estou há muito tempo sem ler algo do cânone literário, busco um clássico e mergulho.”


Formada em teatro, a cantora e compositora já gravou dois discos e lança, até dezembro, seu primeiro DVD. Baseado no trabalho mais recente, Rainha dos raios (2014), o show inclui covers de Abba e Donna Summer. “Sempre acompanhei o pop”, resume Alice. Mas, ainda que flertem com o pop, as faixas do segundo álbum estão longe do previsível que se ouve nas rádios.

Björk, de quem Alice regravou Unravel no disco de estreia, em 2012, é uma das influências mais perceptíveis e de quem ela se aproxima ao fazer da experimentação sua assinatura. “A relação que tive com a obra da Björk muito cedo na vida, aos 13 anos, foi muito forte para mim. Por ela, eu percebi a música para além do clã, além da minha origem”, define.



Reconhecimento
A regravação da faixa de 1997 conquistou aplausos da própria autora, que elogiou a admiradora brasileira via Facebook. “Não dá para ficar muito melhor que esse cover da Alice Caymmi”, escreveu Björk em janeiro do ano passado. Naquele momento, Alice reagiu como qualquer fã: “Fiquei chocada. Estou até agora sem acreditar”.

Outras pegadas que levam ao caminho de Björk se espalham pela obra de Caymmi, como os videoclipes etéreos, quase surrealistas, de Sargaço mar (2012) e Antes de tudo (2015). A exemplo da islandesa, cuja expressividade artística a elevou a musa do estilista Alexander McQueen, a carioca confia no mundo da moda para embalar sua sonoridade contemporânea, por vezes dançante. O registro ao vivo que em breve chega às lojas tem direção de Paulo Borges, criador da São Paulo Fashion Week.

Visualmente, Alice faz questão de identidade própria e evoca com postura de palco uma presença imponente comparável às divas pop norte-americanas. “Primeiro mudei meu cabelo, depois fiz um piercing, mais tarde minhas roupas e minha maneira de agir. Nessa época já tinha até começado o processo do disco, mas não sabia o que era”, diz ela sobre as mudanças recentes.

Ao vivo, a cantora flui com teatralidade suficiente para transformar Rainha dos raios em uma espécie de personagem. “A construção para a ficção acontece a partir dos materiais que você já tem. Por vezes preciso simular situações que não vivi, em várias das músicas que canto. Na verdade é uma exacerbação do que já existe em mim”, reflete.
 


Uma artista muito exigente
Rainha dos raios é sucessor do álbum que leva o nome da cantora, com sonoridade orgânica e quase completamente autoral. Na estreia, ela contrastava o timbre forte com uma aparência mais contida. “Nunca fui tímida, no sentido estrito da palavra. Estava em um processo de me autorizar a fazer as coisas”, recorda.
 
 
 
Sobre o nascimento da persona que hoje domina os palcos, enfatiza que “o rompimento da membrana não foi Rainha dos raios, foi o primeiro disco”. E considera melhor assim: “Ainda bem que não saiu o Rainha dos raios de primeira, eu não estaria preparada”.

Em Rainha dos raios, a intérprete debruça sobre criações de outros artistas, embaladas nos beats eletrônicos do produtor Diogo Strausz. Desta vez Alice assina apenas duas das oito faixas, Antes de tudo e a parceria com Michael Sullivan, Meu recado. “Não gosto de escrever o que quero dizer, gosto de usar as palavras de outras pessoas. Talvez em breve eu consiga escrever de uma forma que goste de cantar, porque sou muito exigente”, justifica. “Gosto de cantar situações que nunca vi acontecer. É uma forma de viver outras coisas.”



Caetano
Entre os autores visitados em Rainha dos raios, Caetano Veloso é mais constante e também quem rende as versões mais inusitadas. “Quando se escolhe repertório, calha de 50% ser dele. Mesmo que eu não fosse fã, cairia nele. Caetano é inevitável”, ela observa. A seleção foge do lugar-comum, partindo de Homem, do disco (2005), que ganha sabor especial em interpretação feminina. Clássico na voz de Maria Bethânia, Iansã (1972), de onde vem a personagem-título do disco, forma com Jasper (1989) o encerramento triunfal do trabalho.

Três canções de épocas distintas, sobre temas completamente diversos, transformam-se em trilogia nas interpretações da artista. “Nunca vi outro compositor com obra tão abrangente, tocando em tantos assuntos ao mesmo tempo, em contextos tão diferentes e capaz de se transformar”, elogia Alice.

Capaz de transformar as composições que regrava em obras quase inteiramente suas, Alice fez do funk carioca Princesa seu ícone particular de defesa do gênero. "Sou apaixonada pelo funk e exijo que ele seja respeitado. Acho engraçado eu vir de um lugar que as pessoas tratam como família real da MPB e poder fazer as pessoas refletirem sobre esse preconceito com outro estilo", ela diz.

Uma das mais populares em Rainha dos raios, a canção entrou no álbum para provocar. "Sabe aquela bossa que você achou linda no disco da Alice Caymmi? Na verdade ela é do MC Marcinho, então abaixa essa bola", ironiza a cantora. A faixa é a segunda mais ouvida no canal oficial de Alice no Youtube, atrás apenas de Como vês (Bruno di Lullo e Domenico Lancellotti), tema da minissérie Felizes para sempre? (Globo).


 
DARYAN DORNELLES/Divulgação
Alice assume que chamar todos os fãs com um só nome -- 'migas' -- é ''algo que peguei de outras divas'' (foto: DARYAN DORNELLES/Divulgação )
Na rede
Lançado em setembro do ano passado, o álbum Rainha dos raios chegou primeiro à internet e segue até hoje disponível gratuitamente em diversas plataformas. No virtual, Alice faz questão de manter contato direto com os fãs, especialmente via Facebook. “As mensagens carinhosas fazem um bem danado”, admite. “Eu e a galera que trabalha comigo ficamos atentos aos comentários para orientar nossas decisões, como quais lugares estão com mais pedidos de shows. Daí podemos buscar teatros nessas cidades”, explica.
 
Aliás, as postagens bem-humoradas de Alice servem para afastar a imagem do dramalhão que algumas de suas canções podem evocar. “Gosto de colocar coisas ridículas porque sou assim, engraçada. Aí meus fãs podem conhecer várias faces minhas e entender que todas são eu”, diz.

Os memes e textos cômicos publicados por Caymmi falam particularmente com os homens gays. "Meu público gay é uma extensão da menina que tinha só amigos gays no colégio, na faculdade e na vida. Como eu cresci cercada por gays, dividimos referências e é natural que saia de mim algo que os toque", orgulha-se. "Foram meus amigos gays que me mostraram muito da minha cultura geral, que me pegaram e disseram 'olha só, princesinha da MPB, tem muito mais que isso por aí'".

Ela assume: "Chamar a todos com um nome só é algo que peguei de outras divas". Assim como Lady Gaga tem os little monsters e Beyoncé sua beyhive, os fãs de Alice Caymmi são tratados por ela como “migas”. "É justamente a maneira como me sinto em relação a eles, como amigos", ela garante. Volta e meia um comentário de Facebook ou Instagram me atravessa e às vezes aparece um perguntando 'cadê o disco de inéditas?'. E eu, sentada em casa vendo novela, começo a pensar junto com ele sobre quando vem esse disco".

Com o lançamento do DVD se aproximando, Alice não descarta a possibilidade de um novo processo criativo e admite que o ritmo das novidades na carreira tem a ver com sua própria essência. "As coisas acontecem muito rápido para mim desde sempre. Eu antecipo demais as coisas e parece que o mundo antecipa tudo para mim também", ela conta. "Essa minha ansiedade ecoa e traz com ela uma responsabilidade repentina. Tive responsabilidades como cantora na adolescência que eu nunca pedi", ela diz, relembrando experiências precoces como cantora no encerramento dos Jogos Pan-Americanos de 2007, aos 17 anos, no trio de Margareth Menezes aos 12 e no Canecão, em show da tia Nana Caymmi, aos 13. E ri da própria velocidade: "Quem é Alice Caymmi? Ninguém sabia até pouco tempo atrás. Mas com certeza já me viu por aí."

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