Pipoqueiro do cine Belas Artes investe R$ 5,2 mil para gravar CD

Trabalhador dá vazão à veia artística e dedica música a musa de 'família rica' que compra ingressos de vestido rendado

por Carolina Braga 13/04/2015 08:00

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JAIR AMARAL/EM/D.A.PRESS
O pipoqueiro Thiago de Matos exibe a capa de seu álbum, 'Canções dos campos de lá', cujas cinco faixas têm letras assinadas por ele (foto: JAIR AMARAL/EM/D.A.PRESS)
A moça de vestido rendado entra na fila do cinema. Compra o ingresso para a próxima sessão e garante a pipoca. A cena é corriqueira na calçada da Rua Gonçalves Dias, porta do Cine Belas Artes. Uma das tantas que Thiago de Matos, o pipoqueiro, vê por ali, desde quando era criança e acompanhava a mãe, Dona Lélia, na venda diária.

Mas, aos 27 anos, o tímido rapaz de bigodinho à la malandro carioca, que todos os dias sai do Bairro Juliana para estar às 16h a postos no carrinho da família, olha para a rotina de uma maneira diferente. Deixa-se afetar pelo cotidiano e faz disso música.

“Sou compositor e letrista”, apresenta-se, enquanto o milho estoura e o cliente escolhe entre a doce e a salgada. “Sou de escrever o que vivo.” Sendo assim, a moça de vestido rendado foi inspiração para 'Morena Luiza', uma das cinco faixas do primeiro EP (álbum de divulgação) que passou a dividir o espaço com amendoins e cocos queimados no negócio da família.


“Ahhh, moreninha, espero que você escute os versos que fiz logo ao te ver (…) mas você é de uma família rica/ Ao ver como é a minha vida, vai me ignorar/ Porque eu sou só um simples pipoqueiro, amigo dos pombos-correios, sem cartas de amor para entregar”, diz a canção, interpretada por Milu Cox. Thiago confidencia que a musa é, digamos, colega de ofício: a cantautora Luíza Brina, integrante da banda Graveola e o Lixo Polifônico.


O álbum chegou ao carrinho de pipoca há pouco mais de um mês. Quando os clientes se aproximam, Thiago deixa a timidez de lado e faz propaganda de seus dotes artísticos. Nessa toada, já vendeu cerca de 200 exemplares, a R$ 10 reais cada um. Fez o “show” de estreia só para os mais chegados, no boteco de um amigo, no Edifício Maletta. No final deste mês, vai se apresentar na Faculdade de Educação da UFMG. Será a estreia oficial.

GLADYSTON RODRIGUES/EM/D.A PRESS
A cantora e violonista Luiza Brina, do Graveola, musa inspiradora da canção Morena Luiza, de Thiago de Matos (foto: GLADYSTON RODRIGUES/EM/D.A PRESS)
PIPOCA Música é algo de certa forma recente na vida de Thiago. Como foi criado nas imediações do cinema – a mãe é responsável pelo carrinho de pipoca desde que o Belas Artes foi inaugurado –, ali formou a própria cultura. A seu modo, claro.
“Quando aqui ficava sem movimento, eu corria ali na livraria”, conta. Leu Jorge Amado, Rainer Maria Rilke e outros. Encantou-se com filmes como o francês O escafandro e a borboleta (2007) e não deixou passar batido nenhum que tivesse a música como protagonista. Foi espectador fiel de documentários sobre Paulinho da Viola e Cartola. Recentemente, surpreendeu-se com Whiplash: em busca da perfeição, sobre a formação de um baterista.


Embora não tenha um mentor tão rígido quanto o Fletcher que deu a J.K. Simmons o Oscar de melhor ator em papel coajuvante, Thiago compartilha da determinação do personagem de Miles Teller. Mesmo sem larga experiência ou estudo na área, não deu ouvidos a quem ousou chamá-lo de louco. “Falaram que eu era doido de mandar fazer mil CDs sem conhecer ninguém”, conta.


A decisão é coerente com as ideias de um rapaz à moda antiga. “Acho que, na vida, você tem que deixar alguma coisa. Sou mais preocupado com o registro do que com shows. Quanto mais eu puder produzir, vou fazer”, diz. Por pensar assim, juntou grana durante um ano, com a venda das pipocas, e investiu R$ 5,2 mil na gravação e produção do primeiro EP, com cinco músicas.


Chamou amigos de amigos para encarar a empreitada com ele e, assim, conseguiu juntar muita gente para a envergadura da produção. Tem piano, baixo, bateria, saxofone, violão, flauta, acordeom, violoncelo, pandeiro e trompa. Mila Cox, amiga de longa data, é a intérprete de duas faixas. Nas outras, o próprio Thiago solta o gogó. “É uma galera acostumada a tocar mais jazz, e as influências foram para a música. Acho que ficou legal, mas tinha pensado em fazer algo mais para o choro”, afirma.


Todas as letras são dele. As primeiras músicas que Thiago compôs nem foram dedilhadas no violão. Tinha as melodias na cabeça, gravava no celular mesmo, cantarolando. Até caixa de fósforo servia para registrar o compasso das canções. “Só depois que pedi a um amigo para dar uma lapidada e executar para mim.”
Thiago de Matos terminou o segundo grau e não deu continuidade aos estudos. Seu plano é cursar composição. Por enquanto, dedica as segundas-feiras para aulas de violão, já que aprendeu a dedilhar de maneira autodidata. Em estúdio de música, nunca havia pensado em entrar. O negócio era poesia.


“Escrevia versos e aí pensei: já que tenho a poesia, é só fazer a música”, diz. Um dos incentivadores, além da família, foi o segurança do cinema, Antônio Roberto. Durante a “mudança de área” nos intervalos da pipoca, aprendia por conta flauta e violão.

Thiago sabe dos limites desse primeiro trabalho. Entende que é um início de carreira, ainda tem muito a aprender, mas não viu motivos para não ir adiante. “Quero viver de música, de composições. A minha ideia é estudar uns três anos, virar violonista mesmo e ir para o Rio de Janeiro ou para São Paulo. Se não der certo, eu volto para a pipoca.”

Músico em formação tem futuro promissor
Kiko ferreira

Jovem na casa dos vinte anos de idade, Thiago de Matos surpreende por ter referências pouco comuns à sua idade. Tímido como Paulinho da Viola e Guinga, que certamente ouviu e fazem parte de suas audições, fez como o autor do Bolero de Satã, que estreou em disco convidando amigos para cantar. Buscou a voz doce da vizinha Milu Cox para personificar a música-título do primeiro EP, 'Canções dos campos de lá', e 'Morena Luiza'.

Músico e autor em formação, ele conta com um grupo que dá ao disco uma sonoridade entre a bossa de sutis toques jazzísticos e o espírito de regional de samba e choro, formado por Felipe Patricio (piano), Fred Chamone (baixo), Daniel Tamietti (baixo e violoncelo), Gabriel Lisboa (bateria), Orlando Soares (sax e flauta), Rodolfo Buarque (violão e percussão), Isabele Menagasse (trompa), Nicanor de Mattos (pandeiro), Andre Antunes (acordeom) e Marcio Granato (violão).


Trazendo, romanticamente, canções e flores na faixa-título, em que foge do lugar-comum ao citar o cuidado que precisa ter na viagem de motocicleta para não estragar as flores na manhã, Thiago entra logo na moda recente dos blocos de carnaval numa 'Marcha canção' que defende o samba da capital mineira.


A primeira musa oficial aparece no samba autobiográfico Morena Luiza, em que o eterno conflito de classes (entre o pipoqueiro modesto e o objeto da paixão, de classe média) dá função de cupido à música, para resolver diferenças. Na verdade, o clássico 'Ave maria do morro'.


Religiosidade e defesa da cultura popular surgem no bem-resolvido baião 'De viola e pandeiro', com participação de Horácio Fialho. E, para terminar, o sofisticado arranjo da delicada 'Minha esperança' abre espaço para voos mais ousados num trabalho futuro.

 

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