Madonna reflete próprio passado com o som contemporâneo de 'Rebel heart'

Em novo álbum, rainha do pop contou com Kanye West, Avicii e Diplo como guias; disco é o mais rico e inspirado da cantora em pelo menos uma década

por Bossuet Alvim 09/03/2015 09:31

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Mert Alas & Marcus Piggot/Interscope Records/Divulgação
Com a colaboração de produtores que ditam tendências atualmente, Madonna põe em cheque as críticas decorrentes de seus 56 anos: ''Não sigo regras. Nunca o fiz e não vou começar agora'' (foto: Mert Alas & Marcus Piggot/Interscope Records/Divulgação)
A queda que interrompeu a performance de Madonna no encerramento dos Brit Awards, no mês passado, representa o caos ordenado em que a rainha do pop escolheu se envolver para a criação de 'Rebel heart', álbum que chega ao Brasil nesta semana. Derrubada com o puxão de uma capa amarrada ao pescoço, a cantora levantou-se e seguiu a interpretação de 'Living for love', carro-chefe do disco, sem demonstrar abalo após o acidente, que lhe causou uma entorse cervical.


“Se eu não estivesse em boa forma, não teria sobrevivido àquela queda. Mas sou forte”, disse ao The New York Times. A agilidade com que retomou seu número é a mesma que demonstrou ao rebater o vazamento de 13 gravações de 'Rebel heart' ainda em estágio inicial, no fim de 2014. Ela antecipou o lançamento de seis faixas já finalizadas, entrando no jogo ditado pela velocidade da internet.

 

Clipe de 'Living for love' abriu divulgação do novo disco de Madonna:

 

A degustação já dava ideia de um trabalho bem mais interessante que os dois anteriores ('Hard candy' e 'MDNA'). O álbum completo, que pode chegar a 25 faixas em três edições diferentes, revela uma artista ainda mais ágil em captar tendências, munida de produtores que conduziram sua música a caminhos mais frescos do que os explorados por ela na última década.

Kanye West, Avicii e Diplo são os principais guias musicais de 'Rebel heart' — daí sua sonoridade desordenada, por vezes confusa. Mas é a força da qual Madonna se gaba que transparece como combustível e condutor do novo trabalho. Nas canções, vantagens físicas dão lugar à marca forte do status conquistado ao longo dos mais de 30 anos de carreira.

Ainda que sua voz limitada não tenha ganhado muito desde o treinamento que a aperfeiçoou para 'Evita' (1996), é na arriscada combinação de colaboradores tão divergentes que a artista prova sua coragem. Se não fosse um álbum embalado em sua personalidade, a combinação não soaria uniforme.

 

O experimentalismo que consagrou o time de parceiros também confere fôlego aos momentos mais espontâneos do CD, como quando 'Unapologetic bitch' funde reggae com EDM. Sob esse aspecto, Rebel heart realça a luta de Madonna contra quem menospreza a relevância de sua produção atual, especialmente por conta de seus 56 anos.

“Mulheres, em geral, quando chegam a uma certa idade, aceitam que não devem se comportar de uma certa maneira. Mas não sigo regras. Nunca o fiz e não vou começar agora”, disse à Rolling Stone. Autoafirmativa, 'Bitch I’m Madonna' é tão bem-humorada quanto qualquer outro trap assinado por Diplo e cresce com a inserção de Nicki Minaj, ao contrário das aparições no disco anterior.

Mert Alas & Marcus Piggot/Interscope Records/Divulgação
Do trap ao EDM passando por house, coral gospel e baladas fortes: Madonna oferece seu melhor em álbum eclético, que não chega a perder identidade graças à personalidade da popstar (foto: Mert Alas & Marcus Piggot/Interscope Records/Divulgação)
Já a colaboração dispensável de Chance the Rapper em 'Iconic' não diminui a clássica mensagem de que o estrelato está ao alcance de todos, tampouco reduz o inusitado da introdução de Mike Tyson para a faixa. 'Illuminati' traduz o humor afiado da cantora em uma crítica às teorias da conspiração, mas também simboliza sua primeira aproximação bem-sucedida com o hip-hop, graças ao trabalho de Kanye. 'Hold tight', 'Inside out' e a excêntrica 'Body shop', de inspirações orientais, respondem pelo vanguardismo das produções, enquanto 'S.E.X.' e 'Best night' mantêm viva a persona sensual de 'Erotica' (1992).

 

ASSINATURA

'Devil pray' é exemplo de canção que só parece funcionar sob a assinatura de Madonna, com sua mistura de referências religiosas e menções ao uso de drogas. A produção de Avicii é dobrada à vontade da intérprete, revivendo a mescla de violões e batidas eletrônicas que surpreendeu fãs e críticos à época de 'Music' (2000). A autorreferência é um dos elementos básicos de 'Rebel heart', mas surge de modo mais fluido que nos discos anteriores. Quando a cantora acena para o passado e cita alguns de seus hits em 'Veni vedi vici', tem o cuidado de unir as recordações com versos confessionais do rapper Nas, para se redimir da autocelebração.

 

Ouça 'Devil pray', uma das faixas mais marcantes de 'Rebel heart':

 

Em 'Holy water', chega a usar um trecho de 'Vogue', mas o sucesso de 1990 serve apenas como elemento de afirmação em sua ode ao sexo oral. Outros reflexos de trabalhos antigos são mais sutis, com destaque para a constante união profana de erotismo e religião.

Mert Alas & Marcus Piggot/Interscope Records/Divulgação
'Rebel heart' chega ao Brasil nas edições standard, deluxe e super-deluxe neste 10 de março (foto: Mert Alas & Marcus Piggot/Interscope Records/Divulgação)
'Living for love' une os requisitos para uma canção ideal na discografia de Madonna: tem batidas house, menção a Deus, trata de superação pós-decepção amorosa e, para deleite dos fãs de 'Like a prayer', traz de volta um coral gospel. Ao assumir elementos que a consagraram entre outras gerações, a popstar soa mais contemporânea do que nos flertes com as tendências datadas de seus dois álbuns anteriores.

As letras não eram tão intimistas desde 'American life' (2003), o que garante baladas honestas após longo período de produções superficiais. Entre estas, 'Wash all over me' brilha pela percussão exótica e por versos maduros. 'Messiah' e 'Joan of Arc' jogam com a alternância de dramas pessoais e referências religiosas. 'HeartBreakCity' e o próximo single, 'Ghosttown', são ainda mais cruas e se abrem com juras de amor em meio a lamentos. Mas fica com 'Queen' o mérito de um discurso franco de Madonna sobre a própria carreira, que levanta a questão: “Quem vai substituí-la?”.


DIVA ATEMPORAL
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FUTURO do feminismo

Em 1990, as curvas sem remorso de Madonna e o jogo erótico proposto por ela no clipe de 'Justify my love' levaram a escritora Camille Paglia a denominar a popstar como "o futuro do feminismo". Em artigo publicado pelo New York Times dias após a MTV norte-americana banir o vídeo por conteúdo explícito, Paglia elogiava a cantora por expor "o puritanismo e a ideologia sufocante do feminismo americano, que segue estacionado em um choramingo adolescente". À época, as imagens que acompanhavam os vocais sussurrados de Madonna — em sua primeira incursão pelo trip-hop, com produção assinada por Lenny Kravitz — mostravam-na seminua, simulando sexo com um homem e uma mulher que trocavam de lugar a cada tomada.

 

Sob direção do fotógrafo francês Jean-Baptiste Mondino, referências visuais a voyeurismo, homossexualidade e sadomasoquismo transformaram o clipe em principal alvo do público conservador norte-americano. Parte da crítica especializada chegou a prever que Madonna havia alcançado o limite, antevendo um declínio na carreira da estrela a partir daquele ápice de provocação. Lançado em VHS para rebater a censura das emissoras de TV, 'Justify my love' ultrapassou o primeiro milhão de cópias no mesmo ano e tornou-se o single em vídeo mais vendido de todos os tempos.

 

'Justify my love' (1990), dirigido por Jean Baptiste-Mondino e censurado pela MTV:

 

PASSADO em releitura

A MTV contava apenas três anos quando decidiu lançar a própria premiação musical, menos formal que o Grammy e com ritmo pautado pela febre dos videoclipes que tinham o poder de erguer ou derrubar carreiras na cena pop dos anos 1980. Para o primeiro Video Music Awards (VMA), a emissora norte-americana encontrou dificuldades em escalar celebridades de alto escalão — os ZZ Top estão entre artistas que supostamente recusaram o convite mas cederam no último minuto — e a solução foi abrir espaço para uma cantora novata no palco da cerimônia. Na transição entre primeiro e segundo álbuns, Madonna ainda era relativamente desconhecida no canal e teve que contentar-se com orçamento limitado para apresentar 'Like a virgin', canção que só veria lançamento oficial dois meses depois da festa.

 

Vestida de noiva, emergiu de um bolo de casamento para o que seria uma performance morna, não fosse um sapato perdido e o senso de oportunidade da futura popstar que, ainda no início da música, precisou abaixar-se para resgatar o calçado que teimou em sair do pé. "Então eu pensei, 'vou fingir que eu tinha planejado isso' e mergulhei no chão, rolando", revelou Madonna à revista Billboard décadas mais tarde. Uma vez caída, acabou exposta: "enquanto eu tentava alcançar o sapato, meu vestido subiu e a calcinha apareceu". O gesto banal tornou-se icônico e alavancou a divulgação de 'Like a virgin', tanto o single quanto o disco, dando início ao interesse mundial pela artista de voz desimportante, mas com atitude aparentemente sem limites.

 

Relembre performance antológica de 'Like a virgin' no VMA (1984):

 

Quase vinte anos mais tarde, foi com outra ação comum que Madonna conseguiu provocar cinco continentes sobre o mesmo palco do VMA. Na edição do prêmio em 2003, ela uniu Britney Spears e Christina Aguilera em releitura simbólica da performance que marcou a estreia da festa. As noivas eram jovens cantoras, à época apontadas como representantes de algum legado criado por Madonna, enquanto a própria assumia o papel de futuro marido para ambas, em uma forma de subversão da patriarcal indústria de celebridades. O resto é história do pop: o trecho de 'Like a virgin' em dueto, a entrada de Madonna com marcha nupcial e os beijos em Spears e Aguilera. Ocupando manchetes por semanas, resgatado anualmente em reedições do VMA, o simples gesto levou a estrela de fama global ao encontro da cantora quase-famosa, ainda incerta, que perdeu um sapato no palco da MTV. Outra vez seu instinto, acrescido da experiência de duas décadas sob holofotes, roubou a cena quando se esperava menos.

 

Confira releitura com Britney Spears, Christina Aguilera e Missy Elliott (2003):

 

PRESENTE no ativismo

"Até você pode fazer uma performance do Pussy Riot, porque qualquer um pode ser um membro". Carregada de contestação, a autoafirmação do trio russo durante coletiva de imprensa no início do ano passado vai de encontro à persona da popstar que dominou o gênero durante décadas com uma assinatura inconfundível em cada aparição pública, mas trata exatamente do que a diva tenta transmitir sobre os palcos. Quando discursou em apoio às Pussy Riot durante um show na cidade francesa de Nice, em 2012, Madonna apenas reiterou o caráter revolucionário de suas manifestações artísticas que, desde os anos 1980, apregoavam ao mundo o valor da iniciativa de mulheres para uma mudança na estrutura social. Se as tecnologias e avanços políticos dos últimos 30 anos contribuíram para a repercussão de suas canções, também serviram para aumentar o alcance da militância que brota de iniciativas individuais — uma certeza que ela reconhece e acolhe ao incluir as mulheres fortes de nossos tempos em seu espetáculo de luzes e efeitos especiais.

Youtube/Reprodução
Apoio declarado às Pussy Riot e à paquistanesa Malala reforçam posicionamento político da diva pop (foto: Youtube/Reprodução)
Em sua turnê mais recente, que passou pelo Brasil em dezembro de 2012, a estrela norte-americana abriu espaço para as artistas russas condenadas à prisão por Vladimir Putin, mas não limitou-se a isso. Um mês depois, era a mensagem da jovem Malala Yousafzai que ganhava voz sobre o palco da série de shows mais lucrativa daquele ano. "A menina de 14 anos que levou um tiro em um ônibus escolar por escrever um blog sobre a importância da educação", resumiu Madonna ao apresentar o nome da adolescente estampado em suas costas. "Apoiem a educação! Apoiem as pessoas que dão apoio às mulheres", convocou a cantora, dirigindo-se aos milhares de fãs que a assistiam em Los Angeles e aos outros milhões a quem sua mensagem alcançaria, inevitavelmente, graças à internet. Ambos os discursos aumentaram a visibilidade das militantes entre o público que consome música pop e para além dele. Em fevereiro de 2014, foi Madonna quem introduziu as Pussy Riot no palco do concerto dedicado a elas pela Anistia Internacional, declarando-se uma lutadora a favor da liberdade "desde quando entendi que tinha voz e podia cantar sobre canções que iam além de ser uma garota material ou me sentir como uma virgem". Em outubro do mesmo ano, Malala tornou-se a mais jovem ganhadora do Prêmio Nobel da Paz.

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