Conheça os multiartistas que dispensam os trabalhos em equipe

Obstinados, perfeccionistas ou impacientes, os multiartistas oferecem explicações para dispensar o trabalho em equipe e cuidar sozinhos de todo o processo de criação

por Walter Sebastião 28/02/2015 07:00

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Kalluh Araújo, ator e diretor de Samba amor e malandragem (foto: Divulgação)
Na música, na pintura, no teatro, em várias manifestações artísticas, há criadores que não se contentam em fazer apenas uma parte da obra. Metódicos, desenvolvem todas (ou quase todas) as etapas do processo de criação. Seja para ter mais controle da expressão autoral ou para se aperfeiçoar como artistas, os que adotam esse método garantem que ele exige mais tempo, mas é mais recompensador. “É um encanto ver algo tão etéreo como a palavra transformado em chumbo, ganhando consistência sólida e forte”, diz Ana Utsch, coordenadora do Museu Vivo Memória Gráfica, que realiza impressão manual em tipografia de grandes obras da literatura, num processo que incluiu até a fundição dos tipos.

 

“Quase tudo? Eu faço tudo”, diz o pintor Manfredo de Souzanetto. É ele quem monta as telas, cria as estruturas que suportam os tecidos, faz as bases e fabrica tintas a partir de pigmentos que recolhe.

Para artistas como Souzanetto, não basta assinar uma obra, é preciso deixar sua marca em todas as etapas do processo de criação. Embora executar quase tudo (ou tudo) num trabalho artístico signifique ter mais trabalho, o método permite a quem o adota ter um resultado mais próximo de sua imaginação, fortalecendo a dimensão autoral. Souzanetto tornou-se adepto dessa prática há mais de 30 anos. O hábito surgiu em um curso parisiense de belas-artes voltado para funcionamento de ateliê. Uma das disciplinas era o conhecimento mais aprofundado de materiais.

De volta ao Brasil, diante da carência e do alto preço da matéria-prima (“Era tudo importado”, relembra Manfredo), o mineiro iniciou suas pesquisas com terras colhidas em Minas Gerais. Interessado na cor delas – e “por ideologia”, pois estava às voltas com a discussão da representação de ícones do estado –, o pintor sentiu o desejo de experimentar o material local. O fato de usar telas fragmentadas e formatos não convencionais o obrigou a aprender marcenaria. Com isso, pôde montar os chassis como imaginava. Ao longo do tempo, o processo se desdobrou em peças que envolvem materiais como o cobre, exigindo ainda mais estudos e pesquisas.

“Construção é reflexão”, explica Manfredo de Souzanetto, revelando o prazer conferido pelo conhecimento profundo do ofício. O pintor alfineta quem vê com preconceito o artesanal no fazer artístico. “Isso é resquício daquele pensamento muito brasileiro que considera a atividade manual trabalho de escravo”, ironiza. Para ele, o pintor deve buscar mais informações sobre tintas, telas e molduras. “Aqui no Brasil, há muito desconhecimento sobre a importância desse saber”, afirma.

O processo de trabalho é profundo, adverte. “Como faço minhas telas e tintas, ao pintar não sou eu diante de um tecido branco posto na minha frente. Na verdade, sou eu diante da cadeia de ações que leva à criação.” Já houve quem tenha visto suas pinturas e ido atrás dele para saber onde e como conseguia cores tão diferentes daquelas usadas por outros artistas.´Colegas importantes recorreram a Manfredo quando precisaram conhecer melhor as técnicas de construção das telas ou pesquisar compatibilidades entre materiais e pigmentos.

 

ATOR HOLOGRÁFICO

O diretor mineiro Kalluh Araújo assina a peça Samba, amor e malandragem, que tem feito sucesso em BH. Ele próprio interpreta o narrador da história, além de cantar sambas clássicos – a base da trama. Além disso, Kalluh criou alguns arranjos musicais, cenário, figurino e iluminação. Também cuidou da preparação corporal dos atores. Entretanto, o espetáculo em que ele desempenhou mais funções foi uma versão de Branca de Neve. Além de todas as tarefas assumidas em Samba, amor..., ele compôs toda a trilha sonora. “É coisa de Deus ou de doido”, brinca, suspeitando que sua veia workaholic seja “loucura boa”.

Kalluh diz que é prazeroso desempenhar várias funções na criação de um espetáculo. “Tenho a visão completa do que quero. Posso fazer exatamente o que imagino. Gosto de transformar tudo em algo que carregue a minha visão. Isso faz com que a montagem tenha assinatura autoral mais firme”, explica. Dedicar-se a múltiplas funções é um processo que ele vem radicalizando a partir de 2000. No início, isso se devia a problemas sérios. Certa vez, subiu ao palco para explicar à plateia que a peça não seria apresentada porque o cenário não ficou pronto. “Jurei que, a partir dali, ninguém mais faria meus cenários”, diz. E adotou a mesma solução para apertos envolvendo figurinos e iluminação.

O diretor garante que não se trata de uma aposta na solidão criativa. “Teatro é compartilhar sonhos, ninguém faz sozinho. Preciso de um ator disposto a realizar minhas loucuras, ele é a minha matéria-prima.” Mas confessa, divertido: “Gostaria de um ator holográfico que eu pudesse comandar mais”. Essa observação, aliás, provoca um pequeno lamento. “Gostaria de conhecer mais de eletrônica, porque imagino coisas que são possíveis, mas não sei como realizá-las.”


PALAVRA EM CHUMBO


Há aproximadamente dois anos, o acervo editorial de Minas Gerais ganhou um pequeno e precioso livro: uma edição do capítulo 62 do romance Dom Quixote, de Cervantes (1547-1616), trazendo o episódio em que o personagem visita uma tipografia e se encanta ao ver suas próprias aventuras sendo impressas. A publicação, com edição de 500 exemplares, partiu do Museu Vivo Memória Gráfica, coordenado por Ana Utsch e Maria Dulce Barbosa. O museu funciona no Centro Cultural UFMG, no Centro de BH.

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A professora Ana Utsch, coordenadora do Museu Memória Viva (foto: Divulgação)
O livro foi impresso manualmente em tipografia. O delicado processo incluiu a fundição dos tipos, a composição e a diagramação do texto. Produziram-se artesanalmente os cadernos e a encadernação. Tal façanha, aliás, não é isolada. Já está no prelo o novo volume da coleção Sobretextos, com um capítulo do romance O corcunda de Notre Dame, de Victor Hugo. Ela foi realizada com todos os procedimentos da primeira publicação. A tradução do texto ficou a cargo de Ana Utsch, executada especialmente para o projeto.

“Queremos exaltar não o produto livro, mas o processo de produção, um patrimônio da humanidade que está ameaçado. É essa a missão do Museu Memória Gráfica”, explica Ana. “É um encanto ver algo tão etéreo como a palavra transformado em chumbo, ganhando consistência sólida e forte. Isso se dá não apenas com a gente, que faz o trabalho, mas também com quem nos visita”, diz a especialista em cultura gráfica. A professora já sonha com o terceiro volume da coleção: o verbete encadernação da enciclopédia organizada por Diderot (1713-1784).

FIDELIDADE À MÚSICA

“Em arte, acho pequeno você se dedicar a uma coisa só”, afirma Marcus Viana, compositor, letrista, arranjador, produtor e proprietário do Estúdio Sons e Sonhos. Violinista, ele compõe ao teclado. Dizendo-se “bicão de estúdio”, o mineiro toca uma penca de instrumentos: flauta, violoncelo, viola e bandolim, entre outros. Marcus cria toda a base de seus discos solo, além de dirigir a mixagem. Gosta de agregar convidados a esses trabalhos. Mas já fez discos cuidando de tudo e com a participação de apenas uma cantora.

Viana já lançou duas dezenas de álbuns dedicados à estética new age e espiritual – o mais recente, Om Mane Padme Hum, reúne mantras. O hábito de cuidar de tudo não é egoísmo, garante. Ele pondera, inclusive, que se trata de uma prática arriscada, pois outras pessoas podem desempenhar melhor certas atividades. “Só quero ser fiel à minha música”, explica.

A opção por gravar em seus álbuns apenas composições próprias tem explicação. “Mudo demais a música dos outros”, confessa Marcus, com bom humor. A recíproca também é verdadeira. “Quando passo uma música minha para os outros, ela muda e tenho dificuldade de aceitar que mudou.” A prática de fazer tudo – ou quase tudo – tem outro motivo. Marcus diz compor “de cabeça”, deixando fluir a energia criativa. “A música passa por mim, gravo no momento da criação. Toco eu mesmo os instrumentos, porque quero ver o trabalho pronto. Não tenho paciência para esperar pelos outros. Resumindo: não tenho como ficar delegando funções”, conclui.

 

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