Grupos paulistas, O Terno aposta no rock e a Filarmônica de Pasárgada nos gêneros populares

Ambos brincam com letras e referências, sempre com muita ironia

por Mariana Peixoto 07/09/2014 10:00

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Irmãs Fridman/Willy Biondani/Divulgação
Conhecido dos mineiros, O Terno fez três shows em Belo Horizonte graças a seu álbum de estreia, '66' (foto: Irmãs Fridman/Willy Biondani/Divulgação)
‘‘‘Filhos da vanguarda’/ Pra poder vender/ Faz canção bonita/ Prensa um LP”. Pura ironia, os versos iniciais da canção 'Vanguarda?' ganham peso maior por causa de sua autoria. A canção é de Martim Bernardes, filho de Maurício Pereira, da finada (e saudosa) Os Mulheres Negras, duo com André Abujamra que, no pouco tempo em que durou (entre meados dos anos 1980 e o início dos 1990), ficou marcado por inventividade, irreverência e uma sonoridade que reunia referências da bossa nova, funk e punk à lambada. Não demorou para que Os Mulheres Negras fossem colocados dentro da vanguarda paulista. Seriam como integrantes tardios, já que o movimento, efetivamente, não ultrapassou a segunda metade da década de 1980.

Com a canção 'Vanguarda?', Martim, ou melhor, Tim Bernardes, vocalista e guitarrista do power trio O Terno, tenta quebrar com qualquer vínculo. Seja como for, o segundo álbum da banda paulistana, autointitulado, coincidentemente vem a público ao lado de outro trabalho, também de uma trupe paulistana, que tem características que marcaram a tal vanguarda. Por ora, os músicos preferem descartar a denominação. O Terno e Filarmônica de Pasárgada, octeto liderado por Marcelo Segreto que lança agora 'Rádio lixão', têm em comum não apenas a São Paulo natal. Passeiam com igual facilidade entre os chamados gêneros populares, brincam com as letras e com as próprias referências musicais e têm até um mesmo convidado especial: Tom Zé. Mas cada um na sua praia. O Terno é filho do rock; a Filarmônica, da música popular.

Esquizofrenia

O Terno é mais conhecido do público mineiro. Fez três shows em Belo Horizonte graças a seu álbum de estreia, '66' (2012). Metade do repertório de 10 canções era de autoria de Tim, a outra parte do próprio Maurício Pereira. O registro foi realizado em dois dias de gravação. O título do disco era uma clara referência à sonoridade sessentista e setentista que dominava o disco.

Com 'O Terno', o álbum, foi diferente. Houve tempo para maturar as ideias, ganhar experiência de palco e montar o repertório. Quando entraram em estúdio, Tim Bernardes, Guilherme d’Almeida (baixo) e Victor Chaves (bateria) tinham feito uma pré-produção e selecionado 15 faixas, todas autorais. Doze entraram no disco. As bases foram gravadas com os três tocando juntos numa mesma sala. A partir deste primeiro registro foram pensando nos detalhes que poderiam acrescentar.

A sonoridade é um tanto esquizofrênica, como bem define Guilherme d’Almeida. “Alternamos momentos nas próprias músicas, alguns pesados e outros mais calmos.” 'Brazil', com letra em inglês, é um bom exemplo disso, com o canto quase etéreo de Tim em contraponto à guitarra cheia de efeitos. Pela metade é uma canção cheia de barulhinhos, enquanto 'Bote ao contrário' tem um teclado de música brega (com interpretação idem). Já 'O cinza' abre com riff de guitarra de rock clássico, ganha solos esporrentos e diminui a rotação quase parando (isso numa mesma música) e 'Ai, ai, como eu me iludo' carrega na levada de blues.

Para a perfumaria, no bom sentido, foram convidados nomes como Marcelo Jeneci (órgão na fofa 'Quando estamos todos dormindo'), Gabriel Milliet e André Vac (sax, flautas e rabecas em 'Desaparecido', faixa que fecha o CD) e o supracitado Tom Zé, que gravou voz em 'Medo do medo', fazendo toda a diferença numa das mais experimentais canções do álbum. Quanto à questão da vanguarda, Guilherme d’Almeida diz que não tem nada a ver, mas vê identificação com a Filarmônica de Pasárgada. “(Ambos) fazemos um som muito paulista, abordamos temas urbanos e usamos um jeito mais irônico de falar de coisas banais.”

INÊS BONDUKI/DIVULGAÇÃO
Gêneros populares são tratados com respeito pela Filarmônica de Pasárgada no segundo álbum, 'Rádio lixão' (foto: INÊS BONDUKI/DIVULGAÇÃO)
Subversão

Se você quiser ouvir um apanhado de músicas que tratam gêneros populares com o devido respeito – e acrescentam algo de relevante ao que já cansamos de ouvir – este disco é 'Rádio lixão', segundo álbum do combo paulistano Filarmônica de Pasárgada. Em 15 canções, muitas das quais devem ser ouvidas em dupla, a banda formada pelo compositor Marcelo Segreto relê o axé, o funk carioca, o brega, a música romântica e a eletrônica de uma maneira que nunca se ouviu.

“Não existe variante linguística errada, existem variantes regionais, mas uma não está mais certa do que outra. A língua se transforma e com os gêneros musicais ocorre a mesma coisa. Não tem por que um axé ser pior do que uma música da bossa nova ou da MPB. O preconceito musical está aqui dentro e há ainda a indústria cultural que massifica tudo, o que é ruim. Mas tem muita gente boa no axé, no funk. O que existe é artista bom e artista ruim”, afirma Segreto ao explicar o conceito que norteou 'Rádio lixão', gravado no Coaxo do Sapo, estúdio de Guilherme Arantes em Camaçari, na Bahia. “O estúdio é maravilhoso, o Guilherme tem uma série de instrumentos raros e trata tudo com as próprias mãos, fazendo inclusive a fiação”, lembra Segreto.

Conhecedor de gêneros musicais eruditos e populares – ele é formado em composição pela USP – quando começou a pensar no segundo álbum da Filarmônica (que estreou em disco com 'O hábito da força' em 2012) trabalhou no conceito de finitude. Chegou à ideia de 'Rádio lixão', ou seja, que reunisse gêneros tidos como lixo cultural. “Para fazer um axé, ouvi muito Ivete para pegar a linguagem, o ritmo, o jeito como os percussionistas tocam. É incrível.” E assim como o funk, o eletrônico. Mas não somente. O grupo, integrado por ex-estudantes de música que se conheceram na universidade, foi além. Também releu a canção do rádio, a MPB tradicional, o tropicalismo. É uma reciclagem atual, colagem que também chega às letras.

Uma banana

'Amor e carnaval' é puro axé, com direito aos clichês do gênero (o verso “tira o pé do chão”), citação nominal a Ivete e trecho de apuração de escolas de samba carioca (o famoso “10, nota 10”). Porém, subvertendo tudo, a letra também cita Criolo ('Não existe amor em SP'), que não tem absolutamente nada a ver com o universo dos trios elétricos. Na sequência, 'Ela é dela' refere-se às cantoras do rádio, com direito até mesmo ao som de 78 rotações (e até um defeito, aquele momento em que a agulha “pula” da vitrola). 'Fiu fiu' é funk carioca à la Filarmônica de Pasárgada, com direito a palavrões, mas um letra mais crítica, que coloca uma mulher dando uma banana a Ricardões, popozudas e afins.

'Mil amigos' é dedicada a Caetano e Gal e cita a antológica Baby (de Caetano, gravada por Gal e tantos outros). O baiano retorna na eletrônica 'Tic tac', com citação a 'Alegria, alegria'. 'Muro muro Morumbi' foi feita para Chico Buarque e 'Estudando Tom Zé' nem precisa falar. Segreto pegou a trilogia 'Estudando...' ('o samba', de 1976; 'o pagode', de 2005; e 'a bossa', de 2008) e criou sua homenagem a Tom Zé, que brinca com a própria biografia do compositor. “Véio que guenta com mais de setenta inda quer cantar/ Pergunta pra ele o segredo imploro pra me contar/ Falou o véio/ Vá comendo abacaxique xique xique/ Você vai se animar” diz a letra. Tom Zé, não bastasse a homenagem, também participa do álbum, na canção 'Blá blá blá', com letra bem-humorada e interpretação idem.

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