Cantor e compositor Makely Ka lança segundo álbum solo, 'Cavalo motor'

O trabalho é fruto da experiência de percorrer as trilhas de João Guimarães Rosa

por Eduardo Tristão Girão 24/05/2014 06:00

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Marco Antonio Gonçalves Jr./Divulgação
(foto: Marco Antonio Gonçalves Jr./Divulgação )
Falar de 'Cavalo motor', segundo disco solo do cantor e compositor Makely Ka, não é tão simples. Ícone da geração Reciclo Geral, que sacudiu a cena autoral mineira no início dos anos 2000, o artista concebeu um projeto complexo para suceder seu álbum de estreia, 'Autófago', lançado em 2008. De bicicleta, percorreu solitário os caminhos do jagunço Riobaldo, personagem do livro 'Grande sertão: veredas', de Guimarães Rosa. Os quase 1,7 mil quilômetros pelo noroeste mineiro, com suas paisagens, personagens e fatos, lhe serviram de inspiração.

Nascido no Piauí, criado em Minas Gerais e formado em eletrônica indústrial, o artista construiu um sistema para transformar a energia mecânica de suas pedaladas em energia elétrica. Assim, partiu para a viagem, realizada entre julho e setembro de 2012, garantindo bateria suficiente para o farol da bicicleta, máquina fotográfica, computador, celular e um gravador. A partir dos registros que fez em áudio, vídeo e foto, criou projeto que engloba exposição fotográfica, documentário, livro, palestra, instalação, site interativo e, claro, as 15 faixas reunidas no disco.

“O motor da viagem foi o desejo de conhecer essa região e encontrar as referências da minha própria identidade. Quando vim do Nordeste, aos três anos de idade, trouxe um sertão difuso e disperso dentro de mim. Então, sempre estive aqui na condição de retirante, forasteiro que precisava voltar para se reconciliar com suas origens. Por outro lado, fui criado em Minas, minhas referências também estão aqui. A viagem foi, portanto, uma forma de resolver essa questão ontológica. Afinal, o sertão acaba ou começa em Minas”, conta Makely.

Algumas músicas já estavam prontas quando ele começou a pedalar, outras foram pensadas literalmente na estrada. “Como não levava instrumento, gravava as melodias ou anotava as letras e alguma ideia e, quando encontrava alguém com instrumento, um violeiro ou cantador emprestava o instrumento para eu desenvolver a forma”. Não foi nada assim tão fora do normal para Makely, que está habituado a compor no trânsito, em salas de embarque e dentro de ônibus. “O clique inicial costuma ser assim. Depois vem o processo de lapidação, de formatação da pedra bruta”, conta.

REFERÊNCIAS À exceção de uma música ('Baião para Gershwin', com Benji Kaplan), todas as músicas são assinadas apenas por ele. O habitual talento para a seleção das palavras surge já na faixa de abertura, 'Carrasco', referência a vegetação dos chapadões que guarda semelhanças com o cerrado e a caatinga. A viagem forneceu matéria-prima para letras como 'Itinerário Tatarana', mas vários bons momentos do álbum, como 'Fio desencapado' e 'Baião branco', não estão relacionados de forma tão óbvia a essa temática central.

“Meus trabalhos anteriores são muito distintos desse e foram feitos em momentos completamente diferentes da minha vida. Mas é possível reconhecer neles, principalmente dos discos 'Danaide' e 'Autófago', do ponto de vista estritamente musical, a minha pegada no violão, alguma recorrência das melodias modais e ostinatos, o uso frequente de harmonias com cordas soltas, as afinações alternativas e a incorporação e consequente subversão de ritmos tradicionais”, analisa o artista.

'Cavalo motor', continua, contém muitas referências literárias, cinematográficas e musicais, sendo os compositores Guinga e Elomar, do ponto de vista harmônico-melódico, algumas das principais. “Conceitualmente, eu tinha sempre em mente o movimento armorial e o manguebit, com todas as suas tensões e interpenetrações antropofágicas. Mas há citações explícitas ou veladas a Luiz Gonzaga, José Miguel Wisnik, Bob Dylan, Nick Drake, George Gershwin, Tom Zé, Caetano Veloso, Lia de Itamaracá”, afirma.

Do mundo das letras, Makely cita Vicente García-Huidobro, Walt Whitman, Konstantínos Kaváfis, Antônio Risério e Eduardo Viveiros de Castro. Referências de cinema também lhe vêm à mente ao falar do novo trabalho, entre elas, produções de Glauber Rocha ('Terra em transe', por exemplo), Cláudio Assis ('Amarelo manga'), Walter Salles ('Abril despedaçado') e Cao Guimarães ('A alma do osso'). A lista do artista ultrapassa tudo isso e é realmente longa.

AMBIENTAÇÃO Para costurar tudo com coerência, foram três anos de “maturação” do projeto, para o qual foram convocados os produtores de música eletrônica Lucas Miranda (oscilloID) e Patrícia Rocha (m ut), o grupo de música experimental O Grivo, Décio Ramos (Uakti), os músicos gregos Kostas Skoulas (lira cretense) e Dimitris Vasmaris (bouzouki), o multiinstrumentista Felipe José, o grupo Cataventoré (inspirado nas bandas de pífanos), o guitarrista Arto Lindsay e os cantores Sérgio Pererê, Suzana Salles e Maísa Moura. Avelar Jr., Maurício Ribeiro e Leandro César escreveram alguns arranjos.

“Apesar do tema e da ambientação, eu não pretendia fazer um disco regional. O sertão serviu como inspiração pelo seu caráter ambíguo, pela universalidade do deserto, do agreste tão grávido de sons e sentidos. Acho que isso se refletiu na música nos pequenos detalhes: um timbre inefável, um som quase inaudível, alguns elementos sutis que podem fazer o ouvinte sair da trilha demarcada e se perder na audição. São várias camadas de sons superpostas que vão se revelando a cada nova audição”, finaliza.

PEDALADAS

Makely Ka chegou a pedalar por 80 quilômetros sem encontrar uma única pessoa durante sua viagem pelo interior mineiro. Entre as curiosidades que observou nessa experiência, está a impossibilidade de seguir pelo trajeto planejado. “A cartografia do sertão é labiríntica e mistura o real com o imaginário, as informações sempre levavam a outros caminhos e eu sempre me perdia neles. Acho que isso reflete a forma daquelas pessoas lidarem com o espaço, que não passa pela racionalização positivista das cidades planejadas. Às vezes um sinal quase imperceptível é determinante, como um tronco marcado. Eu me perdi diversas vezes, mas sempre fui acolhido pelos moradores, que foram invariavelmente muito generosos”, relata.

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