Estrelas do pop não honram a tradição das divas de antigamente

Indústria fonográfica aposta em cantoras que se valem de truques eletrônicos, falsas rebeldias e canções melodramáticas

por Arthur G. Couto Duarte 09/03/2014 00:13

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Theo Wargo/Getty/AFP
Aino Jawo e Caroline Hjel, do Icona Pop: o disco 'This is' tenta despistar a fragilidade vocal da dupla sueca (foto: Theo Wargo/Getty/AFP)
Em outros tempos, a palavra diva, no mais das vezes, restringia-se ao mundo da música erudita – equivalente do termo italiano prima donna, usualmente aplicado a estrelas mundiais da ópera. Poucas fizeram por merecer tal classificação no exercício do bel canto: Maria Callas, Yma Sumac, Bidu Sayão, Montserrat Caballé.


No jazz, passaram a ser consideradas como tal Billie Holiday, Lena Horne, Ella Fitzgerald e Dinah Washington. No soul  e no rhythm & blues, Aretha Franklin e Laura Nyro. A anos luz de simulacros providos pela tecnologia dos estúdios de gravação, essas cantoras fascinavam o público se valendo unicamente de suas personalidades magnéticas e da extensão natural que vai dos registros graves e médios ao alcance sem esforço das mais extremas notas agudas. Dons quase divinos manifestos pelo domínio sobre coloraturas, glissandos, melismas e escalas mais complexas, a ponto de fazer da voz a expressão mais direta e intensa dos afetos humanos.


Na cada vez mais efêmera música pop, a banalização do termo “diva” acabou contemplando cantoras providas de pouco ou nenhum talento vocal. Mais: flanqueadas pela moral hedonista da sociedade de consumo, estrelas da pós-contemporaneidade se espalharam como metástase. Defrontadas com a legitimação do provisório e o culto do perecível, elas reformularam o conceito que muitos se esforçaram para lhes aplicar quando passaram a estampar o abjeto e o escândalo como embalagem – pérfida “humanização” que destrói mitos e condiciona seus sujeitos à absoluta vacuidade.
No jogo da moda, a fragilidade, ao tomar para si o lugar da raridade (da diva, enfim), acabou por promover a definitiva entronização da carência.

 

ICONA POP / This is

Espécie de clonagem genética de Kesha com Abba e Spice Girls, a dupla sueca Icona Pop tem obtido fama transcontinental com açucaradas diluições do batidão sintético e das novidades da radical cena EBM transpostas de forma palatável para o mercado pop. Tal pesadelo sônico se viu materializado nas 11 faixas que Caroline Hjelt e Aino Jawo bancaram sob a forma de melodrama plastificado no CD This is. Soterrada por pulsos gerados por sintetizadores e outras formas de vertigem rítmica eletrônica, a dupla evita a exposição solo das respectivas vozes, optando por dividir o microfone de modo a disfarçar parcos recursos. Um engodo harmônico veio outorgar às integrantes do Icona Pop imediato status de “divas” por conta de toneladas de delays, efeitos reverberados, compressores e o famigerado auto-tune.

LAURA PAUSINI / The greatest hits

Entronizada em sua terra natal por amarguradas donas de casa e adolescentes problemáticas como “diva do pop romântico”, a italiana Laura Pausini conquistou milhares de fãs no Brasil. Até o finado rocker Renato Russo se rendeu à cantora, ao assumir sua porção brega quando gravou CD só com versões de xaroposas baladas italianas. O repertório dele trazia quatro canções gravadas pela ainda relativamente desconhecida Pausini: Gente, Lettera e os sucessos Strano amore e La solitude. Ainda que não apele para o erotismo vulgar de uma Rihanna e possa ser considerada mezzosoprano, Pausini – mesmo com certa discrição – também é adepta de “anabolizantes eletrônicos” como o auto-tune, de modo a corrigir imprecisões de performances vocais ou potencializar gravações e apresentações ao vivo. Na melhor das hipóteses (confira versões remixadas ou relidas de suas músicas mais conhecidas em The greatest hits), Pausini não passa de uma Celine Dion em roupagem e look atlanto-mediterrâneos. Ou seja, outra “diva” descartável que se tornou uma praga no Brasil depois do aval obtido junto à Rede Globo, vide suas incontáveis aparições em trilhas sonoras da emissora ou programas de auditório como Domingão do Faustão.

KELLY CLARKSON / Wrapped in

Com o oportunismo que lhe é comum, o conglomerado formado pelos selos Sony Music e RCA fez chegar ao mercado norte-americano, no apagar das luzes de 2013, o álbum da “diva” texana, recheado com músicas alusivas ao Natal. Desovado no Brasil em pleno verão, fica claro que os “15 segundos de fama” destinados a tal frígido registro se derreteram rapidamente, sem grande esforço. Vide a foto da loirinha brincando com flocos de neve na contracapa, bem como as releituras com as quais destroçou as até então antológicas White Christmas (Irving Berlin), Please come home for Christmas (Charles Brown/Gene Redd) e My favourite things (Hammerstein/Rodgers).
 

AVRIL LAVIGNE / Avril Lavigne

Espécie de involuntária precursora dos rolezinhos que grassam pelos shopping centers do país, a usualmente desafinada Avril Lavigne e sua rebeldia fake jamais nos enganaram. Mesmo batizando faixas de seu último CD com títulos como Rock’n’roll, Bad girl (para a qual tentou angariar credibilidade convidando Marylin Manson para uma participação especial) e Bitchin’ summer, a gravação – na qual a voz da “diva” aparece devidamente modificada por filtros e outras trucagens eletrônicas – serve, na melhor das hipóteses, como polaroide de um tempo e de uma sociedade em que jovens e inconformados acabam transformados, da noite para o dia, de consumidores em mercadoria de liquidação.

BRITNEY SPEARS / Britney Jean

Como lídimo exemplar das “divas” do nosso admirável mundo novo, Spears sempre abusou de playbacks para tentar disfarçar – sem muito êxito – sua gemida, pusilânime e anasalada voz. Ainda que inegavelmente tenha melhorado sua técnica depois de incontáveis aulas de canto, o pesadelo de ouvi-la persiste. Isso pode ser aferido neste oitavo disco de estúdio da dublê de dançarina, atriz e cantora. Concebido como uma espécie de álbum conceitual sobre “a solidão da vida no mundo pop” (quanta originalidade!), Britney Jean ao menos dá sinal de que o poderio da estrela já não é o mesmo. O novo CD não só foi o disco da cantora que menos vendeu nos Estados Unidos –, também não emplacou na Inglaterra e em outros países da Europa. Resumindo: merece ser confinado para sempre nos arquivos do esquecimento.

CELINE DION / Loved me back to life

Ao melhor estilo “sessão tortura”, com o qual a finada Whitney Houston atormentou a humanidade via sua tonitruante performance no tema do filme O guarda-costas, Celine Dion sempre abusou da capacidade de sustentar notas que parecem não ter fim. Detentora de extensão de 3,1 oitavas, ela pode até acreditar naqueles que a chamam de diva. Porém, a vasta discografia e as cifras milionárias – conforme reiteram as quase 250 milhões de cópias vendidas do recém-lançado Loved me back to life – não foram suficientes para mascarar o tatibitate do timbre característico de que ela se valeu para surrar ouvidos alheios com pieguissímo melodrama pop durante mais de três décadas. Prova de que nem mesmo uma portentosa voz e técnica acima da média são capazes de privar as “admiráveis divas do mundo novo” do mau gosto e da mesmice. 

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