Crise econômica e câmbio desfavorável fazem a oferta de trufas sumir dos cardápios

Em Belo Horizonte, no Rio e em SP casas ainda dedicam festivais à iguaria, com pratos a R$ 300

por Eduardo Tristão Girão 09/12/2015 08:30
Stefano Rellandini/ REUTERS
O caçador de trufas brancas Ezio Costa, de 66 anos, inspeciona exemplar encontrado por seu cão Jolly, em Monchiero, perto de Alba (Itália). Essa espécie de trufa não é cultivada, nasce naturalmente nas florestas, mas mudança climática tem feito diminuir seu aparecimento na região (foto: Stefano Rellandini/ REUTERS)
Que tal pagar R$ 300 por um ovo frito? Não um qualquer, mas coberto por finas lâminas de trufa branca fresca desenterrada na Itália e trazida com urgência para o Brasil, pois, uma vez retirada do solo, a potência de seu aroma característico, que lembra gás de cozinha, começa a diminuir rapidamente. A temporada anual dessa legítima (e caríssima) iguaria está chegando ao fim na Europa. No Brasil, mesmo com o cenário de crise e o câmbio extremamente desfavorável, ela continua a mover chefs. Aliás, chefs e fregueses, acredite se quiser. Neste ano, o quilo da trufa branca chegou a cinco mil euros, o que corresponde a cerca de R$ 20 mil.


As mais valorizadas vêm dos bosques ao redor da cidade de Alba, na região italiana do Piemonte: são fungos que crescem no subsolo, próximos das raízes de árvores como o carvalho, e são encontrados por cães treinados exclusivamente para isso. Cidades promovem festivais para ela, leilões elevam seu preço às alturas (um comprador desembolsou mais de R$ 400 mil por um exemplar de 900g, no mês passado, em Hong Kong), turistas viajam para caçá-las e chefs as garimpam para ralar sobre massas, risotos e os tais ovos fritos. Quanto mais simples a receita, melhor. Ela deve reinar no prato.

“Com trufa, não se ganha dinheiro. O que fazemos é marcar presença e prestigiar o cliente. Tenho clientela fiel. É preciso deixar o cliente feliz, e isso me deixa muito empolgado. É uma forma de prestigiar quem te prestigia o ano inteiro”, diz o chef italiano Danio Braga, sócio do hotel Locanda della Mimosa, em Petrópolis, no Rio de Janeiro. No restaurante que comanda ali, anualmente é realizado um festival de trufas com exemplares que ele mesmo vai à Itália buscar.

TADEU BRUNELLI/DIVULGAÇÃO
Trufa é ralada sobre prato no restaurante Le Bilboquet, em São Paulo. Chef Julien Mercier diz que ela %u201Cjamais vai perder o encanto%u201D (foto: TADEU BRUNELLI/DIVULGAÇÃO)
“É um produto que não se compra por telefone. Tem de escolher, tem de ver. Quem trabalha com trufa é bandido. É que nem comprar entorpecente, os caras vendem de tudo”, afirma ele. Desta vez, Braga fez duas temporadas, totalizando quatro quilos da iguaria. Aproximadamente 250 pessoas foram até seu restaurante só para comer seu menu de sete etapas, apenas com receitas que levam trufa – a R$ 900 por pessoa, com bebidas e serviço à parte. Entre as receitas, explosão de raviólis trufados com caldo de galo capão e sorvete de parmesão com trufa e mel de trufa.

Para ele, trata-se de um ingrediente que jamais perderá sua majestade. “Os italianos não estão mais tão interessados em trufa porque está muito cara. Eles vendem mais para o exterior do que consomem. Não tem o mesmo apelo que tem no Brasil, até porque é algo próximo, relativamente fácil para eles. A gente, a 12 horas de distância de avião, fica sonhando. Eles têm trufa de inverno, de verão... É mais corriqueiro. Para nós, é um acontecimento”, afirma Braga. Cerca de 80% de seus clientes são os mesmos ano após ano, segundo diz.

O chef francês Julien Mercier, que atualmente comanda festival de trufa no restaurante paulistano Le Bilboquet, concorda: “Trufa é como caviar e açafrão. A menos que alguém consiga produzi-la comercialmente, como fazem com o cogumelo shiitake, por exemplo, jamais vai perder o encanto”. A casa também trabalhou com duas remessas, somando um quilo do valorizado fungo italiano. Cada prato dessa temporada especial, conta ele, leva 10g de trufa ralada por cima e sai por R$ 300 a 350 reais.

“É um preço bem barato, se você for olhar o mercado. Outros restaurantes de São Paulo estão cobrando o dobro. Com a desvalorização cambial, foi bem difícil fazer o festival. Os valores dobraram do ano passado para cá. Para não repassar um preço absurdo, estamos vendendo a preço de custo, basicamente. Mercier está preparando pratos como o ovo mole com cogumelos e aspargos, o carpaccio de vieira crua com flor de sal e vieira e o filé com foie gras e batata rösti – todos cobertos por lâminas de trufa.

BONS TEMPOS
Em Belo Horizonte, o restaurante A Favorita era o último reduto da trufa fresca: o proprietário Fernando Areco, o Motta, fez festival ano passado, mas desistiu da ideia este ano. “Fora o preço da trufa em si, o mercado está retraído. Os vinhos aumentaram demais e percebemos que o cliente que tomava uma garrafa de R$ 200 deixou de pedi-la. O mercado não está para brincar de perder dinheiro. As pessoas não estão gastando”, diz. Ele calcula que, agora, um ovo frito com trufa sairia por cerca de R$ 400 e uma massa ou vitelo com ela, R$ 500.

“Antigamente, trazíamos mais de um quilo de trufa e mais de uma vez. Na época em que US$ 1 valia R$ 1, a gente vendia prato com trufa fácil, porque o preço não era tão exorbitante. O champanhe francês custava R$ 100 no restaurante, ou seja, US$ 100. Aliás, mais ou menos o mesmo preço de hoje, só que US$ 100 não são mais R$ 100. Era uma época feliz”, afirma. No passado, casas como Vecchio Sogno e Dona Derna realizavam festivais para celebrar a chegada do ingrediente à cozinha, mas há muitos anos deixaram de fazê-lo.

O chef italiano Memmo Biadi, à frente do Dona Derna, normalmente trazia dois quilos da iguaria. “Era outro público, outro preço. A última vez deve ter sido há uns 15 anos”, conta. Atualmente, usa apenas a manteiga de trufa italiana, que leva pedacinhos do fungo, mas não abandonou a ideia de retomar os festivais do tipo. Faria um este ano, que só não aconteceu porque o espaço em que seria realizado (a sobreloja do restaurante) estava em reforma. Um representante que trabalha com trufas italianas e seus derivados já está em contato com ele.

Do ano que vem, não passa, garante Biadi: “Isso acontece só uma vez por ano, vale a pena. Quem gosta e pode gastar ou vai para a Itália ou fica sem. Ainda existe público para isso, como para o foie gras e o caviar. Tem coisas que o público não vai deixar de apreciar. R$ 300 para comer um ovo frito com trufa é um absurdo, mas é uma vez por ano. É uma coisa única”.

Também deixou o festival de trufa para o ano que vem o chef Lucas del Peloso, do restaurante Villa Roberti. O motivo, explica, foi o clima de crise no país: “Faríamos viagem para Alba, este ano, para trazer trufas negras e brancas, mas repensamos”. Mesmo usando apenas azeite trufado na cozinha, ele acha importante manter pratos com o ingrediente no cardápio. “As pessoas acham bonito, o público procura. É uma questão de posicionamento, precisamos ter. Os clientes sempre pedem algo trufado”, diz.

PERFUME TRUFADO

Ao perceber o interesse do brasileiro por produtos com trufa, o italiano Stefano Piletti, que mora em Tiradentes e é apreciador da gastronomia regional, decidiu produzir não apenas os derivados mais conhecidos (manteiga, azeite e mel trufados), mas itens incomuns, como manteiga de garrafa, queijo de minas (o conceituado Catauá, no caso) e até farofa, tudo trufado. Ele usa somente trufas italianas, mas secas ou em conserva. “A trufa fresca gera bactérias e pode ser perigosa se usada em derivados como esses”, explica. No momento, ele desenvolve com restaurante da cidade histórica mineira outros dois produtos trufados improváveis, carne de lata e cachaça. “Também estou procurando um azeite nacional para trufar”, revela Piletti.

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