Herdeiros dos restaurantes Xapuri e Dona Lucinha planejam inovações e expansão

Filhos assumiram a liderança dos mais tradicionais endereços da culinária mineira

por Eduardo Tristão Girão 31/03/2015 08:00
Leandro Couri/EM/D. A. Press
Flávio Trombino, com sua mãe, Nelsa Trombino, no salão do Xapuri. Ele introduzirá prato individual no cardápio e planeja nova casa de comida brasileira (foto: Leandro Couri/EM/D. A. Press)
Dona Lucinha e Xapuri desempenham o mesmo papel em Belo Horizonte. São os dois principais restaurantes dedicados à cozinha mineira na cidade, atraindo moradores e turistas aos montes – cada um à sua maneira.


Suas fundadoras, Maria Lúcia Clementino Nunes e Nelsa Trombino, respectivamente, são senhoras competentes e carismáticas, fundamentais para o sucesso de cada casa, mas cuja idade não permite mais envolvimento no conturbado dia a dia de uma cozinha. A passagem do bastão em ambos os endereços está em curso, trazendo dilemas e ideias que poderão alterar significativamente as características desses locais.


“Você venha, mas não pense que é fácil ganhar dinheiro com restaurante”, foi o que ouviu a historiadora Márcia Nunes, a terceira dos 11 filhos de Dona Lucinha, quando decidiu largar o emprego de professora para assumir a linha de frente da casa ao lado da mãe, em 1996.


Hoje, ela vê o restaurante funcionar praticamente da mesma forma que no dia de sua inauguração (em 1990), com um bufê de receitas de sabor e apresentação simples, colecionadas durante o período em que a matriarca morou no Serro, onde nasceu. Entretanto, Lucinha, de 83 anos, está com a saúde frágil e não vai mais ao restaurante desde o final de 2013.


“Mamãe fez a casa para preservar os sabores da formação da cozinha mineira. Quando abrimos, pessoas comentaram que era comida de porco, que seria uma vergonha mostrar aos visitantes. Era um outro tempo. Ela sabia que o fogão a lenha requer um ambiente próprio, por isso não o colocou, mas quis que as pessoas se sentissem à vontade, daí a ideia do bufê. A infelicidade foi a difusão do self-service na mesma época. As pessoas confundiam uma coisa com a outra. Até hoje a crítica gastronômica me bate muito por isso, mas essa casa honra a mamãe. O mercado me pede (mudanças) e a história me puxa (para trás)”, confessa Márcia.

ALEXANDRE GUZANSHE/EM/D.A PRESS
Márcia Nunes, filha de Dona Lucinha que assumiu o restaurante fundado pela mãe, diz que formato e bufê teve a 'infelicidade' de coincidir com a difusão do self-service (foto: ALEXANDRE GUZANSHE/EM/D.A PRESS)
URUCUM Por isso, é provável que ela não altere sequer a posição dos talheres. O que não significa que não haverá novidades. Márcia percebe o restaurante como parte de sua herança cultural e, ao mesmo tempo, trampolim para abrir outra casa – dedicada à cozinha mineira, mas diferente da que a mãe fundou. “Não teria bufê, faria apenas em algumas circunstâncias, como para atender a grupos. A hora de mudar, para mim, já chegou.”


O Armazém Dona Lucinha, aberto em frente ao restaurante, há 10 anos, já seria um pequeno movimento nessa direção, acrescenta, com seus pratos do dia preparados na hora.


Por enquanto, ela só conseguiu tirar as toalhas brancas das mesas (agora com jogos americanos de papel). Já o forno combinado, equipamento indispensável para a maioria dos restaurantes atualmente, não durou muito tempo por lá, pois a equipe da cozinha não se adaptou a ele. Ainda são feitos na casa a linguiça, o pão de queijo e os doces à base de leite (doce de leite, ambrosia, espera-marido). O frango com quiabo é vermelhinho de urucum. Queijo minas e cachaça, claro, ainda vêm do Serro, como antigamente. Até segunda ordem, “ninguém entra, ninguém sai”.


Tudo continua do jeito que o tenor espanhol Placido Domingo encontrou no ano passado, quando veio a BH para assistir à semifinal da Copa do Mundo, e numa visita ao restaurante, disse a Márcia: “Que casa maravilhosa! Já pensou em abri-la em Nova York?”.

MARCA O desejo de uma nova casa de comida mineira também ronda o pensamento de Flávio Trombino, filho de Dona Nelsa, que, desde 2012, comanda o Xapuri, aberto por ela em 1987. “Precisamos desenvolver a marca Xapuri, por exemplo, com linhas de doces, cachaça, cerveja. Num segundo momento, outra casa. Teria outro nome e comida brasileira, pensando na Zona Sul. Uma réplica do Xapuri em Lourdes não daria certo. A fórmula não é tão simples. É muito mais complexo que ter frango com quiabo e fogão a lenha debaixo de uma palhoça”, diz ele.


Esse plano já foi compartilhado com o chef Leo Paixão (Glouton), que se mostrou animado com uma possível sociedade. “Tenho conversado com ele, que tem esse mesmo desejo. É o tipo de pessoa a quem me associaria com facilidade. Eu o admiro muito”, afirma Flávio.


Enquanto isso não acontece, a transição por lá é feita de forma aparentemente tranquila. Dona Nelsa, que tem 76 anos, não participa mais do “combate” diário na cozinha, mas ainda dá seus pitacos. “Ela continua sendo minha grande referência, provando pratos, avaliando ponto, textura, combinações. O grande legado dela e de papai é a simplicidade como algo de muito valor.”


Flávio participou ativamente da abertura da casa, cozinhando e criando soluções para os dias de maior movimento, como a linguiça aberta na chapa, que cozinha mais rápido do que se fosse preparada inteira. Três anos depois, no entanto, optou por dedicar-se à sua outra paixão – equitação – na hípica nos fundos do terreno em que fica o restaurante. “Muita gente cobrava o meu retorno. Dos três filhos, o que mais gosta de cozinha sou eu. Sabia que uma hora teria de assumir”, diz.

MUDANÇAS As mudanças começaram com a introdução de ingredientes do cerrado mineiro, que deram origem ao atual Prato da Boa Lembrança: miolo de alcatra serenado com cebola roxa na manteiga de garrafa, batata-doce e moranga assadas com casca, vinagrete de coentro com pimenta dedo-de-moça, farofa de baru e arroz com pequi.


Se Dona Nelsa teria criado um prato como esse? “Sim, mas não sei se com esses ingredientes. Viajei com meu pai pelo Norte de Minas, é uma referência minha. Minha mãe não teve tanto contato com o cerrado, pois viveu em Lagoa da Prata, aos pés da Serra da Canastra, teve contato com outro terroir”, diz.


A propósito, o próximo Prato da Boa Lembrança (uma espécie de galinhada com cogumelos, quiabo, tomate e queijo canastra), que será apresentado no mês que vem, será o primeiro na história da casa a ser servido num prato individual – em vez de chegar à mesa para compartilhar, desmembrado em panelas, chapas e potes.
“Isso poderá abrir caminho para outros empratados individuais, incluindo sobremesas”, adianta. Outra novidade por lá é a presença de um prato vegetariano (verduras, legumes e tubérculos preparados de formas distintas), montado numa chapa de pedra-sabão e finalizado com azeite e flor de sal.


“Hoje, tenho na cozinha nitrogênio, cocção a vácuo, sifão, Thermomix (robô de cozinha) e Roner (máquina circuladora de água a temperaturas controladas para cozimentos a vácuo), que uso em alguns eventos. Além disso, incorporei ao dia a dia da cozinha o forno combinado e um defumador. Tudo isso melhora minha operação, otimiza tempo, dá padrão. Com o volume de trabalho que tenho, preciso dessas ferramentas. Não sou purista a ponto de ser avesso a qualquer inovação. Se melhora a qualidade, por que não usar?”

 

PARA LER


» Xapuri e a cozinha de Nelsa Trombino
De Marcelo Musarra. Girassol Comunicações. 122 páginas.
Fartamente ilustrado, narra a trajetória da fundadora e a criação da casa, que começou pequenina e hoje chega a atender mil pessoas num único domingo. Parte de uma coleção dedicada a chefs do país, inclui diversas receitas.

» História da arte da cozinha
mineira por Dona Lucinha

De Maria Lúcia Clementino Nunes e Márcia Clementino Nunes. Editora Larousse. 176 páginas Clássico título para quem se interessa pelas origens da cozinha mineira: a separação nas vertentes de fazenda (pratos com caldo) e de tropeiro (pratos mais secos) é atribuída a esse título de Lucinha. Inclui receitas.

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