Chef americano Jesse Dunford Wood fortalece raízes e se orgulha do destino ligado a Ouro Preto

Especialista da gastronomia nasceu na Casa Mariana, que pertencia à poeta americana Elizabeth Bishop

por Laura Godoy 17/08/2012 10:07
Fotos: Laura Godoy/Divulgação
Trabalho de Jesse Dunford tem dado personalidade ao The Mall Tavern, reconhecido por seu cardápio criativo (foto: Fotos: Laura Godoy/Divulgação)
 
Em Ouro Preto fica a Casa Mariana, onde a poeta americana Elizabeth Bishop, prêmio Pulitzer de Poesia em 1956, morou em períodos das décadas de 1960 e 1970. Depois de uma viagem à cidade em 1953, na companhia da arquiteta Lota Macedo de Soares, com quem vivia, voltou outras tantas vezes a Minas, até que decidiu comprar o imóvel. Além de todas as lembranças sobre a vida de Bishop que a casa guarda, um enigma persiste no vidro de uma das janelas. Lê-se gravado: 

“In this room in the house of Elizabeth Bishop, poet of Boston, Massachussets, on the night 22 october 1977 was born Jesse Dunford Wood, an Englishman and son of Hugh Diarmid Dunford Wood, painter, and Emma Stacey Dunford Wood, silversmith of Oxfordshire, England. Thanks be to God.” (Neste quarto, na casa de Elizabeth Bishop, poeta de Boston, Massachusetts, na noite de 22 de outubro de 1977 nasceu Jesse Dunford Wood, inglês filho de Hugh Diarmid Dunford Wood, pintor, e de Emma Stacey Dunford Wood, ourives de Oxfordshire, Inglaterra. Graças sejam dadas a Deus.) 

Essa certidão de nascimento registra a aventura de uma família inglesa anos atrás em Ouro Preto. Embora um ou outro saiba o que se passou naquela época na casa da Rua Conselheiro Quintiliano, perto da Praça Tiradentes, a maioria dos moradores da cidade desconhece a história. Quem é o menino que nasceu ali, na casa que era de Bishop? 

Para saber é preciso primeiro afirmar que Notting Hill e Ouro Preto têm algo em comum. Neste caso não é o carnaval do célebre bairro londrino, para alguns o melhor da Europa, nem o comércio de antiguidades. Tampouco as feiras ao ar livre, a neblina ou mesmo os costumes dos moradores mais tradicionais. 

É na região centro-oeste de Londres, em meio às casas vitorianas, que vive e trabalha o ouro-pretano Jesse Dunford Wood. Ele não fala português e, aos 34 anos, embora tenha um aspecto “descolado”, carrega todo o estereótipo de um perfeito lord: o estilo de humor, o tipo físico e a receptividade. Dunford é um dos chefs de cozinha mais inventivos da atual geração inglesa. Teve como mestres alguns dos principais nomes da culinária mundial, é convidado frequente do programa da BBC Celebrity master chef e recebeu Time Out's 2007 Best British Restaurant Award, quando comandava a cozinha da Nattional Gallery de Londres. 

Desde 2010, conduz uma equipe que reinventa a culinária diariamente no pub The Tavern Mall. A criatividade do chef é herança de família. O pai, como está escrito na janela de Ouro Preto, é Hugh Diarmid Dunford Wood, pintor, e fez ele mesmo a gravação sobre o nascimento do filho. A mãe, Emma Stacey Dunford Wood, é ourives. Quando jovem, o casal resolveu vir ao Brasil e conhecer, entre outras cidades, Ouro Preto. Hugh e Emma, já grávida, vieram em um navio que deu muitas voltas. O casal chegou ao Rio de Janeiro depois de longa viagem e seguiu para Ouro Preto. “Para um pintor como meu pai, ali era o lugar perfeito, interessante, com pessoas criativas”, diz Jesse.

Os dois ingleses já sabiam onde se hospedar. Seis meses antes de virem para o Brasil, começaram a escrever para Elizabeth Bishop, demonstrando intenção de alugar a casa. Ela, já de volta aos Estados Unidos, concordou. Logo que chegaram à antiga Vila Rica, Hugh e Emma passaram a viver na Casa Mariana, batizada assim pela poeta quando a comprou, em 1965, em homenagem à também poeta Marianne Moore. 

Em Ouro Preto, o casal fez vários amigos. O atual prefeito, Angelo Oswaldo de Araújo Santos, recém-chegado à cidade naquele ano, foi um deles. “Tratava-se de um casal marcado pelas ideias dos anos 1960 e 1970. Faziam um belo par, com chapéus de palha e feltro e roupas simples, mas de grande charme. Estávamos sempre juntos, na cidade ou indo às cachoeiras e a povoados como Lavras Novas”, diz. Na época secretário de Turismo e Cultura, ele lembra que os ingleses queriam ter um filho no Brasil por medo das guerras que sempre rondaram a Europa.

 Parteira às pressas Enquanto pergunta a um dos cozinheiros da equipe sobre um tabuleiro de 

suspiros prestes a ir ao forno, Jesse conta com gosto a trajetória dos pais em Ouro Preto. Nessa hora, até parece um mineiro com seus “causos”. “Sei que os dois gostavam muito de caminhar pela cidade e arredores. Um dia, foram até uma montanha que tinha esse formato (faz um desenho do Pico Itacolomi), quando minha mãe começou a ter as primeiras contrações”, conta. E assim, em 22 de outubro de 1977 ele nasceu. Na mesma casa em que viveu Elizabeth Bishop, no mesmo quarto que ela ocupava. 

Os dias que antecederam o parto foram acompanhados com certa preocupação pelos amigos do casal, já que os dois insistiam que a criança nascesse de parto natural. Angelo Oswaldo conta que Emma se esforçou para isso, fazendo exercícios físicos e lendo a respeito. “Não queriam ajuda de ninguém, para que a criança nascesse só com os pais, do modo mais natural possível. Achavam que tudo ia dar certo”, relata.

Às vésperas do nascimento, por precaução, os amigos chamaram Enedina Lucas, uma das parteiras mais conhecidas da cidade. “Foi perfeito. Na hora do parto, Hugh acabou muito impressionado e a parteira resolveu a situação, que poderia ter-se complicado. Comemoramos juntos”, conta o prefeito. 

A família ainda morou em Ouro Preto por 18 meses, período em que a correspondência do pintor com a poeta americana continuou. Hugh registrou tudo em um livro de pinturas e fotos com que presenteou o filho. Depois voltaram para Inglaterra. Quando Dunford completou 14 anos, visitou a terra natal com o pai. Subiram no topo do Pico Itacolomi. Andaram pelas ruas. Nadaram nas mesmas cachoeiras. Caminharam pelo jardim da Casa Mariana, um dos mais bonitos da cidade. “Foi importante conhecer as pessoas, o país, a cidade”, recorda. “Na escola, era ótimo dizer que era brasileiro. Hoje, sempre vejo Ouro Preto em revistas e jornais que falam do Brasil. E muitas vezes citam a casa em que nasci”, diz, com orgulho.
 
Casa à venda 
 
A Casa Mariana, que tem uma das vistas mais deslumbrantes de Ouro Preto, foi construída no começo do século 18. Em 1982, três anos depois da morte de Bishop, foi comprada por Linda Nemer, irmã do artista plástico José Alberto Nemer e também amiga da poeta.
 
Por ocasião do centenário de nascimento de Bishop, em 2011, os irmãos tiveram a ideia de vender a casa. “Achamos que era o momento oportuno para que uma fundação, universidade, empresa ou mesmo mecenas americanos se interessassem em manter a única memória da presença de Bishop no Brasil”, relata Nemer. Foi feito um contrato com o braço imobiliário da Sotheby’s (uma das casas de leilão mais conceituadas no mundo) no Brasil, mas o acordo não satisfez os interesses dos Nemer.  
 
 Depois de pensar em seguir carreira nas artes, Jesse Dunford hoje desenvolve culinária inglesa moderna e cria pratos para pubs, casas que são mais
conhecidas pelas bebidas 
 
Mesa mineira em Londres 
 
No pub The Tavern Mall tem, toda semana, ao menos uma opção inédita no menu. Para provar a nova versão do famoso Chiken Kyiv ou se deliciar com os ovos de faisão servidos em uma cesta artesanal deve-se fazer uma reserva. O lugar vive cheio. 

Como a vida de Dunford, o lugar tem “pistas” interessantes em cada canto. Muitos objetos foram comprados de outras pessoas. De uma cadeira aos postais distribuídos pelo estabelecimento: tudo tem memória e nada está ali por acaso. Jesse é sócio de dois irmãos, os Perritt, e desenvolve a chamada “culinária inglesa moderna”. “Antes, não era possível imaginar comida em um pub. As pessoas só procuravam o lugar para beber. Hoje isso mudou”, relata. 

The Mall Tavern abomina a impessoalidade. Talvez como um resquício inconsciente de Minas, uma das atrações do restaurante está no segundo andar da casa: é a mesa da cozinha. Feita de madeira e próxima às janelas, quem escolhe comer ali opta por uma sequência-surpresa de sugestões do chef. Podem ser as fatias de salmão defumado com pão e manteiga especiais ou a mais crocante fatia de barriga de porco da Inglaterra. Quem sabe o mousse de chocolate com especiarias. Entre a bem-humorada equipe que Jesse comanda não existe a tensão comum nos “bastidores” culinários. A atmosfera é leve e relaxada. 

O anglo-ouro-pretano bem que tentou ser fotógrafo ou design. “Gosto de ser criativo, mas também de organização e disciplina. Por isso acho que não daria certo trabalhar com arte. Na cozinha, consigo ter a precisão dos ingredientes, das quantidades, sem perder a inventividade e trabalhando para pessoas”, acredita. Para Jesse, a arte tem muito a ver com o gosto pessoal e os paradigmas de cada um. Assim também seria a culinária, mas com um diferencial: “É impossível não gostar de comida”, diz. “Seja fast food ou foie gras, todos têm uma fantasia sobre um prato”, conta. 

Depois de terminar os estudos secundários, Dunford passou a morar com o avô, o experiente repórter Tom Stacey, do Sunday Times, que hoje observa o neto em uma foto que ocupa quase um terço de uma das paredes da cozinha. 

PELO MUNDO Cansado de comer “pasta com massa de tomate e bacon”, começou a se interessar pela culinária e a preparar pratos para a namorada e amigos. Até que decidiu se profissionalizar. Percorreu alguns dos principais restaurantes da Austrália, Estados Unidos e Europa, como o Charlie Trotter’s, em Chicago, o Gidleigh Park, de Michael Caines, o VII,  em Sidnei, o Gavroche, na própria Inglaterra, e muitos outros. Trabalhou de garçom e ajudante de cozinha. Aprendeu tudo sobre sopas, molhos, peixes, carnes e chocolates e que cozinhar é mais que técnica. “É ser criativo”, diz. E se tornou chef. 

Elizabeth Bishop também gostava de cozinhar em Ouro Preto e o fazia muito bem, como conta o artista plástico José Alberto Nemer, um dos melhores amigos da poeta em Minas. Como Jesse, era rígida com os ingredientes e usava métodos rigorosos, com receitas, balanças, colheres e medidores. “Tudo a serviço de uma química perfeita”, diz Nemer. Preparava geleias no café da manhã para convidados, tortas de maçã e uma inigualável conserva de legumes em banho de mostarda agridoce. Disso Jesse não sabe. E também diz conhecer pouco sobre Bishop. Apesar de, na cerimônia de seu casamento, ter lido para a esposa um poema da escritora americana. Mas dá para perceber que, interiormente, ele percebe que sua história e a de Elizabeth estarão para sempre ligadas num quarto da Casa Mariana, numa janela de Ouro Preto. 
 
Fotos: Laura Godoy/Divulgação
(foto: Fotos: Laura Godoy/Divulgação)
 
FILME EM PRODUÇÃO

A vida de Elizabeth Bishop (foto)  continua sendo celebrada no Brasil. No teatro, com o monólogo Um porto para Elizabeth Bishop, de Marta Góes, em que a atriz Regina Braga interpreta a poeta. No cinema, já está em produção Flores raras, filme de Bruno Barreto que mostra a relação entre a americana e a arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares. A primeira será interpretada pela atriz australiana Miranda Otto, conhecida pelo papel de Éowyn de Rohan em O Senhor dos Anéis. Lota será vivida por Glória Pires.  

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