Carnaval de BH é palco de luta das mulheres pela igualdade de direitos

Evento mantém viés político e contestatório que ganhou desde seu reflorescimento, há cerca de 9 anos

por Flávia Ayer 24/03/2017 12:09

Carlos Hauck/Divulgação
(foto: Carlos Hauck/Divulgação)
Reconhecido por seu caráter político, o carnaval de Belo Horizonte se destaca por ser um dos caminhos pelos quais os cidadãos têm lutado pela ocupação do espaço público. A folia deste ano evidenciou outro aspecto desse “carnaval-revolução”. Mulheres fizeram da festa momesca lugar de resistência, combate à violência de gênero e busca por igualdade de direitos. O feminismo aflorou de peito aberto no discurso e na atitude.

Elas encabeçaram campanha contra o assédio, criaram três blocos formados exclusivamente por mulheres – Bruta Flor, Sagrada Profana e Clandestina – e venceram o concurso de marchinha Mestre Jonas com Cidadão de bem, de Jhê Delacroix e Helbeth Trotta. O corpo nu também se vestiu de luta para questionar os limites da liberdade. Foliãs foram aos blocos de rua com os seios à mostra, apontando para que a prática deixe de ser somente uma fantasia de carnaval.

Muito mais do que em outros carnavais, em 2017, a natureza libertária da folia acolheu a presença feminista, que marcou posição em blocos de ruas menores, nascidos com DNA político, caso do Tico Tico Serra Copo, Filhos de Tcha Tcha e Manjericão. Com pequenos adereços para tapar os seios, blusas sem sutiãs ou de peito nu, não havia qualquer semelhança com desfiles de escolas de samba na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro.

A nudez feminina no carnaval de BH sai do lugar de símbolo sexual ou de sinônimo da graça e da beleza, cultuado nas obras de arte clássicas e renascentistas, para se livrar de pressões e padrões comportamentais ou estéticos. “É preciso parar de erotizar tanto nossa existência. Caso contrário, seremos sempre objetificadas. Isso impede que sejamos minimamente livres”, afirma a doutoranda da Escola de Belas-Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (EBA/UFMG) Thálita Motta, de 27 anos.

Ativista, desde 2012 ela adota o peito de fora nos carnavais com a mesma atitude quando tira o sutiã na Marcha das Vadias, protesto nacional contra o machismo. “Mostrar os seios é tentar naturalizar um hábito dado como natural aos homens”, diz Thálita, que, este ano, ganhou a companhia de mais mulheres, como a produtora cultural Janaína Macruz, de 33, adepta do nudismo em praias e cachoeiras.

“O carnaval é um lugar de quebra, de se sentir mais livre e estar do jeito que você quiser. Os amigos estão em volta e isso torna os espaços mais seguros”, afirma Janaína, que, passada a vergonha inicial, até se esquecia de que o sutiã tinha ficado para trás. No caso dela, brilhos ou um véu transparente sobre o peito evidenciavam a fantasia de carnaval, um passo rumo à conquista por direitos, segundo a produtora cultural. “Estar de peito de fora não é fantasia, é liberdade”, diz.

Ela reconhece, no entanto, que o caminho para essa tal liberdade é longo. “Homens não estão acostumados e mulheres também não”, ressalta. De peito aberto, a mestranda em literatura e arte pela UFMG Dora Bellavinha, de 27, foi assediada duas vezes no carnaval e recebeu apoio integral dos blocos. “Pela primeira vez, fui de peito aberto porque senti confiança de pessoas no meu entorno, mas ainda tem uma visão interiorana. Esta é uma luta para os próximos 20 anos”, reforça.

A permissividade da festa profana, segundo Dora, contribui para que as mulheres se sintam livres para romper tradições. “Carnaval é Baco e Dionísio”, comenta a pesquisadora, em referência ao deus do vinho e do prazer cultuado pela festa momesca (Baco é o deus romano, e Dionísio, o grego). Interessante lembrar que consta na mitologia que as primeiras seguidoras de Dionísio foram mulheres que queriam escapar da vigilância dos maridos e pais.

FEMINISMO NATURAL 
Estreante no carnaval de BH, Dora, que morava no Rio há sete anos, diz ter sentido no retorno à capital mineira “a potência da festividade de forma política”, embora trate seu ato como parte de um “feminismo natural” que pratica desde a infância. “Desde criança, empreendi para a afirmação do meu corpo longe desse lugar erotizado”, comenta a pesquisadora, que também tem trabalho forte como modelo de nu artístico.

 “Faço topless em todas as praias a que vou porque não gosto da marca do biquíni. Não é uma postura política, necessariamente, mas é pelo meu conforto e a forma como quero estar nesse espaço”, comenta Dora, cheia de personalidade. “É por isso que vou continuar tirando minha roupa no carnaval e onde der”, diz. 

O direito de a mulher se vestir como quiser está na essência das fantasias da marca feminista Negoçada, das estilistas Maíra Nascimento, mineira de 38, e Layana Thomaz, brasiliense de 40. Lançada este ano no Rio, a Negoçada teve grande adesão das foliãs mineiras. Abusando de transparências, a coleção contava com maiôs que tampavam mamilos com dizeres e símbolos feministas. Todas as peças tinham um útero bordado.

“O recado é que eu tenho o direito de sair da forma como quiser, tenho orgulho de ser mulher, e machistas não passarão. Há também uma raiz mais profunda sobre a aceitação do próprio corpo”, afirma Maíra. “A discussão do mamilo livre é seriíssima. O seio à mostra é uma das formas mais antigas de se manifestar por direitos iguais”, reforça a estilista, ainda surpresa com o sucesso da marca. Por causa disso, as sócias estão discutindo se a Negoçada terá coleção fora do carnaval.

Assédio Assim como na presença em um corpo que fala e dita suas próprias regras, mulheres subiram o tom no discurso contra o assédio e a violência este ano  com a campanha “Tira a mão: é hora de dar um basta”. A tentativa foi chamar a atenção para comportamentos naturalizados pelos homens no carnaval, como agarrar à força, roubar beijo ou encostar sem consentimento.


A luta daqui em diante é para que a denúncia seja mais fácil, com postos de atendimento exclusivos para essa finalidade e menos burocracia. “Só houve registro de um boletim de ocorrência. Esse número não assusta ninguém. Vamos fazer pressão para que viabilize uma forma melhor para denunciar”, reforça uma das idealizadoras da campanha, Renata Chamilet, do grupo As minas do Carnaval de Belô.

Apesar de uma única denúncia, o grito contra o assédio foi alto, que o diga a regente do naipe de timbau do bloco Juventude Bronzeada, Marcela Linhares. Ela interrompeu o desfile do bloco para protestar contra um caso de assédio relatado pelas foliãs. “Você que está aí do lado da Kombi agarrando mulher, para que está feio, para que isso é crime”, disse. O vídeo do manifesto de Marcela, gravado pelo Estado de Minas, teve quase 200 mil visualizações.

“Foi um momento em que perdi a paciência, porque já tinha ouvido relato de vários casos de assédio”, conta Marcela, que é uma das integrantes da campanha. “Isso faz parte de uma cultura patriarcal que não reconhece a mulher como dona do próprio corpo, do próprio destino e das próprias escolhas. É um caminho longo a se percorrer”, diz.

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