Dançarinos de passinho transformam Belo Horizonte na cidade das batalhas

Danças urbanas e seus diferentes estilos ganham mais adeptos e duelos a cada ano em BH. Movimentos incorporam elementos do funk, break dance, capoeira e até o frevo

por Márcia Maria Cruz 06/02/2017 08:00

Beto Novaes/EM/D.A Press
Johnathan Dancy, Jenniffer Gomes e Victor Guilherme, do Passistas Dancy, executam o "passinho foda" no Palco Hip Hop - Dança Urbana, evento no Bairro Urucuia (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)

Michael Jackson veste jaqueta de paetê. As calças mostram as meias prateadas que contrastam com os sapatos pretos. Numa das mãos, luva. O cantor terminava a interpretação de Billie Jean, quando, de repente, girou de costas e, voialà!, os pés deslocaram para trás como se gravidade não existisse. O mundo parou! Era o ano de 1983, aniversário de 25 anos da gravadora Motown Records, quando Michael eternizou o passinho moonwalk, repetido, infinitamente, por bailarinos profissionais ou por corajosos que arriscam fazê-lo, sem qualquer pretensão, em todos os cantos do mundo.

O passo não poderia ter nome mais apropriado, numa tradução livre do inglês, moonwalk é caminhada na Lua. A denominação pode ser tanto em referência à execução perfeita de um movimento sem a ação da gravidade no satélite natural, como pode remeter ao fato histórico da humanidade ter chegado, pela primeira vez, lá em 1967. Quando moonwalk foi executado pela primeira vez, faltavam exatos 20 anos para o nascimento de Johnathan Dancy, dançarino que se apresentou, anteontem, no Palco Hip Hop – Dança Urbana, no Bairro Urucuia, na Região do Barreiro. “Michael é referência mundial. Não tem uma dança ou dançarino que não tente fazer como ele”, sentencia Johnathan, que é o mais velho dos integrantes do Passistas Dancy, um dos grupos de passinho de Belo Horizonte que vem ganhando destaque na cena cultural da cidade.

Com curadoria do coletivo Família de Rua, o encontro no Bairro Urucuia reuniu dançarinos de toda Belo Horizonte de diferentes modalidades das danças de rua. O evento demarca o vigor da cena das danças urbanas na cidade e fortalecimento da produção artística das periferias. “O cenário está crescendo absurdamente em Belo Horizonte, que tem se caracterizado como cidade das batalhas urbanas com a revelação de várias companhias de dança”, diz um dos curadores do Palco Hip Hop, Pedro Valentim do coletivo Família de Rua.

Diferentemente de Michael, ao se apresentarem, Johnathan e os companheiros do grupo Passistas Dancy – Vitinho Dancy, de 17, Pedro Henrique de Assis, de 16, e Jenniffer Gomes, de 15 – usavam camisas coloridas, “alegres” como eles dizem, puxadas para o rosa, e dançavam descalços. Sem o auxílio dos sapatos, chamaram o brilho para os pés, que se deslocavam com tamanha velocidade, que fazia quem via se perguntar se o quarteto não chegara à Lua, pois era certo: gravidade ali não havia.

Os Passistas Dancy são um dos mais talentosos na execução do “passinho foda”, uma das três modalidades, do estilo de dança que surgiu no Rio de Janeiro, no ano 2001, como parte da cultura do funk. Também existem as modalidades: passinho montado e o do romano. “É um movimento de favela que começou em Jacarezinho. Os moleques iam para o baile dançar. Então viam os homossexuais dançarem, o free step, um movimento rápido dos pés. Todo mundo achou bacana. Daí começaram a misturar com o break dance, pop, com o frevo, com a capoeira. Cada um no seu estilo”, explica Johnathan.

A riqueza do movimento do passinho foi captada pelo diretor Emílio Domingos, no documentário Batalha do passinho (2012). O dançarino mineiro tomou conhecimento do que rolava no Rio de Janeiro pela internet quando assistiu um vídeo de Peter Pan e Gambá. De nome Gualter Rocha, Gambá foi um dos precursores do passinho, mas foi assassinado em 2012.

Disputa Um dos aspectos que caracterizam as danças urbanas são os duelos, uma disputa para ver quem faz os melhores passos. Por isso, os dançarinos ficam atentos aos movimentos da capoeira, do frevo e de qualquer outro ritmo que pode ser usado no momento de disputa para surpreender o adversário. Pedro Valentim conta que desde 2015 o evento tem aberto espaço para apresentações e para reflexões sobre as danças urbanas. “A molecada da periferia é protagonista da história. Estão ocupando os palcos da cidade e da periferia. Eles buscam referência em outras manifestações, propõem diálogo com a cultura hip hop e fazem uma renovação”, define.


Beto Novaes/EM/D.A Press
Grupo mirim do Lá da Favelinha, centro cultural do Aglomerado da Serra com diversas atividades (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
 

 

Evolução constante

 

Com dançarinos por toda a cidade, a cena bastante difusa do passinho conquista as comunidades e espaços institucionais de cultura da capital mineira. Bailarinos do Ballet Jovem do Palácio das Artes participaram de oficinas com dançarinos do Passistas Dancy, em novembro de 2015. O encontro entre dançarinos clássicos e os da dança urbana foi promovido pelo ator e professor Gil Amâncio. Também se espalham os locais na cidade em que são promovidas as batalhas do passinho. A Disputa Nervosa, na Vila Novo São Lucas, e a Batalha da Pedreira, na Pedreira Prado Lopes, são dois exemplos.

Diante do interesse dos jovens, o rapper Kdu dos Anjos realiza oficina no Lá da Favelinha, no Aglomerado da Serra, todos os sábados à tarde. Do trabalho realizado, surgiu o grupo Passistas Dancy, com dançarinos do aglomerado que se profissionalizaram. O grupo se apresentou em vários espaços da cidade, como o Festival Internacional de Teatro (FIT), no Palácio das Artes, e passaram a ser patrocinados pela loja Farm.

Parte do projeto Lá da Favelinha, os meninos têm consciência que além da habilidade técnica para execução dos movimentos, o passinho contribui para a quebra de preconceitos. É o que conta Jenniffer. A jovem lembra que, quando sobe ao palco, muita gente espera que ela, por ser mulher, rebole. Mas não é assim que acontece. “Ela sobe no palco e arrebenta no passinho”, elogia o rapper Kdu dos Anjos,

E não pense que há qualquer problema em rebolar. “Todos nós rebolamos”, garante Pedro Henrique. A questão é que quando esperam que os meninos mandem ver no passinho, eles vão lá e soltam o quadril sem qualquer inibição. “O homem rebola e mulher manda vê nos movimentos. É inesperado. Por isso que é foda”, define Johnathan. Nesse sentido, o movimento do passinho aponta para uma mudança de comportamento. 

 

TRÊS PERGUNTAS PARA

Guto Borges

Historiador, músico e um dos organizadores do Duela BH

 

Como surgiu o Duela BH?
Surgiu há três anos. A gente queria fazer algo relacionado ao funk. Estávamos muito próximos dos MCs, principalmente os do funk consciente. Queríamos fazer uma batalha regular. Tinha muita gente dançando e postando os vídeos na internet. Os meninos tentavam fazer encontros. Uma vez tentaram fazer no Parque Municipal, mas os guardas barraram. Faziam os encontros nos estacionamentos de shoppings. Então, propusemos  fazer uma batalha de passinhos na Região Central. Não sabíamos como seria. O primeiro Duela foi em frente ao Sesc Palladium. Depois passamos a fazer na Virada Cultural. A filmagem do primeiro Duela BH tem 6 milhões de visualizações.

Quais são as três categorias?
A montagem é algo próximo ao que faz o Bonde das Maravilhas. É um gênero que engloba mulheres e homens. O passinho foda, que exige algo mais atlético e que tem os passos básicos do estilo. Exige muito vigor físico. E o passinho do romano, que são movimentos mais teatrais.

A realização de eventos como o Duela BH reduziu o preconceito em relação ao passinho?

Os meninos e meninas ainda têm dificuldade. Por outro lado, quando surgem os grupos, veem uma possibilidade de carreira. Também é bom destacar a questão da autoestima, da vaidade, algo muito forte no movimento. A turma super se preocupa com os cortes do cabelo. Se o hip hop tem como alguns dos elementos a dança, a música e o grafite. No funk, é a música, a dança e o corte de cabelo. 

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