Grace Passô faz em BH leitura de texto que estreia essa semana no Festival de Curitiba

'Vaga carne' conta a história surreal de uma voz errante, capaz de invadir qualquer matéria sólida, líquida ou gasosa

por Luiz Fernando Motta 29/03/2016 08:35

“Se não fossem os negros falando sobre o racismo, os homossexuais falando sobre a violência cotidiana que sofrem e as mulheres clamando por outro lugar na sociedade, quem falaria por eles?”, questiona a atriz, diretora e dramaturga Grace Passô.


A necessidade de dar voz às mobilizações sociais em seus diferentes setores e de reverberar a ideia de que identidades são múltiplas serve como motor para os trabalhos da mineira, que participa hoje do projeto Palco Biblioteca, do Sesc Palladium. A dramaturga foi convidada para ser uma das vozes do projeto, que neste mês de março traz a temática Mulher, Arte e Feminismo.

Lucas Ávila/Divulgação
Grace Passô conta que a peça sofre muitas mudanças a partir do encontro com o público (foto: Lucas Ávila/Divulgação)

A artista vai falar com o público sobre sua carreira e seu processo criativo. Logo após a conversa, fará a leitura dramatúrgica do texto Vaga carne, peça que será encenada pela primeira vez na quinta-feira, na programação do Festival de Curitiba. “Foi o interesse e a manifestação do público durante as leituras públicas deste texto que me fizeram ter o desejo de encená-lo”, conta Grace, que já levou essa experiência para plateias do Rio de Janeiro e Salvador.

Além disso, as leituras, discussões e, principalmente, o contexto social e político proporcionam constantes mudanças aos trabalhos da mineira. “É impossível que qualquer obra de arte não leve em conta o momento, como todo o processo pelo qual o Brasil passa. Como artista, a realidade é o grande assunto. Os textos que escrevo sempre passam por modificações até muito próximo da estreia e até durante as temporadas”, relata.

Vaga carne é um texto surrealista e conta a história de uma voz errante, capaz de invadir qualquer matéria sólida, líquida ou gasosa. Pela primeira vez, essa voz resolve invadir o corpo de uma mulher e, a partir dessa experiência, traça uma jornada de autorreconhecimento. “Narra como as coisas são por dentro. Trato do ser humano em suas contradições, desejos, além de seu lugar público e privado. É a apreensão poética do significado que nos move por dentro”, explica Passô.

Sobre a peça, que já tem encenações agendadas para o Rio de Janeiro e São Paulo, ela diz que não se trata de um monólogo, mas, sim, de um solo. “Quem seria essa mulher? O que ela estaria fazendo ali? Na verdade, subentende-se que a mulher é a própria atriz que se coloca diante de um público. Não há história ficcional que se sobreponha à minha presença”, analisa a atriz.

O texto não é direto e não usa palavras como “feminismo” e “negritude”, mas, segundo a atriz, essas questões estão refletidas no trabalho, sobretudo com a presença dela. “Enquanto mulher, negra, artista brasileira, revelo minha identidade perante o público, mesmo que não existam palavras de referência direta a isso”, diz a mineira.
Segundo ela, a voz que invade é uma metáfora de nosso tempo. “Refletimos sobre como somos atravessados pelas vozes que perpassam nossa vida. É preciso reconhecer e respeitar todas as identidades”, afirma.

Na avaliação da atriz, a sociedade brasileira está fundamentada em um testamento racista e machista, o que diminui a plenitude da existência. “Assumir sua identidade publicamente é uma necessidade enorme e urgente. Nossos modelos mais tradicionais já ruíram. Estamos num processo de construção de identidade”, avalia.

PULSANTE
A dramaturga foi uma das criadoras do Espanca, em 2004, na capital mineira, mas deixou o grupo há cerca de três anos. Grace Passô conta que nunca deixou de ser moradora de Belo Horizonte. “As pessoas acham que  moro fora, mas, na verdade, nunca saí de BH. Realmente, transito muito pelo Brasil, faço temporadas fora e parcerias com grupos e artistas de diferentes locais, mas minha casa é aqui, no Bairro Santo Antônio”, conta.

Com o Espanca, Grace ganhou prêmios nacionais como o Shell, de melhor dramaturga, e o da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) de melhor texto teatral, ambos com o espetáculo Por Elise.


No entanto, o sucesso não é necessariamente fator para deixar a cidade e a vontade de circular não é exclusividade dos artistas de Belo Horizonte. “Vejo amigos de São Paulo e do Rio de Janeiro que querem experimentar outras cidades. A aproximação que as redes sociais nos trazem suscita isso. No meu caso, o desejo de sair de BH é do mesmo tamanho de ficar para acompanhar a cidade em transformação”, diz a artista.

Segundo ela, a capital mineira tem vivido uma efervescência cultural muito grande. “É uma cidade pulsante, de multiplicidades. Temos projetos plurais, não só na juventude, mas de mestres da arte. As coisas ocorrem na periferia ou no Centro. É cada vez mais recorrente estar em eventos completamente diferentes e interessantes, que amadurecem minha forma de ver o mundo”, diz Passô.

A dramaturga diz que a noção da arte enquanto política vem aparecendo de forma cada vez mais potente. “BH está no centro do vulcão dos acontecimentos.


A cidade que vive essa consciência de uma arte que é política tem plateias vivas. É sempre impossível generalizar, mas acho que temos uma plateia muito ativa.” Grace Passô fala ainda sobre o que espera do público que vai acompanhar o evento desta noite no Sesc Palladium. “Espero a plateia como espero em qualquer espetáculo: sobretudo viva”, conclui.

Vaga carne

Leitura de texto teatral por Grace Passô. Hoje, às 20h, no projeto Palco biblioteca do Sesc Palladium, no Acervo Artístico e Literário (Rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro). Entrada franca. Classificação: 10 anos

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