Exposição em BH revela aspectos mais dramáticos e intensos de Iberê Camargo

Com trabalhos de diversas fases, mostra 'Um trágico nos trópicos' segue até 28 de março no Centro Cultural Banco do Brasil

por Walter Sebastião 14/02/2016 10:00

Nos anos 1990, o pintor Iberê Camargo (1914-1994), artista então já com longa e respeitada carreira associada à abstração informal, causou sensação ao trazer a público um conjunto de grandes pinturas figurativas com personagens extremamente dramáticos. O título da série (Tudo é falso e inútil) acentuava uma visão que não era estranha ao artista, ainda que pouco nítida então – a de que o mundo e ser humano são carne, amorfa, em luta para dar sentido à existência. Batalha, para ele, e considerando o título das pinturas, condenada ao fracasso.

 

Trabalhos da série Tudo é falso e inútil abrem a mostra Um trágico nos trópicos, com curadoria de Luiz Camilo Osório, que está sendo apresentada no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB-BH) até 28 de março. Traz mais de uma centena de trabalhos do artista: pinturas, gravuras e desenhos.

Reproducao livro: Ibere camargo, vortice ll 1973
(foto: Reproducao livro: Ibere camargo, vortice ll 1973)
É exposição repleta de preciosidades, entre pinturas e gravuras, que revelam artista com formação sólida. Ao longo de quatro décadas, trilhou percurso da figura à abstração e, dessa, novamente à figura. Não se trata de retrospectiva, mas de recorte que apresenta o que são considerados os fundamentos da poética do artista.

 

O ponto de partida são pinturas cujo motivo são prosaicos carretéis que o artista recria, continuamente, com o encanto de brincar com o objeto singular. Obras, ainda, que fundam investigação plástica movida por interesse em massas (pictóricas e gráficas) robustas, de tons baixos ou rebaixados. Há outras que vão levar, na metade dos anos 1960, à busca de tensão ou movimento (na palavra do artista) nas telas ou à dissolução de formas, limites, estruturas, narrativas etc.

Fundação iberê camargo/catálogo/reprodução
(foto: Fundação iberê camargo/catálogo/reprodução)
A partir da segunda metade dos anos 1970, sua visualidade, já tornada linguagem, é meio  para dar corpo a obras que pontuam desde explorações estritamente plásticas até evocações biográficas. Nesta fase, são recorrentes as recriações de objetos e figuras humanas. Na mostra se veem trabalhos de linguagem semelhante, mas que revelam enfoques distintos.

 

Pode-se notar o puro prazer com o fazer pintura (por si), a elegância gráfica e a afirmação explícita do gosto pelo lúdico e da autonomia da criação artística. Esses dois elementos se revezam, convivem e, às vezes, entram em atrito, com gestualidade rude, imagens grotescas, desconstrução e reconstrução a partir de resíduos. Sugerem considerações irônicas, catárticas (mas também, em alguns momentos, meditada) sobre o “peso” da vida e do mundo.

Apesar da palavra trágico no título da exposição, a curadoria de Luiz Camilo Osório modula, sem negar, o que é correto: o elemento dramático presente na obra do artista. Iberê Camargo, como o compositor Lupicínio Rodrigues (1914-1974), é exagerado. Esse é o charme deles. Mas o drama que eles elaboram não leva a clichês sentimentais.

 

Tanto o pintor como o compositor, por incrível que pareça, buscam a luz. E vão ao inferno, como diz a letra da canção Esses moços, em busca dela. Na busca de esclarecimento, o drama surge pelo fato de só encontrarem sombras (e raras faíscas de cores em meio à escuridão), opacidades, finitude das coisas. E não há como deixar de registrar a grandeza e coragem desses autores (e outros como Farnese de Andrade ou Nélson Rodrigues) de nos devolver imagens perturbadoras da nossa condição humana.

Reproducao livro: Ibere camargo, forma rompida 1963
(foto: Reproducao livro: Ibere camargo, forma rompida 1963)
O que está na obra de Iberê Camargo é um discurso eminentemente plástico e gráfico, desenvolvido por artista que domina os ofícios que exerce, por mais que as obras pareçam improvisadas. E este último aspecto joga papel importante no impacto que as obras provocam. Evidência desse tema é, por exemplo, a ótima distribuição dos elementos sobre a tela, uma fatura “anárquica”, mas manipulada de forma calculada. E não por acaso as imagens evidenciam forte sensação de unidade. A perícia artística está presente na desenvoltura de Iberê Camargo com trabalho sobre grandes e pequenos formatos, inclusive na obra gráfica, apresentada com muitos desenhos e esboços.

A explicitude dos aspectos visuais não abole temas “sociológicos”. Como o indivíduo que – afundado em interiores e habitando mundo sem horizonte – é transformado em categoria genérica de experiência. Ou a detalhada e minuciosa consideração sobre a carnalidade dos personagens (mas também do mundo e das coisas), acuadas por violências, desejos, memórias. São demasiados fardos para corpos tão frágeis, seja o humano, o da pintura ou o da folha de papel.

 

Diante das obras de Iberê Camargo, especulativamente, fica a sensação geral de que tudo remete a um mundo tomado de névoa cinzenta. Névoa essa que a tudo devora, corroendo formas, limites, estruturas, valores etc. Por temperamento, ele se rebela contra essa situação. Como um Quixote solitário e errante, armado com pincel, espátulas e tintas.

A presença incontornável do feio, do bizarro, do desconfortável é extremada ao final da vida do artista. Esses trabalhos remetem à decisão de contestar (e, em especial, não reduzir) as possibilidades da pintura à estética da beleza e da habilidade que se tornaram paradigma da arte (e mais ainda da pintura). Pode-se ver Iberê Camargo pintando em vídeo que está na primeira sala da mostra. O filme mostra o artista em sucessivas investidas contra a tela, sujeitas a acertos e erros. São tantas que o “resultado” final é apenas um momento, o “possível” de um processo que poderia se prolongar infinitamente. Dilema que o vídeo registra ao acrescentar, no término do filme, a palavra “sem” à palavra “fim”.

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