Coletânea traz narrativas de Charles Bukowski ilustradas por Robert Crumb

'Traz teu amor pra mim' chega ao Brasil e fala sobre crises social e política

por Severino Francisco 04/01/2016 16:18
WMF Martins Fontes/Reprodução
(foto: WMF Martins Fontes/Reprodução)
As narrativas de Charles Bukowski parecem ter sido escritas por Robert Crumb; e os desenhos de Robert Crumb poderiam ter sido traçados por Bukowski, tamanha é a afinidade de estilo entre os dois expoentes do underground norte-americano. Nada mais natural Crumb ilustrar as histórias de Bukowski, povoadas por uma galeria de personagens angustiados, nervosos, histéricos, desgrenhados e desbocados. Esse encontro precioso ocorre na coletânea Traz teu amor pra mim e outros contos (Coleção Raposa Vermelha, Editora Martins Fontes).

Ambos nunca esconderam a admiração de um pelo outro. Crumb declarou sobre Bukowski: “Para mim, ele diz as coisas como devem ser ditas. Creio que para ser artista ou escritor no mundo moderno é preciso uma forte dose de alienação. Se o sujeito é muito equilibrado, não tem nada interessante a dizer”. E Bukowski devolveu: “Entre as pessoas que desenham existe energia e brilho. Uma das pessoas mais verdadeiras que conheci. Seria uma honra mágica que ilustrasse alguns de meus personagens barulhentos”.

A versão brasileira chega em sintonia com o momento de crise social e política que assola o país. Os contos versam sobre personagens desesperados, mergulhados em uma era de recessão econômica, fragilizados pela precariedade do trabalho, refugiados no álcool e no sexo, acuados por circunstâncias cerceadoras.
Os personagens de Bukowski são perdedores radicais em uma sociedade que cultiva, obsessivamente, a vitória e os vencedores; movem-se em uma atmosfera sufocante, são exasperados e fazem muito barulho. Crumb chegou a ser comparado a Rabelais e a Swift, a Brueghel e a Goya. Mas a comparação vale também para Bukowski. Em poucos parágrafos, ele delineia os personagens e a linha narrativa, com traços fortes, dramáticos, nervosos e de alta voltagem.

Bukowski tem uma visão muito pouco otimista da humanidade. Contudo, o humanismo se revela, paradoxalmente, no limite do patético. É o que vemos em Traz teu amor para mim, o conto que intitula a coletânea, em que narra a relação tensa entre Harry, um homem obcecado pelo sexo, e Glória, a sua mulher, internada para curar da dependência do álcool. Em meio à crueza, à violência e à agressividade dos diálogos, ela deixa escapar o que gostaria de receber de presente: “Estarei aqui perto só por dois dias, Glória — disse Harry com suavidade. “Trago qualquer coisa que você quiser”. “Traz teu amor para mim, então, ela gritou. “Por que c... você não traz teu amor?”

Em Não tem negócio, o que está em jogo é a sobrevivência Manny Hyman, um ator de comédia em decadência, ameaçado de perder o emprego pela falta de público numa época de recessão econômica: “Não tem ninguém lá fora, Manny. Você não atrai mais público. Seu show é tão chato que daria pra enfiá-lo debaixo da porta”. “Mas daria pra enfiá-lo debaixo de uma porta corrediça?” “Aqui temos uma porta giratória, Manny. Ela gira pra dentro e, se não a seguramos no giro seguinte, ela cospe a gente pro olho da rua”. E, para fechar, Manny ainda se mete em terríveis confusões com os clientes, que culminam em um desfecho tragicômico.

No terceiro e último conto da coletânea, Bop bop contra aquela cortina, a recessão é vista sob a ótica das evocações de um adolescente, perdido entre a obsessão sexual pelas atrizes de streap tease e a violência gratuita deflagrada pela falta de opções de lazer. Transcorridas em ambientes nauseabundos, as narrativas de Bukowski só não são mais opressivas pelo toque de humor grotesco, que alivia a tensão e imprime um toque de leveza em um território de experiências pesadas. O humor é o único sinal de redenção no mundo de Bukowski. Só ele salva os personagens e os leitores.

É magnífica a maneira como a linha do texto de Bukowski e a do traço de Crumb se confundem e as figuras grotescas saltam da palavra para o plano das imagens em plena sintonia estética. Os personagens de Bukowski já parecem figuras das histórias em quadrinhos, com o gestual exagerado a desfechar, com todas as letras, palavrões que, nas bandas desenhadas, apareceriam sob os signos de lagartixas, cobras, marimbondos e outros bichos. Mesmo quando falam de temas recessivos, o leitor nunca sairá deprimido ao virar a última página. Eles são viscerais, vigorosos, elétricos, inflamados e inflamáveis. Bukowski e Crumb fazem heavy metal no papel.

Trecho
“Quando a gente brigava, podia brigar por horas sem que nossos pais viessem nos salvar. Acho que era porque fingíamos ser tão durões e nunca pedíamos por clemência, então esperavam que pedíssemos. Mas odiávamos nossos pais e por isto não pedíamos, e como os odiávamos ele também nos odiavam, e saíam no alpendre e nos davam uma olhada casual enquanto a gente estava no meio de uma terrível briga sem fim. Eles apenas bocejavam, pegando uma filipeta de propaganda qualquer, e voltavam para dentro.

Eu brigava com um sujeito que depois chegou a um posto avançado na Marinha dos Estados Unidos. Certa vez nós brigamos das oito e trinta da manhã até depois de o sol se pôr. Ninguém nos separou, ainda que estivéssemos bem à vista no gramado da frente, debaixo de dois pimenteiros enormes lotados de pardais cagando sobre nossas cabeças durante todo o dia. Desistimos em comum acordo — não sei direito como isto funciona, há que se experimentar para compreender, mas depois que duas pessoas batem uma na outra durante oito ou nove horas um estranho tipo de fraternidade aparece.”

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