Premiado quadrinista Frederik Peeters faz relato emocionante em autobiografia balanceada

Em 'Pílulas azuis', artista suíço expõe angústias, dúvidas e narra uma bela história de amor. Obra ganha epílogo treze anos depois do lançamento

por Valf 08/08/2015 07:00

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Página com traços livres de 'Pílulas azuis'. História mostra a relação de um casal que enfrenta uma doença (foto: reprodução)
Escrever em vários estilos é um talento raro. Fazer isso bem, com o reconhecimento traduzido em importantes premiações, é um fato notável. A carreira do suíço Frederik Peeters e suas incursões por gêneros diversos, sempre com sucesso, é assim. Desenhando com maestria trabalhos distintos, desde ficções científicas a quadrinhos policiais, obras estas premiadas nos maiores salões de quadrinhos da Europa, tem em uma graphic novel autobiográfica sua HQ mais aclamada. Em 'Pílulas azuis', Peeters nos conta sobre seu relacionamento com Cati. Dono de um vasto repertório narrativo, utiliza a linguagem das histórias em quadrinhos para acompanhar a trajetória do casal, conjugada a enquadramentos quase cinematográficos muito bem escolhidos e seu corajoso traço solto, sem rascunhos e direto na arte final, opção mais que acertada.

Conta a estória de um casal. Eles se conhecem, conversam durante festas e encontros com amigos, dividem suas afinidades e, em um caminho natural, acabam se apaixonando. Uma estória de amor que poderia ser como muitas outras. Porém, como em um folhetim, um vilão entra em cena para mudar o rumo da narrativa. O antagonista, no caso, não é de uma família rival ou tampouco rico pretendente. É na forma de um vírus que a reviravolta ocorre. Cati, a moça da estória, é soropositiva.

A beleza da obra de Peeters reside em um trabalho balanceado. É muito do que se escreve e também de como se escreve. A construção do enredo pode até ser simples. Sua realização, porém, não. Em seu texto, as divagações do autor sobre amor, felicidade, vida, medo e morte elaboram uma discussão sobre seus valores intrínsecos e, mais do que isso, mostram como esses valores são relativos. Como pode ser visto no capítulo em que Cati conta que, tanto ela quanto seu filho de 4 anos, são portadores do HIV.

Na sequência de cinco quadrinhos começamos vendo, em primeiro plano, o quadrinista e seu olhar perdido. Momento dramático congelado que parece perdurar bem mais que um simples instante. Em contraponto, um close nos olhos de Cati, no aguardo de alguma reação, permanece da mesma forma, como em um período suspenso. Esse jogo entre ações correlatas e noções de tempo distorcidas, apesar de simples e serem contados em apenas dois quadrinhos, faz com que a cena ganhe em dimensão e seja amplificada.

Voltamos então para Peeters, agora mais distante no enquadramento. Cercado por áreas em branco, o limite impreciso do quadrinho serve apenas de base para que os sentimentos, agora traduzidos na forma de palavras escritas, aflorem e transbordem ao redor do personagem. Novamente, porém de maneira distinta, a noção dramática do tempo é testada. Dessa forma, no impacto inicial da descoberta, em meio ao espaço infinito de apenas um segundo, Peeters experimenta um turbilhão de emoções e contradições de sentimentos. E que culmina na certeza de uma forte ligação com Cati.

Leveza
Pode não ter sido exatamente dessa forma que tenha ocorrido. Pode ter sido um recorte narrativo do autor, mas que evidencia o mais importante. O real e apenas necessário peso das coisas. A partir desse ponto, a convivência com a doença passa a ser indissociável. Mas, como nos mostra Peeters, afasta-se do fatalismo de um destino cruel. A vida pode e segue adiante. Claro, não sem medos, dúvidas ou mesmo corriqueiros problemas. Simplesmente segue. Conviver com a doença, para o bem ou para o mal, é conviver com tudo que a cerca. Interações pessoais, sociais, familiares. Uma engrenagem dinâmica. E o que vemos a seguir é a construção sólida de uma relação, com todo o aprendizado necessário para seu crescimento.

Humor
No primeiro capítulo, um médico os chama de “casal discordante”. Pensando em se tratar da definição do verbete encontrada no dicionário: que não combina, que falta harmonia, e não o jargão médico para o casal no qual um dos parceiros é soropositivo e o outro não, Peeters, ofendido, pragueja. Afrontar o próprio ridículo é uma forma bem-humorada encontrada pelo autor para encarar e mostrar que a falta de conhecimento sobre a doença pode ser uma via de mão dupla, em que até mesmo quem convive com o problema não está livre de equívocos. E o autor segue em seus questionamentos, em meio a sequências surreais e metafóricas, como a de um rinoceronte no consultório médico, conversas fiadas sobre predileções de camisinhas ou seu incrível diálogo filosófico com um mamute sobre os vários sentidos da vida.

Treze anos depois de originalmente lançada, 'Pílulas azuis' ganhou um epílogo. Oito páginas finais que preenchem a lacuna de mais de uma década e respondem às perguntas que, com certeza, ficaram no ar. Instantâneos de momentos cotidianos da família, retratos do que veio a ocorrer nesse período, são as ilustrações da parte interna das capas. Spoilers sem suspense ou drama. Sem conto de fadas. Sem heróis. Apenas um casal que se conheceu, se apaixonou, formou família e confrontou o que, por necessidade, deveria ser enfrentado. Peeters afasta o peso, mostra como a relação com a doença avançou e constrói uma bela estória de amor. Sim, tudo deu certo para eles. E a vida simplesmente seguiu.

'PÍLULAS AZUIS'
- De Frederik Peeters

Tradução de Fernando Scheibe
Editora Nemo, 208 páginas, R$ 39,90

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