Fundação Municipal premia lendas vivas da cultura belo-horizontina

Dalila Senra Fabrini, José Luiz Lourenço e Isabel Casimira das Dores Gasparini foram escolhidos a partir de indicação de suas comunidades

por Ana Clara Brant 26/11/2014 09:14

INFORMAÇÕES PESSOAIS:

RECOMENDAR PARA:

INFORMAÇÕES PESSOAIS:

CORREÇÃO:

Preencha todos os campos.
Beto Novaes/EM/D.A Press
Dalila Fabrini, de 96 anos, exerce o ofício de benzedeira hámais de seis décadas em Belo Horizonte (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
Dalila Senra Fabrini, de 96 anos, é uma das benzedeiras mais antigas em atividade de Belo Horizonte. José Luiz Lourenço, o Mestre Conga, de 87, é um baluarte do samba na capital. E Isabel Casimira das Dores Gasparini, de 76 anos, é a Rainha Conga de Minas Gerais. Os três são considerados patrimônios vivos de BH, cidadãos que se destacam por deter saberes e fazeres essenciais para a manutenção das tradições culturais da cidade. Eles foram os agraciados com o primeiro Prêmio Mestres da Cultura Popular, promovido pela Fundação Municipal de Cultura, que será entregue em 13 de dezembro. “Cultura popular é uma forma de expressão que normalmente não é passada numa escola ou dentro dos padrões normais, mas de geração para geração, por meio da oralidade, marcando a identidade de uma determinada comunidade. É um saber ligado às nossas tradições e geralmente não está na grande mídia. Se a gente não registrar e não incentivar, vamos perder esse tipo de mestre”, alerta Françoise Jean, historiadora da Diretoria de Patrimônio Cultural da FMC.

Assista ao vídeo comos mestres da cultura popular de BH:
 


Nobreza do congado

Uma das principais representantes do congado mineiro, dona Isabel Casimira das Dores Gasparino, de 76 anos, é Rainha Conga e vice-presidente da Guarda de Moçambique e Congo Treze de Maio Nossa Senhora do Rosário e Rainha Conga do Estado de Minas Gerais. Sua mãe, Maria Cassimira das Dores, e seu irmão, Ephigênio Casemiro, foram os fundadores da Guarda, em 1944. Maria foi também a primeira Rainha Conga de Minas. “Quando minha mãe morreu, em 1984, assumi a coroa. Ser rainha é um cargo que exige muita responsabilidade. A gente tem muita incumbência. Temos que olhar tudo ao nosso redor. Os uniformes de todos os cargos, como o capitão, o guarda coroa e o juiz de vara. Tem muita coisa dentro de um reinado. Quando meu irmão morreu, em 2006, a coisa ficou mais sobrecarregada ainda. Mas o prazer de levar isso adiante supera tudo. É uma missão”, ressalta.

A casa onde mora no Concórdia, Região Nordeste de BH, é a mesma em que nasceu e onde ocorrem os festejos da guarda, realizados em maio. Mas Isabel afirma que todo dia é especial em seu reino. “E a gente tem sempre que manter a fé em Nossa Senhora do Rosário e em todos os santos da corte celestial”, acrescenta. A rainha, que tem seis filhos, sete netos e três bisnetos, chegou a trabalhar como auxiliar de enfermagem na rede municipal de BH, e até na cantina da antiga sede do jornal Estado de Minas, na Rua Goiás, e tem gratas recordações daquele tempo.

“Tinha que dividir a vida aqui no congado com o meu trabalho para sobreviver e sustentar a família. Ainda tenho muitos amigos que fiz naqueles tempos do jornal”, conta ela, que planeja retomar os cursos de computação e de francês. “Cada vez mais vem gente de outros países nos conhecer e por isso quis aprender, para poder me comunicar com eles. Tenho que me atualizar, mas manter a tradição. Tanto que o lema da nossa guarda é: ‘Um povo que não preserva a sua história perde a sua identidade’”, conclui.

Beto Novaes/EM/D.A Press
Isabel Casimira das Dores Gasparino (e), a Rainha Conga e José Luiz Lourenço (d), o Mestre Conga (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
Sabedoria da alma


Nascida em Itabirito, Região Central do estado, com sete filhos, 14 netos, sete bisnetos e aguardando o primeiro tataraneto para 2015, dona Dalila benze diariamente em sua casa, com exceção dos domingos, das 9h às 11h e das 15h às 17h, no Bairro Santa Mônica, em Venda Nova. Começou meio por acaso, quando um dos filhos teve uma febre que não cessava. Dalila sempre observou a sogra, que era benzedeira, e passou a rezar incessantemente. O menino melhorou. A criança tinha apenas 2 anos e hoje é um senhor de quase 70. Os vizinhos se espantaram com o ocorrido e espalharam a notícia na região. Iniciava ali a fama de dona Dalila, que prefere fazer suas benzeções com a luz do dia, para queimar as energias, sempre com um terço a tiracolo.

Hoje, ela benze gente que mora do outro lado do mundo, famosos, jogadores de futebol e treinadores. “Principalmente os do meu time do coração, o América. As pessoas aqui do bairro vêm muito para desabafar”, comenta. Causos é que não faltam. Alguns impressionam até a própria dona Dalila. Uma vez, veio uma moça de Manaus com suspeita de câncer na garganta. Nenhum médico conseguia curá-la. Uma conhecida a trouxe a BH para fazer exames e a levou para benzer com dona Dalila. Assim que foi benzida, a manauara deu um espirro e expeliu um espinho de peixe. “No dia seguinte, os médicos aqui do Hospital das Clínicas disseram que ela não tinha câncer nenhum. O problema dela era um simples espinho de peixe e ainda mandaram os parabéns para mim”, recorda. “Benzer é um dom que Deus me deu. Tenho benzido gente demais nesses anos todos, especialmente crianças. Já são mais de 60 anos nisso. Sinto uma paz, uma luz que vem lá do céu. Quando a gente faz algo que gosta, se sente bem. Vou benzer até morrer”, diz.

Mesmo com as pernas fracas e na cadeira de rodas, Dalila Fabrini se sente muito bem e seu médico, que a visita regularmente, assegura que nunca viu alguém com a idade dela com saúde tão boa. “Ele aproveita e vem benzer comigo. O interessante é que já estou benzendo a terceira geração. Crianças que chegaram a ser desenganadas hoje trazem filhos e netos”, conta. Dona Dalila afirma que sua função é mais difícil que a dos próprios médicos. “Eles tratam do corpo e a gente trata da alma. O corpo fala o que sente, já a alma não. Nós é que temos que descobrir, daí a dificuldade”, observa com sabedoria.

Com samba no pé

O outro mestre da cultura popular é um senhor com memória prodigiosa, que não aparenta a idade que tem. O sambista José Luiz Lourenço, que em fevereiro completa 88 anos, saracoteia o dia todo. “Não paro mesmo. Participo de oficinas, faço compras, resolvo as coisas do dia a dia. Se a gente ficar em casa o tempo todo, adoece”, defende o marido de dona Nely, de 91 anos, pai de três filhos, avô de 10 netos e de um bisneto. Conhecido como Mestre Conga, pelo fato de ter feito parte de uma guarda de congo nos tempos de garoto, ele sempre foi encantado por música. Quando ainda morava em Ponte Nova, na Zona da Mata, onde nasceu, a família e os amigos sempre promoviam um batuque dentro de casa. “Meu pai tocava sanfona e isso também me influenciou”, recorda o mestre, que ano passado virou tema de documentário que leva seu nome.

Na juventude, começou a frequentar bailes e aprendeu a dançar samba, tango e bolero. Virou um verdadeiro pé de valsa. “Tomei tanto gosto que aquilo virou meu caminho. Saía do trabalho e, em vez de ir para a aula, ia para a gafieira. Foi nessa época que passei a ir para os blocos de carnaval e conheci o pessoal do samba. Ingressei nisso sem nenhuma pretensão, mas aí começou minha história”, lembra. A primeira vez que desfilou no carnaval de Belo Horizonte foi na bateria da extinta Escola de Samba Surpresa, em 1946. Pouco tempo depois, nascia na sala de sua casa, no Concórdia, Região Nordeste, uma das escolas mais tradicionais da cidade, a Inconfidência Mineira. “Fui presidente e fundador. Como a escola não está mais participando do carnaval, estou meio afastado também”, revela.

No entanto, isso não significa que Mestre Conga deixou de compor ou de cantar. Integrante da velha guarda do samba de BH, ele se apresenta quinzenalmente no Centro de Cultura da UFMG e em outros lugares, quando convidado. “Fiquei muito feliz com esse prêmio e esse reconhecimento, porque fui me dar conta que sempre fiz cultura sem saber que fazia. Desde os tempos de menino, quando ouvia música lá em casa, depois quando tocava caixa na guarda de congo e dançando nos bailes. Achava que cultura era uma coisa só erudita. Mas não é. Cultura é tudo e o prêmio veio me mostrar isso”, destaca.


Resgate merecido

A iniciativa de premiar os mestres da cultura popular foi uma demanda da própria comunidade, como lembra Françoise Jean, historiadora da Diretoria de Patrimônio Cultural da Fundação Municipal de Cultura. “É muito comum essas pessoas que mantêm a tradição nunca terem sido amparadas e chegarem ao fim da vida passando por dificuldades financeiras. Por isso, há a necessidade de mais atenção aos mestres, por meio de políticas públicas, editais e prêmios”, explica.

A ideia é que a premiação seja anual. Ao todo, 29 pessoas se inscreveram na primeira edição do prêmio. Entre as atividades registradas, estavam benzedeiras, cordelistas, bordadeiras, entalhadores, alfaiates, capoeristas e violeiros, entre outros. A premiação será feita em 13 de dezembro, às 10h, no Centro Cultural Lago do Nado. Cada um dos contemplados vai receber R$ 15 mil.

MAIS SOBRE E-MAIS