Cia. Carroça de Mamulengos vive nova fase com projeto de formação de artistas

Projeto em Rio Acima é vinculado ao Instituto Gandarela

por Carolina Braga 07/11/2014 10:03

INFORMAÇÕES PESSOAIS:

RECOMENDAR PARA:

INFORMAÇÕES PESSOAIS:

CORREÇÃO:

Preencha todos os campos.
Samuel Macedo/Divulgação
Grupo prepara uma série de atividades artísticas e ecológicas para a comunidade que vai se relacionar com o braço do Globe Theatre no Brasil (foto: Samuel Macedo/Divulgação)
Era um caminho pelo qual nunca haviam passado. Interior do Mato Grosso do Sul. Rodovia que liga Santo Antônio do Leverger a Campo Verde. Os artistas da Cia. Carroça de Mamulengos faziam mais uma vez aquilo a que estavam acostumados: pegar estrada para levar arte popular a todos os cantos do Brasil. Mas o dia 16 de maio de 2014 marcou para sempre a trajetória do grupo, criado em Brasília no fim da década de 1970 e que agora é novíssimo morador de Rio Acima, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Era noite. Chovia. Um veículo de passeio sai da pista no momento em que um caminhão vindo na direção contrária se choca contra a lateral de Brasilino, o colorido ônibus que carregava a trupe para cima e para baixo. Mais um acidente grave na temida BR-070. “Ficamos com o que temos de mais precioso: nossas vidas e nosso material de espetáculo. A única coisa que perdemos foi nosso ônibus, o anjo da guarda. Estava com a lataria intacta para segurar uma carreta”, conta Maria Gomide, produtora e integrante do grupo.

Feridos, mais na alma do que propriamente nos corpos, os oito atores-irmãos integrantes do elenco literalmente perderam o rumo. Com quatro montagens em repertório, agenda de apresentações regulares em vários estados, sem dizer na relevante trajetória como representantes da cultura popular brasileira, o Carroça de Mamulengos se viu imerso em questionamentos. Será que vale a pena continuar?

“O acidente nos trouxe muitas reflexões. Foi uma demonstração do quanto a vida e nossa profissão são frágeis. Não temos salário, plano de saúde ou aposentadoria e o ônibus não tinha seguro. Foi um choque e paramos para pensar”, conta. Pela primeira vez os irmãos se separaram. Enquanto os mais velhos se viram obrigados a encarar o vazio de uma escolha já feita, na cabeça dos mais novos o acidente na BR-070 gerou rupturas.

Foi nesse clima de instabilidade que Mauro Maya, idealizador e coordenador do Instituto Gandarela, em Rio Acima, apareceu com o convite: mudar de mala e cuia para Minas Gerais. Era uma proposta totalmente diferente para a trajetória do Carroça. Primeiro, porque teriam que fixar residência em uma cidade. Depois, porque seria a oportunidade de desenvolver um trabalho de arte e sustentabilidade a longo prazo, algo que até então parecia muito fora dos padrões mambembes da trupe.

“Um mês e meio depois do acidente conseguimos nos reunir e, ainda assustados e abalados, fechamos a proposta”, lembra Maria. “Somos um coletivo, vivemos juntos desde que nascemos e a vinda para Minas Gerais representa a continuidade de um sonho. Nos dá a possibilidade de pensar o indivíduo para fortalecer o coletivo”, avalia o também ator João Gomide. Para ele, a diferença é o planejamento a longo prazo. “Isso muda todo o nosso conceito. É a primeira vez que posso pensar a vida em seis, sete anos, estando aqui. Posso até pensar em fazer uma faculdade”, comemora João.
 
Samuel Macedo/Divulgação
Ônibus Brasilino: a vida da Carroça de Mamulengos, desde o fim dos anos 1970, é andar por este país (foto: Samuel Macedo/Divulgação)
Em busca de um sonho
 
Para entender a Cia. Carroça de Mamulengos a dica de Maria Gomide é buscar a memória dos arquétipos de companhias medievais, dos antigos saltimbancos. Uma referência é o filme A viagem do capitão Tornado (1990), do diretor italiano Ettore Scola. O grupo foi criado em 1977 por Carlos Gomide. Homem encantado por novas experiências, ele saiu do cerrado em direção ao Nordeste, em plena ditadura, com o objetivo de pesquisar uma forma vivencial de se fazer arte.

“Resolveu intuitivamente buscar no Brasil profundo uma memória cultural que intuía encontrar”, conta Maria Gomide. Durante dois anos, aprendeu a arte do mamulengo com o mestre brincante Antônio do Babau. Da Paraíba, radicou-se em Brasília, onde se casou com Schirley França e fez nascer a própria companhia. “O carroça é uma forma de viver diferente. É uma família muito numerosa e também é um grupo de teatro. Não sei dizer quem nasceu primeiro. É a mesma polêmica do ovo e da galinha”, brinca a primogênita. Depois dela são sete irmãos: Antônio, Francisco, João, os gêmeos Pedro e Mateus e as gêmeas Isabel e Luzia. São eles os atores do Carroça. A terceira geração da família, as netas Ana e Iara, também já se integraram.

Maria é a porta-voz dos ideais do pai. “É um sonho tão grande que ele ensinou a gente a sonhá-lo”, diz. À medida que os irmãos foram nascendo, conviveram com arte como algo visceral. Sem frequentar escolas formais, os Gomide desenvolveram habilidades na música, no teatro e bem novos foram para a cena. Seja o elenco, a dramaturgia, a direção, o figurino, a montagem, tudo o que for necessário para levantar um espetáculo do Carroça também é fruto do convívio doméstico.

Atualmente, a trupe mantém em repertório quatro espetáculos. Dois feitos com a mãe e os outros dois com o pai. O casal se separou há cerca de sete anos, o que não impediu que os filhos continuassem o trabalho. Na nova empreitada de Rio Acima, Carlos Gomide é quem chegou para se reencontrar com os herdeiros. “Não somos perfeitos e nem saímos de um conto de fadas. Temos todos os problemas que qualquer pessoa tem. Na família e no trabalho juntos. Acredito que o que nos une é o amor”, afirma Maria.
 
Novos mineiros A família Carroça de Mamulengos chegou há 45 dias e já começa a transformar o ambiente do Gandarela. No momento, os artistas se dividem em quatro casas alugadas em Rio Acima. Diariamente, mantêm agenda no lugar onde está sendo planejada a construção da réplica Globe Theatre no Brasil, o teatro elizabetano erguido por Shakespeare no século 16. A construção será em parceria com a instituição de Londres, a Sheakespeare Theater Association, responsável pela manutenção e, obviamente, valorização da memória do dramaturgo em todo o mundo. As obras propriamente ditas ainda não começaram. De momento, muita expectativa e um terreno enorme à espera de ocupação.

“Abraçamos o desafio de preparar o campo para as transformações que estão para chegar a Rio Acima. Preparar os artistas para ocuparem esse teatro”, afirma Maria. Como o método da trupe não tem nada a ver com a formalidade das salas de aula, a ideia é compartilhar vivências. “Estou o tempo inteiro colocando o meu sonho na ponta da minha língua. O processo passa por cativar para depois pensar a arte como uma forma de ver o mundo”, continua a criadora.

Maria Gomide ressalta que o objetivo não é formar novos músicos e atores, mas pessoas que consigam pensar o mundo com um viés artístico. Como faz muito pouco tempo que chegaram a Minas, as atividades ainda estão sendo afinadas. É certo que a atenção também estará voltada para causas ambientais, com a criação de viveiros, cultivo e distribuição de mudas de frutas. O fazer artístico vem junto.

“Somos uma companhia de teatro. Vivemos exclusivamente disso. Devemos e precisamos continuar com nossos espetáculos. Agora somos mineiros. A Cia. Carroça de Mamulengos é a nova companhia mineira de teatro”, entusiasma-se Maria.

Infâncias

A chegada do Carroça de Mamulengos a Rio Acima é marcada com a exposição Infância. A mostra ocupa todas as salas da sede do Instituto Gandarela. Malas que trazem álbuns de fotografia, brinquedos feitos por crianças, caixinhas cheias de sonoridades, entre outros elementos da vida pelo país. É uma viagem pelas infâncias de todas as partes do Brasil. O trabalho já passou por várias regiões e fica até o fim do ano em cartaz.

MAIS SOBRE E-MAIS