Preconceito já é passado, mas canhotos têm que "se virar" em um mundo pensado para destros

Quem utiliza o lado esquerdo precisa improvisar. Canhotos correspondem a apenas 10% da população mundial e, por isso, ainda sentem dificuldades em realizar tarefas simples do dia a dia, como abrir um enlatado

por Alessandra Alves 13/08/2014 10:00

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"Existe um processo especial de inverter o abridor" para abrir uma lata. "Eu consigo, mas é muito esquisito", explica Saulo Santos, canhoto, de 24 anos (foto: Reprodução/Facebook)
Beethoven, Jimi Hendrix e Paul McCartney. Goethe, Kafka, Nietzsche e Machado de Assis. Messi, Maradona, Tostão e Rivelino. A lista de canhotos famosos é extensa e engloba desde gênios da música e da literatura quanto os principais nomes do futebol e, também, outros esportes. Uma pesquisa recente feita na Australian National University (ANU) e publicada no jornal Neuropsychology demonstrou que pessoas canhotas pensam mais rápido. Mas, apesar disso, algumas tarefas simples do dia a dia, ainda podem ser consideradas difíceis para um mundo pensado em 90% da população que faz tudo com a mão direita. Usar uma tesoura, abrir uma porta ou um enlatado podem ser consideradas tarefas muito difíceis para essas pessoas, que têm um dia especial, celebrado neste 13 de agosto.

Alexandre Guerra Fabri, 43 anos, publicitário, lembra que na infância, uma das dificuldades que ele tinha era fazer os deveres em que a turma precisava usar tesouras para cortar papel. “Era um desastre! Eu me lembro de ter ouvido algumas gracinhas – piadas de crianças -, e acho que até hoje tenho alguma restrição pseudo-resolvida, porque sou horrível para fazer isso, mesmo usando tesouras de canhotos”, conta. O publicitário, que é canhoto na escrita, mas tem mais habilidade com o lado direito para a prática de esportes, por exemplo, acredita que essa ambigüidade foi influenciada com a criação tradicional. “Há 40 anos, ser canhoto não era bem visto por alguns, tanto na família quanto na primeira escola. Era tido como um desvio”, explica.

Azelinda Delmaschio, de 72 anos, prefere não lembrar como sofreu nos primeiros anos de escola, quando sua condição era vista como um erro e, por isso, foi obrigada a aprender a escrever com a mão direita. “Minha professora primária era minha madrinha e se achava no direito de bater na minha mão. Naquela época usar a mão esquerda era errado. A pessoa tinha que escrever com a mão direita e a esquerda era só ajudante”, relembra. Hoje, ela faz tudo com as duas mãos. Mas não esconde que tem mais facilidade com o lado esquerdo, tanto que a “unha da mão esquerda sempre estraga mais que a da mão direita”, conta, rindo.

A presidente da Sociedade Mineira de Neurologia, Dra. Rosamaria Guimarães, acredita que hoje, a discriminação em relação aos canhotos é um fato superado. “É uma bobagem falar ‘pega com a mão direita’. Não tem que falar isso. Se a pessoa tem a facilidade com a mão esquerda, ela deve ser deixada à vontade. Mas acho que, no geral, o preconceito é uma coisa superada no país”, afirma.

Assim como Azelinda, o avô do administrador Saulo Santos, 24 anos, também foi obrigado a escrever com a mão direita. “Na época, usar a mão esquerda era visto como coisa do diabo, ou algo assim”, diz. Hoje, Saulo, que também é canhoto, conta que, entre as maiores dificuldades enfrentadas no dia a dia, a principal delas é abrir latas. “Existe um processo especial de inverter o abridor. Eu consigo, mas é muito esquisito”, explica, acrescentando que para desenvolver a maioria das atividades ele foi obrigado a se adaptar. “Uso o mouse com a mão direita, por exemplo”.

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Azelinda aprendeu a escrever com a mão direita mesmo sendo canhota (foto: Reprodução/Facebook)

Ao contrário do que muita gente pensa, o canhotismo não tem a ver só com a escrita. Em 90% das pessoas, o lado dominante é o esquerdo, responsável por comandar o lado direito do corpo. Assim, a maioria das pessoas escreve com a mão direita, arremessa uma bola com o pé direito, cumprimenta com a mão direita... Já nos outros 10% da população, o hemisfério direito é o dominante. Por isso, elas têm mais habilidade com o lado esquerdo do corpo. Ou seja: assim como é automático para os destros pegar um copo com a mão direita, estender um braço, acenar, dirigir, escrever, pintar e jogar bola, para os canhotos, tudo é mais fácil de fazer com o lado esquerdo.

Essa diferença no cérebro de destros e canhotos é o que pode explicar a vantagem dos segundos em relação aos primeiros em algumas atividades, por exemplo. Segundo Guimarães, o hemisfério direito do cérebro está mais associado a manifestações artísticas. Assim, “canhotos tendem a ser mais criativos, com a veia cultural mais acentuada”, explica. Seria o caso de Leonardo da Vinci, Charles Chaplin e outros tantos artistas famosos canhotos. Mas, apesar de algumas pesquisas apontarem “dons especiais” em canhotos, a ciência ainda não deu provas definitivas de que os destros estão em desvantagem. A dúvida persiste: será que as contribuições dos canhotos foram geradas pelas características cerebrais ou pela história de adaptação da pessoa em um mundo de destros? Disso, ninguém parece ter certeza.

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Alexandre Fabri, 43 anos, é canhoto e torceu para que o filho, Petrus, também fosse (foto: Reprodução/Facebook)

Alexandre Fabri, no entanto, acredita na tese de que canhotos são mais criativos e por isso, torceu para que o filho Petrus puxasse seu gene. A condição é uma herança recessiva, mas nem sempre o filho de um pai canhoto será canhoto também. E foi exatamente o que aconteceu com ele. “Quando tive meu filho, fiquei na torcida para que ele fosse canhoto, diferente do que meus pais pensaram quando me viram iniciando as escritas, mas infelizmente, ele é destro”.

Lojas especializadas


No Brasil, ainda não existem lojas especializadas em objetos para canhotos, mas nos Estados Unidos, a Lefty’s, que possui unidades na Califórnia e na Florida, vende produtos especiais para quem usa a mão esquerda. Por lá é possível encontrar tesouras adaptadas, utensílios de cozinha, instrumentos musicais, relógios e até cadernos que abrem do lado esquerdo para o direito. A loja entrega no Brasil.

Até 1982, o Brasil tinha uma associação brasileira - a Abracan -, que defendia os direitos dos canhotos. Foi através dela que o governo de São Paulo, na época, governado por Paulo Maluf, criou a determinação de que ao menos 5% das carteiras nas escolas públicas fossem especiais para canhotos, isto é, com a mesinha de apoio no lado esquerdo. A associação acabou fechando por falta de recursos.

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