Escritora sul-africana Nadine Gordimer deixa legado de liberdade em suas obras

Ganhadora do Nobel de Literatura de 1991, romancista foi uma das maiores combatentes do regime do apartheid em seu país

por Estado de Minas 15/07/2014 08:39

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Berthold Stadler/AFP
Nadine Gordimer escreveu 30 livros, entre romances e ensaios, além de militar por causas libertárias na África do Sul (foto: Berthold Stadler/AFP)
“Não posso simplesmente maldizer o apartheid quando há injustiça humana em toda a parte”, disse, certa vez, a sul-africana Nadine Gordimer. A afirmação é um retrato exato da escritora que morreu domingo à noite, em casa, acompanhada dos filhos Hugo e Oriane. Ela tinha 90 anos e sofria de câncer no pâncreas. Por sua obra, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 1991. Seu maior inimigo, o regime de segregação racial de seu país, não obscureceu outra frentes de luta pela liberdade. Batalhou pela liberdade de expressão, esteve à frente de projetos para angariar recursos para vítimas da Aids, foi feminista e denunciou crimes ecológicos.

De acordo com um comunicado da família divulgado pelo escritório de advocacia Edward Nathan Sonnerbergs, Gordimer faleceu pacificamente enquanto dormia em sua residência em Johannesburgo. “Seu maior orgulho”, recordam os filhos no comunicado, “não foi apenas ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, mas também ter testemunhado (no julgamento), em 1986, ajudando a salvar a vida de 22 membros do Congresso Nacional Africano, todos acusados de traição”.

Nascida em 20 de novembro de 1923, Nadine Gordimer era filha de imigrantes judeus oriundos da Europa Oriental. Ela cresceu em um bairro rico da pequena cidade mineradora de Springs, ao leste de Johannesburgo. Sua mãe, convencida de que ela sofria de uma doença cardíaca, retirou-a da escola. Nadine Gordimer se engajou ativamente na luta contra o apartheid depois da prisão de um amigo próximo, em 1960. Ela tornou-se membro do Congresso Nacional Africano, então proibido, e ajudou militantes procurados pela polícia.

Em boa parte de seus mais de 30 livros, Nadine abordou a situação social e política da África do Sul. Ela ficou ficou mundialmente famosa com o romance A filha de Burger, de 1980. Seu primeiro romance, The living days, saiu em 1953. Parte de sua obra, tanto ensaios como romances, foi traduzida para o português, por várias editoras. Atualmente, seis de seus livros estão em catálogo, todos pela Companhia das Letras.

O grande mérito dos livros de Nadine Gordimer está na capacidade de aliar força moral com realização literária. Em seus romances, contos e ensaios, ela nunca foi panfletária. Além disso, o drama de seus personagens não era dirigido por sua opções políticas, mas se tornavam mais pungentes pela força das circunstâncias de seu país. Era o destino dos indivíduos que carregava todos os elementos do drama humano. Para a escritora, o papel da literatura era evidenciar a roda da história a partir de vidas individuais.

Em vários de seus romances, os personagens são homens e mulheres brancos, pertencentes à elite sul-africana, que se encontram inseridos numa trama em que a realidade supera todas defesas aparentemente funcionais, até mesmo a culpa. Num mundo marcado pela injustiça, não há como garantir o funcionamento das instituições, dos valores morais, nem mesmo das boas intenções. Seus personagens não se sentem culpados pelo que fizeram os antepassados, mas responsáveis por superar o horror que eles deixaram como herança. Não são histórias de redenção, mas de responsabilidade, com tudo de mais difícil que essa opção carrega. Trata-se sempre, para Nadine, de afirmar a humanidade do homem ou deixar-se perder no horror. Ela nunca capitula, mesma à custa de muito sofrimento, como o pai que precisa aceitar que seu filho amado é um assassino.

Mandela Nadine Gordimer foi amiga de Nelson Madela (1918-2013) e uma das principais vozes contra o apartheid. Em 2006, a escritora foi a escolhida para entregar a Mandela a distinção Embaixador da Consciência, atribuída pela Anistia Internacional. Na época, a agência de notícias France Press reproduziu declarações de Nadine durante a cerimônia. “Mandela foi e é um revolucionário no melhor sentido da palavra”, afirmou sobre o ex-presidente da África do Sul. Ela destacou a independência intelectual de Mandela e sua aversão ao “politicamente correto”.

Ela continuou a escrever após o democratização do país, em 1994, sem hesitar, apesar de sua idade avançada, em apontar as falhas dos sucessores de Nelson Mandela no novo regime. Mas se recusou a acrescentar sua voz ao coro de críticas sobre a violência da sociedade – ao contrário de outros escritores brancos de seu país, como André Brink e J.M. Coetzee –, mesmo depois de ser vítima de um assalto, em 2006. “Um dos assaltantes me pegou pelo braço. Ele tinha um braço forte, firme e pensei: estas mãos não têm nada melhor para fazer do que roubar uma senhora de idade? Que confusão para estes quatro jovens homens, eles deveriam ter um emprego”, comentou na época ao jornal The Guardian.

Nadine organizou recentemente a coletânea de contos Contando histórias, que teve seus direitos revertidos para a Treatment Action Campaign, uma campanha para tratamento e prevenção da Aids. Em razão de seu prestígio, colaboraram alguns dos principais nomes da literatura contemporânea, entre eles seus colegas de Nobel José Saramago, Gabriel García Márquez, Günter Grass e Kenzaburo Oe. Nadine esteve no Brasil na 5ª edição de Festa Literária de Paraty, a Flip, em 2007, onde debateu política e literatura com o escritor israelense Amós Oz.

A escritora teve um compromisso sempre muito profundo com a realidade da África do Sul. Tinha adversários políticos e inimigos poderosos. Mas, como romancista, Nadine tinha uma tarefa ainda mais árdua: dar dimensão de universalidade a partir da vida das pessoas comuns, fossem elas vítimas ou algozes do regime racista de seu país. Por isso, o fim do apartheid não significou a superação de todos os problemas contra os quais militou por toda a vida, mas apenas o reordenamento das mesmas forças desumanizantes, sempre prontas a mostrar suas garras.

Criar uma literatura ao mesmo tempo universal e atemporal, partindo da dura realidade de seu país e de sua época, foi uma das maiores realizações da Nadine Gordimer. Quanto mais sul-africana, mais humana; quanto mais universal, melhor expressou a particularidade de sua terra e de sua gente.


Repercussão

É um nome da literatura universal e uma escritora branca africana que tem importância muito grande não só para o Prêmio Nobel, mas também pela postura que adotou de respeito absoluto pela herança negra encontrada pelos europeus. Também pela postura de oposição que ela sempre teve ao racismo e ao seu principal produto, o apartheid. Gordimer foi uma voz que apoiou o tempo inteiro o processo de Mandela. Ela viveu um momento fantástico e fez parte da história. E sempre com cuidado muito grande de não construir uma literatura panfletária e datada. São histórias que ficarão para o futuro.
Eduardo Assis Duarte
ensaísta, professor e pesquisador de literatura


Ela esteve envolvida com o movimento antiapartheid. O livro Burger’s daughter me impressionou pela dimensão política, incluindo a questão da culpa histórica. Pessoalmente, não acredito que herdamos os pecados dos nossos pais. Não temos que repartir a culpa pelos erros dos mais velhos, mas corrigi-los. Ela fez isso, e outro escritor sul-africano, J. M. Coetzee, também, ambos como opositores do regime.
Thomas Burns,
professor da Faculdade de Letras da UFMG


A escritora Nadine Gordimer foi uma mulher que, entre as tantas coisas que fez, sempre lutou contra o apartheid na África do Sul. Era feminista, amiga de Nelson Mandela, nunca fez concessões na sua literatura, nem abriu mão das suas convicções, nem das coisas nas quais acreditava. Fez uma literatura engajada, sem ser de um realismo ingênuo. Li alguns livros dela com muito interesse, entre eles Tempos de reflexão 1, de 1954 a 1989,  e Tempos de reflexão 2, de 1980 a 2008, publicados no Brasil pela Globo Livros.  
Noemi Jaffe,
escritora e crítica literária


• Nadine em português

Livros da escritora sul-africana em catálogo no Brasil

» A arma da casa
Harald e Claudia estão vendo televisão quando recebem a notícia de que seu filho, Duncan, está detido por ter cometido um crime. Para eles, a notícia é inacreditável. Aos poucos, porém, são obrigados a aceitar o que ninguém contesta: seu filho é um assassino. O drama familiar com momentos de thriller de tribunal se torna mais trágico por ser ambientado na África do Sul pós-apartheid, um país que tenta se livrar dos fantasmas do passado.

» Beethoven era 1/16 negro
Os textos reunidos no livro retratam a África do Sul em nova configuração social. Filiação, cor da pele e origem étnica já não são tão determinantes, mas continuam informando as identidades de indivíduos que agora têm a chance de repensar o passado. A nova configuração política do país faz negros, mulatos, imigrantes e mulheres assumirem papéis proeminentes. Até os brancos precisam reinventar uma identidade.

» De volta à vida
Saul Bannerman, um ecologista de 35 anos que luta contra a construção de uma central nuclear na África do Sul, recebe um diagnóstico de câncer na tireoide. A radioterapia a que se submete o torna radioativo. A esposa Berenice (Benni) e o filho ainda novo Nicholas (Nickie) visitam Paul, mas precisam manter certa distância por causa da radioatividade. Quando Paul volta para sua casa, as mudanças se precipitam na vida de todos da família.

» O engate
O romance desloca uma jovem branca e rica da África do Sul pós-apartheid para a desolação de uma aldeia miserável às margens do deserto, num país árabe de regime ditatorial. Julie Summers, filha de um banqueiro de Johannesburgo, conhece Abdu, um mecânico de pele escura, e se apaixona por ele. Trabalhando de forma ilegal na África do Sul, Abdu foi obrigado a ocultar seu verdadeiro nome, Ibrahim, a fim de permanecer clandestinamente no país.

» O melhor tempo é o presente
Amantes clandestinos no passado, devido às leis raciais que proibiam relações entre negros e brancos, Jabulile Gumede e Steve Reed vivem numa África do Sul democrática. Ambos foram ativistas que lutaram pelo fim do apartheid, e seus filhos nasceram em um tempo de liberdade. Mas os ideais de uma vida melhor para todos são ameaçados por tensões políticas e raciais.

» Ninguém para me acompanhar
Com o regime do apartheid ainda em vigor, a violência crescendo no campo e nas cidades, uma mulher dedica sua vida a uma fundação, lutando pelo acesso dos negros à terra. Quando o país começa a mudar e o regime dá sinais de perder força, ela deixa para trás sua antiga vida familiar, como se tudo o que viveu até então fosse apenas um trampolim para uma mutação mais significativa.

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