Montagem 'O que você foi quando era criança?' estreia nesta quarta em BH

Romancista, ator e desenhista premiado, Lourenço Mutarelli, autor do texto da peça, se diz fascinado pela literatura

por Carolina Braga 28/05/2014 08:26

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Bianca Aun/Divulgação
Com direção de Rita Clemente, peça de Lourenço Mutarelli desafia o espectador a refletir sobre a existência a partir do humor (foto: Bianca Aun/Divulgação)
Uma conversa com Lourenço Mutarelli sempre guardará surpresas. O desenhista de traço forte, criador de personagens complexos, homens atormentados e perdedores é a antítese de todos eles. A fala, por exemplo, é calma. Mutarelli descreve a paixão pela escrita e a necessidade de experimentação com a mesma tranquilidade com que critica adaptações da sua obra para o cinema. Suas participações como ator também não são poupadas. Derruba os mitos erguidos em torno de si com elegância. “Tenho esse estigma de não me livrar dos meus desenhos”, diz, sem alterar o tom de voz. Não que o desenho seja coisa do passado. Só não é o mais importante.

A partir desta quarta-feira, estará em cartaz no Centro Cultural de Belo Horizonte uma adaptação mineira para 'O que você foi quando era criança?'. O texto foi o primeiro exercício teatral desse artista múltiplo, nascido em abril de 1964. Ao contrário do que o nome sugere, a peça é uma comédia para adultos. Temas como relações sociais forçadas, consumo desenfreado e dissimulação do fracasso são abordados com humor sarcástico. Eis aqui outro estigma também combatido por Mutarelli.

“Gosto porque é um humor quase pastelão, mas as coisas vão acontecendo por trás do risível. Isso tem um impacto muito grande”, assegura. Com direção de Rita Clemente, esta será a segunda vez que 'O que você foi quando era criança?' sai do papel. A primeira montagem foi em São Paulo, feita de modo colaborativo. Agora não. Desde que escreveu as primeiras palavras de O que você foi quando era criança?, Mutarelli colocou o teatro em um canto especial na carreira de tantas vertentes. “O teatro é onde se tem mais poder. Fico muito impressionado como há uma valorização do texto, como ele engrandece. Fico fascinado. É uma outra forma de ter o retorno do que se escreveu, ver como funciona. Nunca vou conseguir acompanhar um leitor”, diz.
 
Seja no teatro, no romance ou em outro tipo de escrita, Lourenço Mutarelli diz ter sido “sequestrado” pela palavra e não quer mais largar. “A coisa de que mais gosto é escrever”, diz o autor de seis romances em catálogo, um livro em andamento e um pronto para ser publicado. Este ano lançará pela Companhia das Letras O grifo de Abdera, que considera uma “história em quadrinhos totalmente experimental”. Da ideia de extrair texto da inovação gráfica, criou algo diferente. Um híbrido das duas linguagens.

A origem de 'O grifo de Abdera' é o desejo de reinventar. “Queria tirar coisas de lugares meio improváveis. Desenhava a partir de fotogramas de filmes pornôs dos anos 1970. A maioria são cenas em que os personagens estão almoçando ou jantando. Ouvia músicas estranhas para tentar gerar um texto sem sentido, alcançar alguma coisa que não fosse minha”, conta. Ou seja, Lourenço Mutarelli não larga o desenho, mas faz dele ponto de partida para as outras artes.

“Literatura é o que mais me fascina agora. Consegui ficar três anos sem escrever e também foi muito bom. Voltei e é um mergulho mais profundo”, explica. Nos períodos em que está imerso na escrita, Mutarelli diz dedicar em torno de quatro a cinco horas por dia ao ofício. Com os desenhos é diferente. “A coisa acontece dentro do meu campo de visão. Quando escrevo, é como se mergulhasse, estivesse ali dentro”, diferencia.

Desencanto

Com o cinema, a energia é totalmente outra. Também tem a ver com essa busca pelo novo, o diferente, mas ele já não se sente seduzido como há alguns anos. “Descobri que era meio que um policial infiltrado. Entrei porque achei interessante ver o outro lado. Acabei fazendo algumas coisas e agora tenho recusado muitos convites. Não tem sido mais um prazer”, confessa.

Lourenço Mutarelli estreou na telona em um curta independente e logo foi chamado para fazer uma ponta na adaptação de Heitor Dhalia para O cheiro do ralo, romance de sua autoria. Em seguida, protagonizou ao lado de Simone Spoladori outra versão cinematográfica para um de seus romances: Natimorto. Foi quando ouviu do diretor Paulo Machline algo que surpreendeu: “Ele me perguntou se alguma vez alguém me disse se faria o final do meu livro diferente. É porque no cinema todo mundo diz que mudaria isso ou aquilo. Se apropria, julga e palpita sem saber sobre a compexidade do trabalho. Isso foi me tirando o prazer”.

Quando eu era vivo, com direção de Marco Dutra, aparece como a experiência definitiva. O filme, baseado em A arte de produzir enfeito sem causa, não agradou em nada o autor. Mutarelli diz que desde a fase do roteiro já não curtia o rumo que as coisas foram tomando. Há um agravante: o romance lançado em 2006 é o preferido do autor. “Foi muito estranho, porque para mim mudaram coisas que são a essência da história. Teve também a opção do elenco. A Sandy, por exemplo. No princípio, achei que poderia ser interessante se ela se desarmasse, mas era a Sandy, Sandy”, critica.

O escritor fez uma pequena participação no longa protagonizado por Marat Descartes como um motorista de táxi. Então, até que apareça outro convite sedutor, a carreira de ator está suspensa. A última participação no cinema foi no longa Que horas ela volta?, uma comédia com direção de Anna Muylaert, com Regina Casé como co-roteirista e protagonista. Se não for por diversão, Mutarelli já não quer mais encarar o estigma de atormentado, de homem esquisito. Ao dizer tudo isso, o tom de voz se mantém. É calmo, sem atropelos.

Comédia que faz pensar

A dramaturgia de Lourenço Mutarelli nunca esteve no foco da diretora Rita Clemente, mas como os processos de criação são sempre imprevisíveis, foi no final da montagem de Delírio e vertigem, em 2012, a peça de formatura do Oficinão do Galpão Cine Horto, que o nome do autor apareceu na pesquisa. Desde então, não saiu da lista de desejos dos envolvidos.

O que você foi quando era criança? tem no elenco Bianca Fernandes, Débora Borges, Leonardo Fernandes, Márcio Monteiro, Raquel Castro e Yasmin Santana. “Os atores não fazem parte de nenhum grupo, mas gostam de trabalhar com texto e eu também. Isso nos une. Para eles, era importante ter contato com uma obra diferenciada”, conta. Foi assim que a montagem surgiu. Trata-se de uma comédia, mas que na abordagem proposta perdeu o aspecto pastelão.

“Tentamos dar profundidade para os personagens. Assim, muitas coisas que a princípio eram piadas foram costuradas de uma maneira que pudesse se ligar a outro elemento do espetáculo, dar um sentido mais amplo. O desejo é que aquilo seja uma crítica, não uma piada em si”, explica Rita. Pensando no diálogo que a peça pode estabelecer com o público, o cenário assinado pela diretora de arte Luciana Buarque tem no centro do palco uma grande jaula. O lugar, que pode ter o significado de prisão e também de apartamento, abriga todos os personagens. A plateia, limitada a 86 espectadores, se acomoda em semiarena.

Para Rita Clemente, o elenco é um dos destaques da montagem. “São potências diferenciadas, o que dá uma unidade interessante”, elogia. O que você foi quando era criança? propõe o feito raro de ser apresentado de quarta asegunda, até o dia 9 de junho. Mais uma aposta em programação teatral contínua para o público, que só tem a ganhar com isso. “O teatro tem mesmo essa coisa processual. Antes, na hora que conseguia instaurar alguma coisa, o negócio acabava”, diz Rita Clemente.

O QUE VOCÊ FOI QUANDO ERA CRIANÇA?

De quarta a segunda-feira, às 20h. Até 9 de junho. Sala Multiúso do Centro Cultural Banco do Brasil. Praça da Liberdade, 450, Funcionários. R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).

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